Em toda a história da Seleção Argentina, houve apenas três afrodescendentes entre quase 1,3 mil jogadores alguma vez selecionados
Nunca foram milhões! Estima-se que cerca de 700 navios tenham desembarcado 72 mil escravos no porto de Buenos Aires, entre 1777 e 1812, na época da colônia. Ou seja, menos de 1% (0,7%) do total de africanos que descera vivo em toda a América — reproduzidos, se multiplicaram inúmeras vezes.
O que foi feito deles e seus descendentes? Por que na atualidade não houve negros na música, na vida política, nos esportes, nas artes e na Seleção de Futebol Argentina campeã do mundo no Catar, em 2022?
Como quase tudo no país vizinho, a questão também gera polêmica e pode ser respondida desde duas correntes investigativas, bem antagônicas. Uma, que este autor desconsidera, é aquela que limpa os arquivos historiográficos de “inconvenientes patrióticos”. Segundo tal tese, os afrodescendentes desapareceram “naturalmente”, de modo quase darwiniano, ajudados pela miscigenação que se repetia geração após geração, embranquecendo a pele dos filhos, netos, bisnetos e tataranetos daqueles escravos...
Por que descartar essa hipótese? Porque, considerando que, em 1810, quando da independência da Revolução de Maio, mais de 40% da população argentina era composta por afrodescendentes e só noventa anos depois, em 1887, era menos de 2%, esse discurso parece leviano, não é digerível.
A curiosa e acelerada evaporação genética, inclinada a favorecer uma única cor de pele, preponderantemente branca, não pode nem deve ser aceita. A ciência explica que ambos os genes (aqueles que determinam a pele branca ou negra) têm o mesmo grau de atividade biológica em média.
Desse modo, a totalidade dos mestiços não poderia perder o tom escuro. Por isso, a segunda resposta, guardada a sete chaves nos anais das controvérsias socioescolásticas argentinas, leva à verdade, embora ela seja menos louvável.
Qual é essa outra tese? Bom, assim como ocorreu com a totalidade das tribos aborígenes, na Argentina do século 19, os negros foram exterminados por decisão do governo, que aspirava construir uma “pátria branca”.
Escolha e seleção de europeização genética planejada e iniciada com os últimos cinco vice-reis do Rio de La Plata e mantida, fomentada e executada nos mandatos das três Juntas, da Capitania Geral, dos três Triunviratos, dos oito Diretores Supremos, dos nove Governadores de Buenos Aires em exercício do Poder Executivo Nacional de fato, do Cabildo e das nove primeiras presidências da recém-independente República Argentina. Nenhum deles arredou o pé. É fato.
Um fato que os censos desses séculos comprovam: em 1778, habitavam Buenos Aires 16.023 brancos e 8.323 “de color” como foi escrito então, isto representa 34% do total da população. De acordo com o livro Febre Negra , de Miguel Rosenzvit, “três em cada dez moradores eram negros”. No entanto, em 1869, noventa e um anos depois, o censo da mesma Buenos Aires só contou 482 pessoas “de color” entre uma população total aumentada sete vezes, de 177.787 pessoas: 0,3% (no interior do país a porcentagem crescia a 2%)...
Devido às precárias condições de higiene e saneamento a que os afrodescendentes foram submetidos nas epidemias de cólera (1859) e febre amarela (1871), em que morreram 1.653 portenhos e 13.614 argentinos respectivamente, essa não foi a razão de seu extermínio (ainda quando, sem cifras oficiais de cor e raça, se sabe que morreram mais negros do que brancos — mais bem-cuidados). Ambos os surtos não foram decisivos, apenas se apresentaram como uma inesperada ‘colaboração’ ao “programa de branqueamento”, digno do nazismo.
Tão drástica foi a diminuição de negros nessas nove décadas que, devido ao número insuficiente de afrodescendentes, no século e meio seguinte eles deixaram de ser registrados nos censos do país. Hoje, os herdeiros do sangue daqueles primeiros negros, inicialmente trazidos de Angola, Congo e Moçambique e até da Nova Guiné, só atingem cerca de 0,3% da população argentina: 149.493 dos 40.117.096 contabilizados no último censo, no ano 2010.
