Em 1954, o violento confronto entre uma potência militar e um exército guerrilheiro deu início ao colapso do império colonial francês
Às 17h30 do dia 7 de maio de 1954, os remanescentes da guarnição francesa no complexo militar de Dien Bien Phu não disparam mais. De suas trincheiras e bunkers eles observam atônitos uma infinidade de guerrilheiros vietminhs, que abandonam a floresta e agora marcham soberanos sobre os escombros da fortaleza duramente disputada ao longo de dois meses. Essa imagem, aliada às terríveis cenas de morte e destruição daquele dia, marcou o fim da Guerra da Indochina e da aventura colonial francesa no extremo oriente.
Localizada no noroeste do Vietnã, então uma das colônias francesas na região, Dien Bien Phu era uma aldeia de plantadores de arroz, aparentemente sem importância. Mas encravada em um vale cortado pelo rio Nam Yum, a localidade constituía-se em um vital ponto de acesso à fronteira com o vizinho Laos e uma rota para se chegar ao sul da China. Já nos anos 1920, os franceses haviam construído ali um pequeno aeródromo. No início dos anos 1950, com o recrudescimento da guerra de independência na Indochina francesa – região composta por Vietnã, Laos e Camboja – capitaneada pelas tropas da Frente pela Independência do Vietnã (Vietminh), de orientação comunista, Dien Bien Phu iria se tornar um ponto de passagem estratégico para o esforço de guerra vietnamita. Por ali, o Vietminh recebia suprimentos dos aliados chineses e fazia incursões ao interior do Laos, atacando guarnições francesas e ampliando a extensão da rebelião anticolonialista.
Com o objetivo de dar um basta a essa movimentação e, ao mesmo tempo, fincar a bandeira da França no coração das atividades guerrilheiras, o comandante-em-chefe das forças francesas na Indochina, tenente-general Henri Navarre, ordenou, em fins de 1953, o início da Operação Castor. Seu objetivo era ocupar o vale de Dien Bien Phu e construir um complexo de 6 e trincheiras ao redor do antigo aeródromo, que fora ampliado. Foram construídas nove praças-fortes (Gabrielle, Beatrice, Dominique, Eliane, Claudine, Françoise, Huguette, Anne-Marie e Isabelle), constituindo uma fortificação com 18 quilômetros de comprimento por 5 quilômetros no ponto mais largo. No extremo norte ficava Gabrielle, no extremo sul Isabelle, Beatrice ocupava a porção leste e Anne-Marie a oeste. As demais foram construídas ao redor da pista. Diziam os soldados, maliciosamente, que os nomes correspondiam a antigas amantes do coronel Christian de la Croix de Castries, comandante da base.
Sandálias e bicicletas
O plano francês era fustigar a guerrilha com operações que partiriam do complexo. Caso o Vietminh ousasse atacá-los, seriam esmagados pela superioridade técnica representada pelo apoio aéreo, pelos dez tanques M24 Chaffee levados para o vale, pelos 16 obuseiros de 105 e 155 mm montados próximos ao posto de comando e por quase 11 mil homens dos melhores regimentos da Legião Estrangeira e de tropas coloniais. Além disso, os franceses não acreditavam que seus inimigos, que calçavam sandálias e andavam de bicicleta, fossem capazes de ameaçá-los. “Primeiro, o Vietminh não conseguirá trazer sua artilharia até aqui. Segundo, se conseguir chegar aqui, nós o esmagaremos. Terceiro, mesmo que consiga continuar atirando, ele não poderá abastecer suas peças com munição suficiente para nos causar danos reais”, dizia o tenente-coronel Charles Piroth, o comandante de artilharia do local.
Expulsos do vale pelos pára-quedistas franceses durante a Operação Castor, os guerrilheiros vietminhs, comandados por Vo Nguyen Giap, observavam toda essa movimentação do alto das montanhas circunvizinhas. No melhor estilo formigueiro, uma das principais características de comando de Giap, milhares de homens e mulheres passaram a abastecer a imensa armadilha que se formava lentamente com 48 obuseiros de 105 mm, 48 canhões de 75 mm, uma infinidade de morteiros e 36 canhões antiaéreos.
Uma vez entrincheirada em poços nas encostas das montanhas e devidamente camuflada, a primeira função dessa artilharia era negar a possibilidade de tráfego aéreo aos inimigos, alvejando seus aviões e danificando a pista de pouso. Na primeira semana de março de 1954, os franceses perceberam que a arapuca que haviam criado não seria para o Vietminh, mas para eles próprios. Nenhum comando conseguia deixar o vale e os pousos e decolagens tornaram-se temerários. Finalmente, no dia 13 de março, um imenso bombardeio foi despejado sobre Dien Bien Phu. O que restava da pista de pouso foi destruído, assim como aviões e helicópteros ali estacionados. Muitos abrigos e trincheiras simplesmente deixaram de existir.
