Até hoje, a Semana de Arte Moderna de 1922 mobiliza discussões, pesquisas e avaliações
Encerrada a Semana Moderna de 1922,Mário de Andrade enviou a Menotti del Picchia uma carta repleta de contentamento em relação ao que eles e seus parceiros haviam realizado, incluindo o incômodo gerado em boa parte das pessoas.
“Estamos célebres, amados e detestados. E tudo isso por quê? Porque os araras caíram na armadilha. Insultaram-nos. Somos bestas, doentes, idiotas, ignaros!”, escreveu.
Sem dúvida, a Semana de 22 angariou as atenções para a arte moderna de norte a sul do país, quer pelo apreço, quer pela aversão. Assim, adubou o terreno para as obras que se seguiram a ela, especialmente na literatura.
Destacam-se os manifestos de Oswald de Andrade e as obras fundamentais do modernismo brasileiro, tais como “Macunaíma”, de Mário de Andrade, “Memórias Sentimentais de João Miramar”, de Oswald de Andrade, e “Ritmo Dissoluto”, de Manuel Bandeira.
Estudiosos identificam duas fases do modernismo brasileiro. Uma mais exuberante e contestadora; outra, centrada na pesquisa de campo.
“A primeira, de renovação estética e exagero da atitude modernista, teve como símbolo a Semana de 1922", expõe o professor de Literatura Brasileira da Universidade de São Paulo (USP), Ivan Marques, no livro Modernismo em Revista: Estética e Ideologia nos Periódicos dos anos 1920 (ed. Casa da Palavra).
"Já a segunda foi deflagrada dois anos depois, com uma volta ao passado e à realidade brasileira, e teve como marcos a viagem dos modernistas Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral, entre outros, às cidades históricas mineiras, e o surgimento, sob o comando de Oswald, da estética Pau-Brasil, que valorizava as fontes populares e primitivas da cultura nacional”, explica.
Passado o alvoroço provocado pela Semana de 22, que reverberou em vários estados brasileiros, o festival modernista perdeu viço nas décadas seguintes, apesar de hoje ser reconhecido como um acontecimento dos mais relevantes para a arte nacional.
“Nos anos 1940 não parecia ter muita relevância trazer o assunto à tona. Nos anos 1960, o tropicalismo retomou alguns de seus temas. Pesquisadores registravam as memórias de seus participantes e seu cinquentenário foi data a ser comemorada”, pondera Maria Izabel Branco Ribeiro, professora da pós-graduação em Histórias das Artes da Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP), em São Paulo.
Em 1942, Mário de Andrade refletiu sobre ela na conferência intitulada "O Movimento Modernista". Olhando em retrospecto, confessou: “Como pude fazer uma hórrida conferência na escadaria do teatro, cercado de anônimos que me caçoavam e ofendiam a valer?”.
Na sequência, ele ofereceu aos presentes uma elaborada resposta: “O meu mérito de participante é mérito alheio: fui encorajado, fui enceguecido pelo entusiasmo dos outros. Apesar da confiança absolutamente firme que tinha na estética renovadora, eu não teria forças para arrostar aquela tempestade de achincalhes.
O poeta continuou: "E se aguentei o tranco foi porque estava delirando. O entusiasmo dos outros me embebedava, não o meu. Por mim teria cedido. Digo que teria cedido, mas apenas nessa parte espetacular do movimento modernista. Com ou sem a Semana, minha vida intelectual seria o que tem sido”.
Até hoje a Semana de Arte Moderna de 1922 mobiliza discussões, pesquisas e avaliações.
“Há seus entusiastas e os que refutam sua importância. Há os que a colocam como um evento paulista, os que a articulam com demais ações espalhadas pelo país e os que a inserem dentro de um panorama amplo do modernismo no Brasil", frisa Maria Izabel.
"É interessante observar que, ao correr das décadas, são levantadas novas questões sobre o modernismo no Brasil e historiadores propõem diferentes abordagens sobre a Semana”, acrescenta.
Uma das críticas negativas, aventadas na época, partiu do historiador e bibliófilo Yan de Almeida Prado. Para ele, a Semana de 22 foi um evento com fracos traços modernistas, que não teria tido a mesma repercussão não fosse o empenho promocional de Oswald e Mário de Andrade.
Curiosamente, Yan de Almeida Prado, que também atuou como desenhista, participou do festival como autor de dois desenhos. No entanto, ele alegou que o fez por pura gozação.
Na visão de Marcos Augusto Gonçalves, o espaço privilegiado concedido aos modernistas paulistas não teria sido aberto sem uma porcentagem de concessões. Algumas bastante contraditórias.
“Estas não consistiam simplesmente em abrir mão de escolhas estéticas radicais para facilitar o êxito do espetáculo. Na realidade, com uma ou outra exceção, mal havia escolhas estéticas radicais das quais abrir mão", ele examina em seu livro “1922: A Semana Que Não Terminou”.
"Naquele momento, estava tudo a meio caminho, em nosso ‘modernismo plantation’ [termo espirituoso e conceitual cunhado pelo autor para designar o florescimento de ideias e de obras modernas na São Paulo enriquecida pela lavoura do café]. O velho tardava em se retirar e o novo ainda não reunia energias para se impor. A Semana, é certo, irradiou um sentimento de rejeição à arte oficial e ao ‘passadismo’, mas o fez por intermédio de obras que, em muitos aspectos, se conectavam à tradição que pretendiam confrontar”, completa.
Outra crítica bastante disseminada se sustenta no fato de que a Semana fora concebida e viabilizada por um grupo de artistas vinculados à aristocracia paulista e que, ao enfatizar a reinvenção das expressões artísticas daquele momento, pouco efeito teve sobre a realidade social do país.
Tampouco se preocupou em alcançar as massas. Mas há quem discorde disso e enxergue a contribuição dos modernistas pelo viés construtivo, como a especialista em artes visuais Debora Gigli Buonano, docente do curso de Artes Visuais do Centro Universitário Belas Artes de São Paulo.
“Ter na História da Arte Brasileira um grupo que se articulou e realizou o novo, influencia sem dúvida os artistas ainda hoje, na busca de produzir uma arte brasileira dentro de um olhar de seu próprio tempo”, ressalta.