O maior país do mundo em território também acumula numerosos conflitos ao longo dos últimos séculos
Setenta e sete anos após o final da Segunda Guerra Mundial, o maior e mais mortífero conflito que a humanidade já viu, o som das armas voltou a ser ouvido na Europa. Depois de tanto tempo adormecido no centro do sistema e, contrário à crença de que “nunca mais a paz seria interrompida no coração do Velho Mundo”, o estrondo dos canhões voltou a quebrar o silêncio.
Diferentemente de seus antepassa dos, que tiveram a guerra como uma realidade por milênios, as gerações atuais apenas cresceram ouvindo falar dos grandes conflitos e de como, por mais de mil anos, homens – mulheres também, mas preponderantemente homens – fizeram a guerra, lutando e morrendo em solo europeu. A guerra está no centro da vida humana.
Ela não desapareceu do mundo nestas quase oito décadas em que a Europa – à exceção dos Bálcãs – viveu em paz. Pelo contrário, migrou para a periferia do sistema e lá ficou, até voltar, em 2022, para o continente que tem seu solo marcado por sangue e pólvora. O retorno dos conflitos opõe dois países que possuem uma história que se entrelaça. História, na verdade, é um dos motivadores da beligerância atual.
Justamente por isso que, para entender aquilo que oficialmente é chamado pelo Kremlin de “Operação Militar Especial”, é preciso analisar não apenas o hoje, mas viajar no tempo, e ver como a guerra é uma característica e parte indissociável da construção do Estado Russo– a exemplo de tantos países da Europa. Assim como é impossível falar em Rússia sem citar os grandes nomes de sua literatura, como Dostoiévski, Tchekhov ou Gogol, não se pode falar do país sem pensar em Pedro I, Kutuzov ou Zhukov, grandes estrategistas que lideraram a nação em momentos críticos.
O espírito do guerreiro, o combate, é algo tão presente que, não à toa, outro grande autor, Tolstói, tem como uma de suas obras mais célebres, Guerra e Paz. Esta dualidade, entre a beligerância e sua ausência, está presente na formação da própria identidade do povo. Ter a guerra como um elemento de identificação nacional – como o fato de a Segunda Guerra ser “A Grande Guerra Patriótica” – não quer dizer que a sociedade tenha uma predisposição para a mesma.
Significa, sobretudo, que esta sabe o custo de um conflito e o preço da paz. Mas onde começa essa relação? O que faz dos russos um povo experimentado no campo de batalha e que agora, em pleno século 21, se vê novamente às voltas com uma guerra em suas fronteiras? Entender a formação desse país e desse povo, provado desde a tenra idade pelas dificuldades que começam com as intempéries, como o frio e a neve, e sua relação com a guerra, nos leva até os primórdios de uma terra que fascina uns e amedronta outros, mas que está sempre no centro da atenção.
Impensável escrever sobre todas as guerras russas em tão poucas laudas. A seguir, confira alguns dos principais conflitos que os russos atravessaram e como isso moldou, e segue moldando, sua sociedade.
O que hoje conhecemos como Rússia tem suas origens na saga dos remadores varegues (vikings suecos) que, em busca das riquezas de Constantinopla, a “Cidade dos Imperadores”, navegaram desde sua Suécia natal pelos rios do Leste até às águas do Mar Negro e, finalmente, Bizâncio. As tribos eslávicas que habitavam a região os chamavam de povos rus, ou rusos (remadores), e passaram a reconhecê-los – por conta de seu modelo de organização social mais estruturado – como mestres, aceitando e assimilando seus costumes.
A busca pelas especiarias que Constantinopla oferecia fez com que, no caminho, os rusfos sem fundando assentamentos e começas sem, em Novgorod (862 d.C.), o que é a Rússia Moderna. Por conta da proximidade, mais tarde transferiram o centro administrativo de seus novos domínios para Kiev (ou Kyiv), uma vila nas margens do Rio Dnieper que se tornou uma importante cidade, nomeando todo o império: o Rus de Kiev ou, Rússia de Kiev. A relação com os romanos – como os bizantinos eram chamados pelos europeus na Idade Média – era dúbia.
