No século passado, alguns biólogos afirmavam que após provar sangue humano, os leões desenvolvem preferência pelo gênero. E de fato, alguns animais se tornaram reincidentes e, após mudarem o cardápio, passaram a procurar por mais
O homem sempre foi fascinado por aventuras, e as memórias da história têm especial apreço por estes aventureiros. Nós somos fascinados pelos relatos das expedições ao deserto de Gobi; encantamo-nos com as pinturas rupestres nas grutas de Lascaux; e, sobretudo, nos sentimos extasiados com os relatos e proezas dos exploradores.
Ora, quem nunca sonhou desenterrar fósseis como Chapman, buscar a nascente do Nilo à maneira de Richard Burton, encontrar a tumba de Tutancâmon com Howard Carter, se colocar a caminho dos Polos Norte e Sul lado a lado com Roald Amundsen ou, ainda, ser um John Franklin buscando a passagem norte entre os Oceanos Atlântico e Pacífico?
Contudo, se você tem afinidades com homens do calibre do coronel John Henry Patterson e prefere caçar e ser caçado por leões comedores de homens na África, podemos, sim, ser seu guia pelos caminhos mais escuros da história.
Comedores de homens, o termo por si já é suficiente para cavar um fiorde de medo e desespero no coração de muitos aventureiros e serve de introito para se referir a um animal que preda, ataca ou mata seres humanos, geralmente tubarões, lobos, crocodilos, ursos e grandes felinos, em particular, e em maior número, os leões.
A falta de presas e as invasões de território são os principais fatores por trás das desairosas ocorrências. Sem dúvida, a atividade humana, grande responsável pelo declínio da fauna e predação desmedida da flora, faz com que os felinos se aventurem por outras regiões e busquem por presas mais fáceis.
No século passado, alguns biólogos afirmavam que após provar sangue humano, os leões desenvolvem preferência pelo gênero. Não era para tanto, mas, notadamente, alguns animais se tornaram reincidentes e, após mudarem o cardápio, passaram a procurar por mais.
Foi o que sucedeu em Tsavo, região do Quênia. Banhada pelo rio que lhe empresta nome, uma localidade tão conhecida do Ocidente como se pode esperar de uma área remotíssima nos fins do século 19.
Nesse cenário, em março de 1898, dois leões começaram a caçar e devorar os homens que trabalhavam num longo trecho de ferrovia encomendado pelo Império Britânico. Foram 135 vítimas, o que motivou os engenheiros a paralisarem as obras por nove meses.
Havia um crescendo de revolta entre os operários indianos – maioria entre as fatalidades – que ameaçavam partir sem concluir o contrato. As ocorrências chamaram a atenção dos jornais que colocaram Tsavo no mapa. Mas nesse período, as feras assassinas já estavam no radar do coronel Patterson, um renomado caçador irlandês, encarregado local com ordens para supervisionar a construção de uma ponte.
Patterson viu naquela tragédia uma ameaça à supremacia do império, mas também vislumbrou sombras de uma oportunidade. Certamente, ele não poupou munição, nem tinta, para fazer fama e fortuna com a história. “São devoradores de homens, feras que caçam e matam por prazer, não para se alimentar! Eles tomaram o gosto pela caça e pela carne dos homens e nada mais vai satisfazê-los”, relatou em suas glamorosas memórias.
Outros relatos, contudo, sugerem que os leões eram realmente adversários espantosos, vorazes e extremamente ardilosos. Toda noite, atiradores ficavam a postos em casamatas com quatro metros de altura, vigiando os assentamentos fartamente iluminados, de maneira a restringir a aproximação das feras. Armadilhas também foram espalhadas por caçadores tribais contratados por Patterson.
Tudo inútil. Em uma noite, atraídos pelo odor de sangue, as feras atacaram a tenda hospitalar onde os feridos eram mantidos. Nesse episódio, um dos grandes felinos foi avistado pelo próprio coronel, mas as tentativas de alvejá-lo falharam. “O animal simplesmente desapareceu, como se fosse uma sombra entrando na escuridão”, escreveu Patterson.
Após semanas de tocaias frustradas, o caçador irlandês finalmente conseguiu abatê-los e as obras da ferrovia puderam prosseguir. Recebeu inúmeras honrarias, a gratidão do Império e imediatamente se tornou uma celebridade, posando para fotografias com as feras mortas e vendendo por uma considerável fortuna os corpos para o Museu Field, em Chicago, onde estão expostos até os dias de hoje. Além disso, dez anos mais tarde a perigosa aventura do coronel Patterson renderia um livro – The Man-Eaters of Tsavo (1907) – que o tornou milionário.
Décadas mais tarde, a obra ainda inspiraria três filmes hollywoodianos, dentre os quais, A Sombra e a Escuridão, longa premiado com o Oscar, onde o celebrado caçador é interpretado pelo norte-americano Val Kilmer.
Um recente estudo norte-americano, baseado no exame acurado da mandíbula e dentes dos leões, através de novas tecnologias, revelou que o comportamento assustador dos leões de Tsavo era causado por infecções que os impediam de caçar, segurar com as mandíbulas e se alimentar de presas maiores como zebras, antílopes, gnus, entre outros mamíferos com casco, maiores, mais fortes e lépidos. Famintas, as feras não tiveram outra opção senão buscar um animal mais fraco e a construção da ferrovia trouxe um banquete até seu território.
Assim, a razão para a fúria desmedida dos animais era uma severa doença periodontal, nada tão deslumbrante quanto imaginou o coronel Patterson.
M.R. Terci é escritor e roteirista; criador de “Imperiais de Gran Abuelo” (2018), romance finalista no Prêmio Cubo de Ouro, que tem como cenário a Guerra Paraguai, e “Bairro da Cripta” (2019), ambientado na Belle Époque brasileira, ambos publicados pela Editora Pandorga.