A inovadora tese antropológica que nega a ideia de que os índios são primitivos e revê a lógica da política tribal
Por muito tempo (ou mesmo ainda hoje), se acreditou que os indígenas na América eram seres primitivos que viviam nas fases iniciais do desenvolvimento político humano, que seria universal. Os índios viveriam em tribos, pois eles estariam numa fase inicial do desenvolvimento político, que iria evoluir para formas mais complexas até atingirem a forma do Estado burocrático, modelo europeu.
Porém, há muito tempo existem criticas à essa visão, que é extremamente evolucionista e cria a ideia de que os índios são menos evoluídos e capazes que o branco europeu. Uma das mais importantes obras que desmentem essa tese vem de um importante antropólogo francês do século XX, o pesquisador Pierre Clastres (1934-1977). Ele foi um dos pioneiros nos estudos atualizados de antropologia política entre ameríndios e desenvolveu sua principal tese sobre os guayakis do Paraguai em seu livro de 1974 A Sociedade contra o Estado.
Clastres era filósofo de formação, mas entrou no campo da antropologia da América do Sul por influência de Métraux e Levi-Strauss, grandes acadêmicos franceses que tiveram contato com os países sul-americanos (principalmente Brasil, Argentina, Paraguai e Bolívia).
Os estudos do antropólogo vão partir da análise destes pressupostos científicos de sua época, que colocavam os índios numa posição de inferioridade cultural e racial, dizendo que não há elementos reais para entendermos que a forma horizontalizada e mais próxima ao igualitarismo visíveis nas relações políticas no mundo tribal guarani tem origem em algum tipo de caráter primitivo dessa estrutura de poder. Ao contrário, o pesquisador vai analisar o mundo tribal a partir de uma perspectiva de ação política.
Clastres coloca que no mundo sul-americano, as atividades relativas ao poder não eram simplesmente negadas pela “incapacidade” dos índios de atuar numa sociedade complexa, que era vista no mundo mexicano e maia por terem criado Estados e sociedades hierárquicas. É um erro, para Clastres, entendermos a política tribal como desacompanhada de uma lógica política que é ativamente mantenedora da estrutura social.
Isso significa dizer que a sociedade sem Estado e que dissolve suas hierarquias internas é resultado de um esforço ativo de impedir o desenvolvimento de relações hierárquicas de política e mandatarismo. Então, para o autor, o mundo político dos índios guayaki é, antes de uma sociedade sem o Estado, uma sociedade contra o Estado, pois os povos que formam o tecido social dessas tribos agiriam conscientemente pela manutenção de um mundo político sem membros que mandam e membros que obedecem, não estando presos a uma realidade de incapacidade de atuar de forma complexa e hierárquica. Sendo assim, não estando sujeitos a uma força evolutiva acima deles, que o levariam a uma sociedade estatizada.
Em Clastres, não se ignora a figura de um pajé, por exemplo. Ou mesmo a noção de chefia. Mas a partir da noção antropológica que faz do autor partir das formas internas de compreensão de mundo, é possível ver entre os guarani na América do Sul uma tendência a uma lógica de sociabilidade que é repleta de marcos e mecanismos culturais que impedem o nascimento de figuras de comando e controle. Ao contrário, os chefes tribais não possuem poder de mando, somente reconhecimento social de sua fala como conselho. Há, portanto, o isolamento e a destituição de posições que possibilitem o desenvolvimento de uma camada dominante dentro dos grupos sociais.
Portanto, o mundo político dos índios é um mundo sem dirigentes, não sem articulação política. O estudo de Clastres é útil até hoje para uma análise não etnocêntrica da antropologia política indígena, nos lembrando de que análises simplistas e evolucionistas não são aplicáveis nos estudos sérios sobre a vida ameríndia.