Se por um lado florescia o intercâmbio comercial e cultural entre os dois povos, por outro, com impérios convivendo com tanta proximidade, os choques eram inevitáveis. Entre os séculos 8 e 9 foram pelo me nos oito conflitos. Esses combates, que opuseram os príncipes rus aos césares, ficaram conhecidos como Guerras Rus Bizantinas. Apesar de terem saído vitoriosos na maior parte, os rus nunca conseguiram transpor as famosas Muralhas de Constantinopla e conquistar a Cidade dos Imperadores.
Entre uma e outra escaramuça com os romanos, ainda havia confrontos com tribos vindas das estepes do Leste e com alguns reinos da Europa Central e Oriental, como o Ducado da Polônia e o Estado da Volga Bulgária. As disputas eram majoritariamente por questões fronteiriças, mas havia também o elemento religioso.
Os rus, devido ao contato com os bizantinos, aderiram ao Cristianismo Ortodoxo, e professavam (assim como defendiam) sua fé contra os povos ditos pagãos, os muçulmanos, ou até mesmo os Católicos Romanos (como é o caso dos poloneses). Entretanto, o maior desafio ainda estava por vir. Apesar de já terem dado provas de suas habilidades mi litares, não foram páreos para o fogo e fúria dos guerreiros mongóis.
Vindos dos confins da Ásia, os mongóis, conhecidos pelos russos como tártaros, saquearam Kiev em 1240 e dominaram uma porção considerável do que é a atual Rússia e o Leste Europeu. É fato que a Rus Kievana já se encontrava em declínio havia alguns séculos, mas foi a invasão mongol que pôs fim ao império, levando à divisão de seus domínios. Todas as terras na mão dos invasores foram aglutinadas sob o Canato da Horda Dourada.
Os novos senhores permitiam certa autonomia política aos povos conquistados, tanto que cidades, como Grão Ducado de Moscou, prosperaram durante a dominação tártara. Considerando essa “liberdade”, a ameaça mais imediata, portanto, não estava no Leste, mas ao Norte. Suecos e germânicos buscavam expandir seus territórios, no que hoje são terras russas, e converter os povos rus – que praticavam o Cristianismo Ortodoxo – ao Catolicismo Romano.
Para fazer frente a essa invasão entra em cena um personagem que a história, de tão fantástica, se mistura às lendas construídas em seu entorno: Alexandre I, Príncipe de Kiev, mais conhecido como Alexander Nevski. “Nevski” deriva da palavra neva, nome de um dos principais cursos d’água do país e que significa literalmente neve. Alexander ganhou essa alcunha, pois foi sua vitória na Batalhado Neva (1240) que salvou o país de uma grande invasão sueca vinda do Norte.
Mais tarde, o que já era um feito épico seria acrescido da vitória em uma nova epopeia. Em 1242, os Cavaleiros Teutões (ou Teutônicos) fizeram uma grande investida contra as cidades próximas a Novgorod. Em uma contraofensiva, imortalizada pelas lentes de Sergei Eisentein, Alexander derrotou os cavaleiros germânicos na Batalha do Lago Peipus. Além da vitória em si, o príncipe contribuiu para o resgate de um orgulho adormecido e inspirou os russos a se libertarem do outro invasor: os tártaros.
Os fatos, no entanto, não foram imediatos e fizeram com que os russos passassem os próximos dois séculos empenhados em expulsar os mongóis de suas terras. A liderança dos povos rus migrou de Kiev para Moscou e foram os grão-duques de Moscóvia que, em 1480,puseram um fim ao domínio tártaro ao vencerem a Batalha do Rio Ugra.
Os séculos que passaram tendo os mongóis como senhores fizeram com que a Rússia fosse apartada das transformações que ocorriam no resto da Europa, como o Renascimento. Do mesmo modo, mudanças ao Sul, tal qual a que da de Constantinopla diante dos canhões de Mehmet II (1453), também reverberaram no país. Com a liderança dos Príncipes de Moscou, os filhos daquela cidade passaram a ser conhecidos como “russos étnicos”, não por uma questão racial, mas por terem sido eles a liderarem (e vencerem) a luta contra o invasor das terras rus.
Para simbolizar essa conquista e reforçar os laços daqui lo que pretendiam construir, recuperaram os símbolos da agora caída Bizâncio, convertendo se na “Terceira Roma”. Foi Ivan IV, o Terrível, que, ao suceder seu pai – Ivan III, o vence dor da Batalha do Rio Ugra –, liderou o processo de expansão que faria o país se tornar novamente um grande império.