Era o prenúncio da ofensiva dos 37,5 mil homens de Giap. O foco principal da onda inicial foram as posições de Gabrielle e Beatrice. Nesta última, os atacantes empregaram os Voluntários da Morte, guerrilheiros que levavam diversas granadas atadas ao corpo e as disparavam ao se aproximar das barreiras de arame farpado. O ataque contra Beatrice foi tão violento que seus defensores solicitavam à artilharia que atirasse sobre suas próprias posições. Às 2 horas do dia 14, as comunicações de rádio do posto com o comando cessaram.
Desolado pela inesperada virulência inimiga, que arrasara uma das fortificações e destruíra dois de seus obuseiros já no primeiro ataque, o tenente-coronel Piroth suicidou-se em seu bunker, detonando uma granada junto ao abdome. Dois dias depois, seria a vez de Gabrielle cair. O próprio comandante do campo, coronel De Castries, após os dois primeiros insucessos, experimentou um colapso nervoso, sendo substituído extra-oficialmente pelo tenente-coronel Pierre Langlais.
Bombardeio sem trégua
Indiferente aos chiliques dos oficiais franceses, Nguyen Giap planejava formas de minar de vez a resistência inimiga. Às 18 horas do dia 31, enquanto comiam suas refeições, agora despejadas por pára-quedas junto com a munição e alguns reforços, as guarnições do Dominique e do Eliane, a leste do aeródromo, foram varridas por um avassalador bombardeio, seguido pelo avanço da infantaria vietminh. Os vietnamitas haviam passado os últimos dias cavando trincheiras ao redor do complexo, e foi por elas que os aterrorizados defensores do Eliane, soldados argelinos e thais (pertencentes a uma etnia do norte do Vietnã e aliados dos franceses) viram uma horda inimiga surgir. Desesperados, fugiram para as barrancas do Nam Yum. Naquela noite, o Dominique só não caiu graças aos artilheiros senegaleses que operavam as baterias de obuseiros e as dispararam quase em ângulo zero para repelir o ataque.
Na semana seguinte, os vietnamitas resolveriam parcialmente esse problema destruindo com seus canhões metade da artilharia francesa. Mas o moral entre os atacantes também caía, pois a tomada de cada posição cobrava elevadíssimas baixas, que não eram tratadas com os mesmos recursos do inimigo, como sangue, anestésicos, plasma e penicilina, despejados de pára-quedas pelos aviões da Armeé de l´Air. Em suas memórias, Giap revelaria que conselheiros políticos junto aos combatentes foram fundamentais para manter a disposição de luta destes.
Assim, a batalha prosseguia e, em meados de abril, o perímetro defensivo de Dien Bien Phu estava reduzido a dez quilômetros de comprimento, enquanto a posição de Isabelle, ao sul, estava completamente isolada. Restavam pouco mais de 4 mil combatentes responsáveis pela defesa e pela guarda de 2 mil prisioneiros e muitos ex-companheiros que haviam deposto as armas, além de 1 700 feridos amontoados no hospital construído sob a terra. Sobre esses túneis e abrigos, a superfície do complexo podia ser comparada a uma paisagem lunar, e todos ali sabiam que apenas um acontecimento excepcional poderia salvá-los. Do outro lado das linhas, Giap não ignorava que uma conferência diplomática sobre o futuro da Indochina estava marcada para as semanas seguintes, em Genebra, na Suíça. Consolidar uma vitória sobre os franceses seria fundamental para levar à mesa de negociações um argumento irrefutável. Por isso, apertar o cerco tornara -se a única saída viável para o Vietminh.
Giap programou para a noite do dia 6 de maio a investida final sobre a fortaleza. Às 18 horas, o ataque começou. Bombardeios, ondas humanas e a detonação de uma mina sob o que restava do Eliane em mãos francesas marcaram a derradeira ofensiva do Vietminh. Às 17h30 do dia seguinte, os homens de Giap marchavam triunfantes sobre o que fora um dia o posto de comando do coronel De Castries. Às 17h50, aeronaves da Armeé de l´Air captaram a última comunicação de rádio em francês vinda do campo: “Estamos destruindo tudo. Adeus!”. Era o fim de 200 anos de colonização francesa na Indochina.
Livros
Dien Bien Phu - Derrota no Vietnã, Editora Renes, 1976
Volume integrante da coleção História Ilustrada do Século de Violência, narra adequadamente as causas, o desenvolvimento e as conseqüências da batalha.