Direto de um quarto de hotel na capital iraquiana, em meio explosões, três jornalistas da CNN passam a noite transmitindo por rádio o primeiro ataque americano
”Os céus sobre Bagdá estão iluminados. Vemos flashes brilhantes por todo o céu.” Essas foram as primeiras palavras do jornalista Bernard Shaw, transmitidas ao vivo, pela CNN, para todo o mundo no momento em que começava o bombardeio sobre a capital do Iraque. As duas primeiras frases ditas pelo apresentador saíram trêmulas. Não poderia ser diferente: eram 2h48m, apenas 10 minutos depois das primeiras explosões da Guerra do Golfo, e Shaw estava vendo a história acontecer bem a sua frente, na janela da suíte 906 do Hotel Al-Rashid, no centro de Bagdá. Mais 2 jornalistas da rede de TV americana, Peter Arnett e John Holliman, estavam naquele quarto com ele quando um ataque da Coalizão deixou a cidade às escuras. Ouvindo o barulho de bombas e de prédios sendo atingidos, os três jornalistas passariam a noite ali, narrando os acontecimentos para o mundo todo. Eles eram os únicos repórteres ocidentais que acompanhavam os clarões dos primeiros ataques. Não era uma transmissão simples. No quarto do hotel, sem luz, uma parafernália os ajudava: falavam por meio de um equipamento de rádio por satélite que não exigia energia elétrica nem operadores de telefonia. “Estávamos mortos de medo, claro”, diria Arnett em entrevista à própria CNN, 10 anos depois do conflito. “Mas era um trabalho que precisava ser feito. Não havia ocidentais por ali. Só nós. Éramos como porta-vozes daquela guerra naquele momento.”
Os clarões e estrondos ensurdecedores provocados pelas explosões foram suficientes para que Arnett visse o medo estampado nos rostos de Shaw e Holliman. Porém continuaram a transmissão. Quem estava na TV pôde sentir um pouco do medo pelo qual os jornalistas estavam passando – a sensação de que o ataque atingiria o próprio hotel onde estavam a qualquer momento. E nunca, até essa transmissão, uma TV havia apresentado uma guerra ao vivo, com o barulho incessante de bombas ao fundo.
Não bastasse o temor por estar tão perto dos ataques, havia outro perigo para os jornalistas. Nessa primeira noite de terror, soldados iraquianos iam até o quarto de hotel verificar o trabalho deles. Quando entravam no lugar, dois dos jornalistas se escondiam, no banheiro ou debaixo da cama. Uma prisão dos três àquela altura interromperia a transmissão histórica. “Se um de nós fosse preso, os outros poderiam continuar narrando o que estava acontecendo”, disse Shaw, contando por que seus companheiros tentavam se despistar dos militares iraquianos. Eles não prenderam ninguém. “Era só sondagem mesmo. Eles sabiam que não era nada seguro ficar ali”, falou Shaw. O jornalista, que não largou do microfone um só minuto durante a noite, teve seu seguro de vida cancelado logo na manhã seguinte: “Voltei ao Iraque para entrevistar Saddam pela segunda vez, dias antes de a guerra começar, e o Lloyds de Londres avisou à CNN que, se a guerra estourasse antes de eu deixar o país, eles cancelariam o plano”.
Quando o dia clareou, depois de uma madrugada com bombardeios atingindo a cidade sem parar, Bernard Shaw e John Holliman foram embora. Deixaram Arnett para cobrir o conflito como o único jornalista ocidental em Bagdá. “As explosões estavam tão próximas que eu achei que íamos morrer. Fiquei furioso por saber que já não tinha nenhum controle sobre minha segurança”, contou Shaw na mesma entrevista para a CNN.
A CNN entrou para a história do jornalismo mundial com a narração dos três jornalistas, a imagem congelada do mapa do Iraque e de suas fotos sobre ele. Como a transmissão ao vivo de uma guerra era algo inédito na TV, mesmo que apenas com áudio, os controles remotos inevitavelmente pararam na rede de notícias. Uma audiência de 10,8 milhões de espectadores, um recorde para a TV a cabo até então, assistiu atônita a Shaw, Arnett e Holliman contarem minuto a minuto o que podiam ver da janela. Logo a notícia em todos os outros canais seria a própria CNN e seus três jornalistas, que ficaram conhecidos como os Garotos de Bagdá.
Desde sua criação, em 1980, e até janeiro de 1991, a Cable News Network (CNN) era vista com desprezo nas redações. Apontada como superficial, ganhou o apelido nada honroso de CNN – Chi-cken Noodle News (algo como, “rede da canja de galinha”). Pouca gente, além de seu fundador, o empresário Ted Turner, acreditava no valor de uma rede de notícias a cabo 24 horas por dia.
Quando a Guerra do Golfo começou, apenas a CNN tinha a estrutura para transmitir o conflito diretamente da capital iraquiana. “Bagdá foi o alvo do maior bombardeio da história militar. Nós podíamos ver todas as bombas explodindo pela cidade. Isso foi incrivelmente dramático. Foi muita sorte que nenhuma bomba atingisse nosso hotel. Shaw achava que deveríamos nos preocupar com a segurança. Mas ele mesmo fazia questão de narrar tudo o que acontecia, mesmo quando as bombas estouravam em ruas próximas ao hotel”, lembrou Arnett numa entrevista cinco anos depois.
Tudo era tão impactante que o áudio da primeira madrugada de guerra se confundiu com as imagens dos bombardeios, que só foram transmitidas dias depois. Milhões de espectadores acreditam até hoje que não apenas ouviram mas também viram a guerra ao vivo na CNN. Um deles é George Bush. O então presidente dos Estados Unidos jurou em 1991, no livro All the Best, George Bush, que viu as primeiras explosões pela TV ao lado da mulher, Barbara, na Casa Branca. Mesmo que a imagem da CNN estivesse congelada.