Em seu livro ‘Prisioneiros da Geografia – Dez Mapas Que Explicam Tudo o Que Você Precisa Saber Sobre Política Global’, o jornalista e escritor britânico, Tim Marshall, ao explicar a dificuldade enfrentada por Ivan, face a ausência de barreiras naturais entre os do mínios que herdara e as potenciais ameaças, descreve a solução adotada por aquele que se tornou o primeiro czar.
Ele pôs em prática o conceito de ataque como defesa – isto é, começar a se espalhar, consolidando se em casa, e avançar para fora. Isso levou à expansão. Ali estava um homem para corroborar a teoria deque indivíduos podem mudar a história”.
O modelo adotado por Ivan não apenas foi bem sucedido, fazendo com que a Rússia se expandisse e eliminasse as ameaças assim que fossem identificadas, como se tornou uma espécie de manual para os soberanos e líderes futuros saberem o que fazer se sentissem que o país estava ameaçado – prática que, ainda hoje, é atual. Com o crescimento do império, barreiras naturais foram sendo adicionadas à medida em que territórios eram conquistados.
Por mais bem sucedida que a estratégia tenha sido, porém, quantidade não significa qualidade – lição que outro czar aprendeu na prática. Séculos depois, quando Pedro I, “O Grande”, assumiu o país em 1682, a Rússia encontrava se estagnada e as ameaças aos agora vastos domínios se multiplicavam. Menos por conta da ausência de barreiras e mais por conta das precárias condições das tropas responsáveis por defender o Estado.
Dentre as várias reformas que empreendeu, que começavam por modernizar a sociedade “adequando a aos padrões da Europa Ocidental”, estava a reforma militar. O monarca não apenas reequipou e treinou adequadamente o Exército, como construiu –praticamente do zero – uma poderosa Marinha de Guerra. Não fossem essas reformas e seu gênio forte, os russos jamais teriam vencido o poderoso Exército sueco de Carlos XII na Batalha de Poltava (1709).
O embate foi apenas um dos muitos da Grande Guerra do Norte (1700 1721). Quando ela acabou, os russos ha viam alterado o mapa político da Europa, construído uma nova capital e se tornado, oficialmente, um império. Eram agora os novos senhores do leste.
No século 18, com domínios que se estendiam das atuais Belarus e Ucrânia até a costa do Pacífico e Américas (o Alasca), surgiram algumas revoltas internas e novas ameaças externas. A Rússia era um ator geopolítico forte e os demais impérios da época não perdiam a oportunidade de tentar ameaçar suas fronteiras ou de fomentar rebeliões locais para que estas minassem a ordem mantida pelos czares com punho de ferro. Foram os problemas sucessórios após a morte de Pedro I (1725), somados ao conturbado contexto externo, que fizeram com que o país se visse às voltas com, pelo menos, seis grandes conflitos internacionais entre os anos 1720 e 1760.
Os 1700 foram um período de efervescência na Europa, em que muitas Casas Reais se viram brigando umas com as outras por conta de descendentes não aceitos nas cortes. Nesse contexto, uma figura marcante ascendeu ao trono russo. Não era um czar como os anteriores, mas uma czarina, Catarina II, uma nobre de origem germânica que, por conta do matrimônio com o herdeiro Romanov, se tornara “imperatriz de todas as Rússias”.
A jovem monarca empenhou se em não apenas assimilar os costumes de seu novo povo – era uma patrocinadora da cultura eslava – como também em “pacificar” e expandir os domínios do império. Lançando mão da velha receita dos czares, governou com mão de ferro, e fez com que ame aças fossem eliminadas antes mesmo de começarem a prosperar.
Seguramente, muito do que foi escrito sobre a monarca é fruto de difamação de seus opositores da época – o fato de ela ser uma mulher destemida em uma corte masculina não pode ser ignorado –, entretanto, a czarina sabia que governar um país diverso não era tarefa simples, e que os homens são movidos mais por interesses pessoais do que por ideais coletivos.