Outra verdade indiscutível é que toda a população mais nobre, branca e proeminente da nova nação apoiou por completo o projeto europeizante dos distintos governos já identificados. Tal era o racismo naquele momento que o aplaudido poeta José Hernández, em 1872, apresenta seu heroico Martín Fierro (no livro homônimo, poema narrativo escrito em verso que é símbolo e orgulho nacional), dizendo: “Deus fez os brancos / São Pedro fez os mulatos / o diabo fez os negros / para brasas do inferno”. Além disso, nessa mesma obra literária, considerada exemplar do gênero gaúcho e leitura obrigatória nas escolas (semelhante ao Quixote na Espanha e Os Lusíadas na língua portuguesa), à mulher negra que entrava em uma dança, chamava-a de “vaca”.
Não surpreende tal ofensa, pois, considerada um sujeito inferior e duplamente discriminada pela cor e sexo, a negra na literatura vernácula foi retratada a partir da esfera política e social como um objeto acessório por quase todos os autores.
De acordo com Djibril Mbaye, professor do Departamento de Línguas Românicas da Faculdade de Letras e Ciências Humanas da Universidade Cheikh Anta Diop, de Dakar, Senegal, os consagrados escritores argentinos daquela época, José Mármol e Esteban Echeverría, em suas ponderadas obras Amalia (1851) e El Matadero (escrito entre 1838 e 1840, publicado post mortem em 1871), descreveram a negra como “uma figura reveladora e animalizada”.
Já no caso dos homens negros, eles se tornaram “bucha de canhão”: foram transformados em soldados de primeiro ataque e defesa inicial em todos os exércitos argentinos daquele revolucionário século 19. Isso é verdade e, nobreza obriga, diga-se que tal prática era comum em outras latitudes, mas talvez nunca de forma tão planejada, duradoura e cristalizada como aconteceu na Argentina.
Miriam Victória Gomes, integrante da Sociedade Cabo-Verdiana na Argentina, e por isso palavra mais do que autorizada, chegou às origens deste extermínio sistemático, que utilizou as armígeras forças militares para fins patrióticos. Escreveu: “Em 1801, as formações de milícias com negros foram regulamentadas, chamadas de Companhias de Granadeiros de Pardos e Morenos… Quando, em 1806, ocorreu a primeira invasão inglesa de Buenos Aires, encontramos a participação dos negros na defesa da cidade”.
Pardos e morenos não passam de eufemismos pretensiosos que ordinariamente tentaram dignificar a negritude desses soldados. O governo os iludiu melhorando — na aparência — seu status, dando-lhes espadas e uniforme. Também contingência e ordens. Mera treta.
A mesma autora, também membro da Cátedra Aberta de Estudos Americanistas da Universidade de Buenos Aires, lembrou: “Quando San Martín retornou da Espanha para servir seu país, em 1812, sua primeira missão foi organizar o Regimento de Granadeiros Montados. No final daquele ano, assumiu o comando do Exército do Norte: suas tropas eram compostas por 1.200 homens, dos quais 800 eram negros libertos, ou seja, escravos resgatados pelo Estado para o serviço das armas (...). A morte em massa de africanos e afro-americanos recrutados para o Exército dos Andes foi um fato repetido durante a campanha do Chile, Peru e Equador, entre 1816 e 1823: dos 2.500 soldados negros que começaram a travessia dos Andes, 143 foram repatriados vivos...”.
Gomes termina esse trecho com um dado inapelável: “A frase de San Martín, depois de percorrer o campo de batalha de Chacabuco (1817) – ‘Pobres negros!’ –, dá conta dos inúmeros cadáveres daqueles que tinham pertencido ao Batalhão n.º 8, composto pelos libertos ‘resgatados’ de Cuyo”.
Lentamente, começava a materializar-se o que presidentes da nação como Bartolomé Mitre (sete anos, de 1861 a 1868) e Júlio Argentino Roca (doze anos, em dois períodos, entre 1880 e 1904) coroariam três quartos de século depois, com a segunda campanha ao deserto. Que nada mais foi do que o branqueamento de toda a ‘raça argentina’, sem indígenas, sem mulatos e sem negros, para demonstrar ao mundo que se tratava de “um país europeu aninhado na América do Sul”.
O Exército original de Blandengues, encarregado de guardar as fortificações fronteiriças e que no século anterior com toda a pompa recrutava — na sua criação em 1751 — “pessoas de nascimento honesto e de bom comportamento, robustas, de boa estatura e coragem conhecida (...), brancas e de tamanho bonito”, nessa altura havia mudado. Sim, meio século mais tarde, quando os espanhóis foram expulsos, pelo menos 80% dos Blandengues era de ‘triguenhos’ ou ‘morenos’, categorias usadas para descrever a cor da pele, sob as quais se infere que encobertamente incluíam afrodescendentes e, também, ‘índios hispânicos’ e mestiços.