Quando finalmente as imagens da guerra foram transmitidas, os bombardeios em Bagdá ganharam tons esverdeados. A tela ficava com essa cor por causa dos dispositivos de visão noturna. A CNN conseguiu instalar câmeras em caças americanos. Os alvos apareciam na TV como pontos coloridos em gráficos feitos por computador. Aí sim podia-se ouvir o barulho das explosões e, ao mesmo tempo, tentar visualizá-las na transmissão. Elas passavam na tela como tiros de de videogame. Combinadas com os estrondos, assustavam quem as via.
Mas nem tudo podia passar na CNN. Imagens de soldados americanos mortos e feridos eram censuradas pelo governo dos EUA. Com medo do efeito negativo da guerra sobre o público, como ocorreu no Vietnã, 20 anos antes, os Estados Unidos vetavam imagens chocantes do campo de batalha. Nascia a chamada “guerra limpa”, sem sangue, com cara de jogo eletrônico. Para completar, os jornalistas recebiam relatórios diários dos dois lados do conflito. Difícil era descobrir o que era realidade e o que era propaganda. Tanto as Forças Aliadas quanto o Iraque sabiam que a imprensa era o caminho mais curto para influenciar a opinião popular.
Com ou sem censura, os repórteres da CNN ficaram no Iraque até o fim do conflito. Há um filme que narra em detalhes como a rede americana conseguiu instalar seu QG em Bagdá. Baseado no livro de mesmo nome, o telefilme da HBO Ao Vivo de Bagdá, de 2002, conta a história da CNN na Guerra do Golfo até a primeira madrugada do conflito pelos olhos do produtor Robert Wiener (Michael Keaton, no papel principal). Foi ele que conseguiu a autorização do Ministério da Informação do Iraque para usar o equipamento que botou a CNN na guerra e deixou as outras redes para trás. Fazer a conexão de Bagdá à Jordânia e dali para a sede da CNN, em Atlanta, custaria US$ 16 mil por mês à rede.
O longa mostra que Saddam Hussein via a CNN como o principal canal de comunicação com Ocidente. Por isso, a primeira entrevista que deu durante a guerra foi para Arnett. O jornalista logo seria acusado de ter se vendido para o governo iraquiano ao mostrar o outro lado do conflito – com uma reportagem sobre o ataque da Coalizão a uma fábrica de leite em pó. A CNN seria chamada de “meio de transmissão da desinformação iraquiana” pelo governo americano, que insistia em dizer que a tal fábrica tinha armas químicas e biológicas.
A cobertura da Guerra do Golfo tornou a audiência da CNN oito vezes maior antes mesmo do cessar-fogo. Hoje, ela é assistida por 1,5 bilhão de pessoas em 212 países e territórios. A rede tem cerca de mil afiliadas, 4 mil profissionais da área de jornalismo, mais de 40 escritórios e inúmeras concorrentes pelo mundo.
As memórias de Anthony “Swoff” Swofford, um recruta da Guerra do Golfo, viraram o best-seller Jarhead, em 2003, e um filme de mesmo nome, lançado em 2005 – Soldado Anônimo é o nome desse longa em português. Dirigido pelo premiado diretor Sam Mendes, de Beleza Americana, o filme mostra a trajetória de Swoff (vivido por Jake Gyllenhaal), que serviu, aos 20 anos, e foi parar no Oriente Médio. Filho e neto de militares, ele se alista para seguir a tradição familiar. As batalhas entre as Forças Aliadas e o Iraque ficam de lado na história. Em foco, estão os dramas pessoais dos fuzileiros navais americanos (os marines, ou jarheads, como se chamam entre eles) e sua experiência. Sobre a areia do deserto, Swoff sofre, amadurece, faz amigos e descobre que sua vocação pode estar ali mesmo, no pelotão de atiradores.
Os três repórteres da CNN na capital do Iraque, Peter Arnett, Bernard Shaw e John Holliman, foram chamados de Boys of Baghdad (Os Garotos de Bagdá). Eles ganharam prêmios e viraram celebridades. Ex-fuzileiro naval, Shaw tem más lembranças de sua primeira cobertura de guerra, a Revolução Sandinista, na Nicarágua, em 1979. Ele teve que fazer uma entrevista no Panamá e seu substituto na Nicarágua, Bill Stewart, acabou sendo assassinado pela guarda nacional. Em 1980, Shaw foi contratado como âncora da CNN. Na Guerra do Golfo, disse na TV durante um bombardeio: “Bagdá parece o centro do inferno.”
Arnett foi correspondente de guerra no Vietnã. Seu trabalho rendeu um Prêmio Pulitzer, o mais importante do jornalismo mundial. Na Guerra do Golfo, viu o perigo à frente de seu nariz: “Sabia que as Forças Aliadas não atacariam nosso ‘quartel-general´”.
Holliman foi o primeiro correspondente da CNN em Washington. Em 1989, cobriu o purgatório do Partido Comunista chinês. Morreu num acidente de carro em 1998.www.cnn.com/SPECIALS/2001/ gulf.war/index.html
Especial da CNN sobre a Guerra do Golfo, com entrevistas com repórteres, vídeos e análises.
Ao Vivo de Bagdá (2004)
Filme da HBO baseado no livro do produtor Robert Winier, da CNN, conta como a equipe da emissora cobriu a guerra, da invasão do Iraque no Kuwait ao bombardeio americano em Bagdá.