Catarina governava como se jogasse xadrez, sempre estava três jogadas na frente de opositores – e também de aliados. Foi sua sagacidade e persistência que fizeram com que os domínios se estendessem não apenas de Leste a Oeste, mas também de Norte a Sul, com uma extensão territorial que ia do Mar Báltico ao Mar Negro.
Essa visão de abrir uma passagem entre os dois mares se mostraria estratégica nos anos (e séculos) seguintes. No Norte pôs fim à longa ameaça da Suécia, e no Sul, a conquista da Crimeia, além de conter os turco otomanos, fincava um pé russo no Mar Negro – algo extremamente atual. Ademais, a extensão territorial a ser coberta por potenciais invasores cobraria seu preço, como descobririam Napoleão Bonaparte e Adolf Hitler.
Uma das obras mais célebres do economista político italiano Giovanni Arrighi chama-se ‘O Longo Século 20’. Nela, o autor retrata como as crises sistêmicas do Capitalismo moldaram o século passado. Pois bem, para os russos o século 20 foi de fato longo, mas o 19 foi ainda maior. Não fossemos acontecimentos dos 1800, Lenin não teria feito a Revolução de 1917, e a história russa seria bem diferente.
Quando olhamos para a situação do país em 1812, ano que Napoleão invadiu a Rússia, ele já era um império continental bem estruturado e que exercia forte influência nas decisões de todo o Velho Mundo. Esta, aliás, foi a principal motivação do imperador francês para reunir “o maior exército que o homem já vira”, o Grand Armée, e marchar de Paris até Moscou. Não tendo conseguido atravessar o canal e subjugar os ingleses, Napoleão via na derrota dos czares a oportunidade de solidificar seu domínio na Europa e, quem sabe, ao conquistar a Rússia, chegar na joia da Coroa Britânica: a Índia.
Nada disso funcionou e Napoleão foi der rotado não apenas pela tenacidade de um povo que, apesar de viver sob o cetro pesado de um César, preferia este a um monarca estrangeiro. A derrota do Grand Armée teve como protagonista outro personagem lendário russo, o “General Inverno” (ler quadro da página 37). A invasão francesa contribuiu para que o velho sentimento de ameaça, que se manifestava desde os tempos do Rus, e que fez com que o povo se levantasse contra os tártaros, fosse reacendido.
Ao não levarem a luta até o inimigo, os russos viram seu país invadido e, não bastasse a destruição causada pelo invasor, foram forçados a queimar a própria terra para impedir que ela caísse em mãos inimigas. Vencida a ameaça francesa, os czares se concentraram em controlar as revoltas internas e expandir sua presença na Ásia Central, onde os turco otomanos (um velho inimigo) e aliados começavam a ameaçar a Rússia.
Por falar em otomanos, o outro grande embate do século foi a Guerra da Crimeia (1853 1856), onde, apesar de ter saído derrota da no campo de batalha para a coalização entre Império Otomano, França e Inglaterra, a Rússia conseguiu garantir (e aumentar) sua influência no Leste Europeu e nos Bálcãs. Ao final desta guerra, tanto os franceses quanto os ingleses perceberam que a ameaça maior não vinha da Rússia, mas de um Estado que começava a se estruturar no coração da Europa e que iria agitar o século 20: a Alemanha unificada despertara.
Ao contrário do 19, o século 20 não começou de forma esplendorosa para a Rússia. O império era rico e vasto, mas se via às voltas com convulsões internas e ameaças de todos os lados. Mesmo com a reforma que acabara com a servidão em 1861, as massas estavam agitadas. Diferentemente do que ocorrera no passado, quando o país “se beneficiara” de seu isolamento, com o avanço da comunicação e, devido à vastidão de suas fronteiras, era impossível ficar alheio às novas ideias daqueles tempos, especialmente ao Marxismo.
Mesmo tendo participado da supressão da Revolta dos Boxers (1899 1901) – o que lhe garantiu sua fatia na partilha do Império Chinês – o país era “um gigante de pernas bambas”. Ao ser derrotado pelos japoneses da Guerra Russo-Japonesa (1904 1905), a já precária situação interna se tornou insustentável. Os Romanov, a Casa Real que governava o país há quatro séculos, viam seu poder minguar a cada dia.