De acordo com o estudo de Diana Roselly sobre desertores daqueles exércitos, “em apenas seis dos processos judiciais aparece a categoria de branco, mas outras caracterizações como ‘boa cor’ aparecem”. Infere-se, em consequência, que as outras dezenas de julgamentos eram de ‘não brancos’. A autora de Los Blandengues continua: “Uma peculiaridade desta Companhia era que os afrodescendentes foram incorporados em relativa igualdade, ao contrário de outros espaços em que as milícias de pardos e morenos eram segregadas”.
Por sua vez, o jornalista Alejandro Maidana não deixa dúvidas da participação negra nessas guerras. Ele destaca: “Um fato revelador do general José de San Martín, em 1816, revelaria que 400 mil negros estavam disponíveis para serem recrutados em diferentes batalhas”. E pergunta: “Então, o que aconteceu com aqueles seres humanos. O governo iludia os negros melhorando (na aparência) seu status, dando-lhes uniformes, contingência e ordens que souberam habitar essas terras?...”
Aconteceu que entre a defesa de Buenos Aires nas frustradas invasões inglesas (1806) e a campanha final de Júlio Argentino Roca à “terra adentro”, como se dizia então, ocorrida quase no final daquele século (1885), os regimentos de afrodescendentes participaram de muitas aventuras e mais batalhas, sempre protagonizando o infausto papel de ‘boi de piranha’. Assim, morreram quase todos. Isso aconteceu.
Uma aventura das mais significativas nesse sentido, naquele interregno de menos de um século, foi a primeira campanha ao deserto, no sul do pampa. Essa expedição de 1833 foi chefiada pelo caudilho federal Juan Manuel de Rosas, com duas colunas de apoio (ao centro e à direita dele e também na geografia argentina), capitaneadas pelos generais José Ruíz Huidobro e José Félix Aldao, respectivamente. Foi nelas que, provavelmente, a maioria dos negros “batera as botas”.
Martha Eugenia Delfín Guillaumin, doutora em Estudos Latino-Americanos da Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade Nacional Autônoma do México, em seu livro 'A Campanha do Deserto de 1833' na Argentina, relata: “Os homens de Rosas eram 2.000 soldados de infantaria, artilharia e cavalaria da província de Buenos Aires, mas ele também estava acompanhado por médicos, geógrafos e engenheiros (o engenheiro da expedição era Feliciano Chiclana), 25 marinheiros (para os navios que foram transportados desarmados para chegar ao Rio Colorado e navegá-lo), mulheres (não precisamente as da ‘ordem de Rosas’ — ‘mulheres da vida’, prostitutas, a maioria negras —, mas as esposas e cozinheiras dos expedicionários), e, claro, não podiam perder os comerciantes que ‘fizeram o seu agosto’ nessa campanha de 1933. (...) Os expedicionários tinham um grande número de carroças com suprimentos, 6.000 cavalos, éguas e rebanhos de bois.”
Mas a própria autora se vê obrigada a pular a crônica oficial, defensora da teoria de que essa campanha civilizadora fez bem ao país (na realidade, aos latifundiários), terminando com as incursões de indígenas selvagens e mal viventes, escondendo o massacre dos negros.
Ela busca em fonte neutra o dado que falta nos registros oficiais. E o encontra em Los Indios Pampas, de Rómulo Muñiz, de 1931: “Quanto à divisão da esquerda — a de Rosas —, era composta por um exército que segundo Charles Darwin (que na época estava na Patagônia argentina fazendo uma viagem científica), parecia uma tropa de ‘vilões e pseudobandidos’ por causa da qualidade dos membros entre os quais havia mulatos, mestiços, negros e índios, todos em número considerável. De qualquer forma, supõe-se que o corpo de tropas sob o comando de Rosas era o mais bem equipado e forte”.
Assim como o científico e naturalista Darwin está isento de qualquer suspeita ou parcialidade, isso também significa que as colunas de Ruíz Huidobro e Aldao, menos preparadas e mais limitadas, tinham mais mestiços, ‘índios amigos’ e negros. Ruiz Huidobro falhou. Derrotado em San Luis pelo cacique Yanquetruz e descritas suas ações como de “conduta ridícula” em cartas oficiais, ele retornou a Córdoba e sua expedição, dizimada, acabou dissolvida.