A outrora incontestável autoridade do czar começava a ser ameaçada pelos insucessos militares e por uma massa de trabalhadores insatisfeitos que tinha cada dia menos pão no prato, enquanto, na corte, a comida era abundante. Quando a Grande Guerra estourou, em 1914, o império se viu novamente atolado em um campo de batalha.
Todavia, ao contrário do que acontecera em situações anteriores ,desta vez o povo se preocupava menos com os inimigos externos e mais com a condução do conflito pelo czar. O fato de a beligerância ter sido também uma disputa familiar – o czar Nicolau II era primo do kaiser alemão, Guilherme II – só aumentava o descontentamento. Foi então que veio a Revolução. Não foi a primeira, mas o Outubro Vermelho foi a derradeira.
Liderados por Lenin, Trotsky e Stalin, os trabalhadores e camponeses se insurgiram contra os soberanos. Ao ascenderem ao poder, os Bolcheviques – como eram chamados os revolucionários socialistas – tinham como prioridade retirar a Rússia do atoleiro que era a Primeira Guerra. Apesar de terem conseguido, não sem ceder em uma parte do território nas negociações de Brest Litovsk (1918), se viram mergulhados em outro conflito.
Para que a revolução fosse de fato bem sucedida, precisaram derrotar as forças que ainda eram simpáticas ao czar, os chamados “Brancos” – os Bolcheviques eram os “Vermelhos”. Este conflito ficou conhecido como Guerra Civil Russa (1917 1922), e a vitória dos “Vermelhos” simbolizou não apenas o triunfo da revolução, como a concretização do primeiro Estado socialista do Mundo: a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS).
O triunfo da Revolução Russa e a vitória na Guerra Civil não significaram que o Estado socialista estivesse pronto, pelo contrário. Inicialmente os soviéticos até tentaram espalhara revolução. Entretanto, depois de se saírem vitoriosos na Ucrânia e derrotados na Polônia, e com a ascensão de Stalin a líder máximo da URSS, houve uma reorientação de prioridades. O importante era construir uma nação e colocar a Rússia na história do século 20.
Não fossem essas mudanças empreendidas pelo “Czar Vermelho”, a União Soviética não teria resistido a uma nova investida germânica. Agora nas mãos de Hitler, a Alemanha invadiu a Rússia em 1941. O ditador alemão nunca escondeu seu desprezo pelos povos do Leste, mas chegou a firmar um Pacto de Não Agres são com Stalin em 1939. O “casamento de aparências” entre nazistas e soviéticos durou só até Hitler concretizar a conquista da Europa Ocidental e Central.
Nesse meio tempo, os russos ainda tiveram algumas escaramuças com os japoneses na Mongólia (1939) e travaram uma guerra contra os finlandeses (1939 1940), mas o grande inimigo era mesmo a Alemanha. O sentimento pré Revolucionário de amor à terra natal foi reacendido para que o povo defendesse a “Mãe Rússia” na longa guerra travada contra o invasor germânico.
Entre 1941e 1945, aproximadamente 27 milhões de cidadãos soviéticos morreram no conflito – liderando o ranking do país que mais teve mortos na Segunda Guerra. As duras condições do campo de batalha moldaram um povo já sofri do e fizeram com que, depois de batalhas como Moscou (1941), Leningrado (1941 1943), Stalingrado (1942 1943), Kursk (1943), Bagration (1944) e tantas outras, os soviéticos tomassem Berlim em maio de 1945.
Ao levantarem a bandeira vermelha com a foice e o martelo doura dos, o “sonho de Lenin se tornou realidade”. Como diz uma canção russa, ao “carimbarem (de balas) o Reichstag (parlamento alemão)”,os povos do Leste não eram mais apenas os senhores da Europa, mas do mundo.
O mundo depois da Segunda Guerra era bem diferente daquele de 1939. Os únicos capazes de fazer frente ao Kremlin e seu poderoso Exército Vermelho, eram os Estados Unidos. Além da questão estratégica, a detonação dos dois artefatos nucleares pelos norte americanos contra os japoneses em Hiroshima e Nagasaki (1945), foi um recado claro para Stalin.
A nova fase de conflitos que se iniciava não seria um embate direto – depois da Segunda, ninguém queria uma “Terceira Guerra” –, mas um conflito às sombras, uma guerra não declarada, por procuração entre EUA e URSS via seus aliados. Era o início da Guerra Fria. A arma nuclear é uma ferramenta macabra, pois, dado seu poder de destruição, ela se torna singular: está sempre presente nas discussões (sobretudo nas dissuasões), mas ninguém quer usá-la.
Na única vez em que se cogitou seriamente seu uso, o mundo tremeu ao ver norte-americanos e russos ponderando minuto a minuto o que devia acontecer durante a Crise dos Mísseis de Cuba (1962). Para a sorte de todos, a retórica de ameaças ficou apenas nisso. E a guerra prosseguiu deforma indireta por meio de “procurações”.
Tendo migrado do centro do sistema para a periferia, os processos de descolonização da África e da Ásia e as aspirações de protagonismo da América Latina fizeram com que Estados Unidos e União Soviética lutassem indiretamente por quase cinco décadas. Por vezes, seu envolvimento era direto, como no caso dos estadunidenses no Vietnã (1965 1975) ou dos soviéticos no Afeganistão (1979 1989), mas nunca direto um contra o outro.
A dualidade desse mundo bipolar terminou não com uma disputa física no campo de batalha, mas com uma revolução silenciosa que corroeu as bases do sistema por dentro. As manifestações dentro da chamada “Cortina de Ferro” e o enfraquecimento do modelo de economia planificada fizeram com que o maior símbolo da Guerra Fria, o Muro de Berlim, caísse no dia 9 de novembro de 1989. Depois, e por fim, a própria União Soviética desmoronou, desaparecendo na noite de Natal de 1991.Os Estados Unidos ganharam da Rússia, mas perderam a paz.
Chegou se a cogitar que o fim da URSS seria “o fim da história”. Inclusive, este é o título de um livro do filósofo e economista norte-americano, Francis Fukuyama, em que o fim do mundo bipolar levaria ao início da Era unipolar, em que os EUA reinam absolutos. Mas e depois? A Rússia, este velho Estado, colapsou economicamente, mas nunca foi batido no campo de batalha.
A transição do século 20 para o 21 não foi feliz para o país, mas a ascensão de Vladimir Putin na virada do milênio mudou tudo. Para além de ter estabilizado a questão econômica e controlado os conflitos internos – como as Guerras da Chechênia (1994 2009) –,Putin e seus aliados iniciaram um novo capítulo na história russa.
Chamado em tom pejorativo por seus adversários de “o espião da KGB” – o antigo serviço de inteligência da URSS em que serviu até 1991 – o atual presidente é muito mais que isso. O mandatário é um estrategista que entende a situação do século 21 como poucos. Até seus críticos reconhecem que Putin “está um passo à frente, pois governa à moda antiga”. Isso ajuda a explicar o que acontece na Ucrânia atualmente.
Seria simplista pensar que tudo se resume apenas a uma questão territorial ou mesmo ao “delírio” de um homem. A receita empregada agora é a mesma que gerações de líderes russos utilizaram ao longo da história. Para os toma dores de decisão no Kremlin, o avanço da OTAN – a organização militar do Ocidente na Guerra Fria e que continuou após o fim do conflito – para as fronteiras russas e a proximidade de Kiev com os EUA, é algo inadmissível.
Ademais, a Ucrânia se tornou independente apenas em 1991, tendo uma longa história (por vezes conflitiva) com a Rússia. Tudo é muito recente e velhas disputas ainda estão sendo resolvidas. Ao longo desta reportagem, vimos como um país e seu povo foram sendo formados por mais de mil anos de conflitos. Foi possível também perceber como a guerra é o grande elemento definidor da política e como novos capítulos começaram apenas depois da resolução dos anteriores dentro de um campo de batalha.
Hoje, não seria diferente. A Guerra Fria terminou com os EUA como vencedores, mas sem a derrota de fato da Rússia, que acumulou armamento e munição ao longo de 50 anos para um conflito direto que nunca veio – utilizando os em pouco mais de seis meses de beligerância na Ucrânia.
Com o declínio dos EUA como império hegemônico (a exemplo de tantos que o antecederam), teve início a disputa para ver quem será o novo protagonista da ordem internacional. E, como já nos ensina a História, dentro de um campo de batalha. Em pleno século 21, a guerra segue moldando a sociedade.