Por sua vez, com mais desentendimentos que ações, Aldao obedeceu a ordens superiores e voltou a Mendoza com uma mácula importante: ele deixou as passagens andinas abertas para os aborígines irem e virem para o Chile à vontade. Quantos afrodescendentes morreram aqui? Não há números, mas foram bastante, como sempre muito mais do que brancos, mais bem apetrechados e menos expostos no combate corpo a corpo.
Para alguns observadores, Ruíz Huidobro e Aldao fracassaram porque não tinham em suas tropas um oficial como Federico Rauch, também chamado ‘O Açougueiro’. Ele foi um militar prussiano que, em 1819, chegou ao país pelas mãos do governador de Buenos Aires, Martín Rodríguez, para encarar três infelizes campanhas até a fronteira incivilizada, a demarcada com os indígenas que os novos argentinos queriam extinguir. Rauch destacou-se em comandar, entre outros, o Primeiro Esquadrão dos Húsares, composto principalmente por negros que ele ensinou a matar sempoupá-los de punições severas.
Em 1826, graças à sua enaltecida formação europeia (tinha sido oficial de Napoleão), foi contratado pelo presidente Bernardino Rivadavia (1826-27) para perseguir a tribo dos Ranqueles e colocar em prática sua ‘Lei de Enfiteuses’ (uma espécie de arrendamento vitalício de terras, que favoreceria os ‘patrícios’ acomodados e não os novos imigrantes como se tinha dito no Congresso).
Graças a essa lei, 538 famílias (Anchorena, Alzaga, Alvear, Azcuénaga, Bernal, Díaz Vélez, Dorrego, Escalada, Ezcurra, Yrigoyen, Lacarra e Larreta entre outros da estirpe) tomaram mais de 8.600.000 hectares: 16 mil hectares cada, em média. Obviamente, nenhum negro recebeu um único centímetro quadrado de terra…
Receberam flechaços e punhaladas, balas de chumbo e vala comum na hora do sepultamento. Segundo algumas fontes, nos fracassos de Ruíz Huidobro e Aldao, muitos negros sucumbiram, proporcionalmente bem mais do que os treinados por Rauch. Mas isso não interessava a ninguém. Os fazendeiros desse tempo amavam o prussiano porque ele, favorecido pela ‘lei de fuga’, não escrita, mas adotada por exércitos de todo o mundo, não fazia prisioneiros: ele matava. E se fosse necessário informar ao governo central por falta de reféns, a resposta era sempre a mesma: “eles pretenderam escapar, foram mortos em fuga”.
De acordo com Osvaldo Bayer, célebre historiador argentino, Rauch foi um genocida em cujos informes militares se gabava do que deveria envergonhá-lo: “Hoje poupamos balas, cortamos as gargantas de vinte e sete ranqueles”, disse um deles de 1826, escrito pouco antes de contrair enlace. Morreu na batalha de Las Vizcacheras, em 1829, espetado pelo chefe ranquel Nicasio ‘Arbolito’ Maciel, quem o degolou e pendurou a cabeça em um totem à vista de todos. Esse combate, pertencente à guerra civil argentina, foi outra chacina de ‘afrosoldados’."
Morriam ou sobreviviam para morrer na batalha seguinte. Foi assim a vida dos negros nesse tempo. Nunca houve paz para eles. Gomes, também membro da União das Mulheres Afrodescendentes da República Argentina, ratifica isso quando conta que imediatamente ou em paralelo, antes ou depois, os negros “se juntaram às fileiras da guerra contra o Brasil (1825 a 1828). Os sobreviventes foram absorvidos pelas guerras civis entre Unitários e Federais. O general de Brigada e governador de Buenos Aires, Don Juan Manuel de Rosas, convocou-os [os negros] para formar o Batalhão Provincial e o Batalhão do Restaurador. Anos mais tarde, as batalhas de Caseros, Cepeda e Pavón os confrontaram de ambos os lados”, ou seja, negros matavam negros.
Sem paz nem descanso de espírito para eles, em 1864 começou a Guerra da Tríplice Aliança, em que Argentina, Brasil e Uruguai, unidos, aniquilaram 90% da população masculina adulta do Paraguai: não há registro em outros lugares de nada semelhante nesse aspecto. Os netos de negros que sobreviveram às invasões inglesas e à luta do Exército dos Andes e, por sua vez, filhos de negros que sobreviveram à guerra civil e às expedições de Rosas, Huidobro e Aldao, finalmente deixaram seu sangue nos campos de batalha paraguaios.
O historiador argentino Ignacio Telesca, coautor de Negros de La Patria, lembrou em reunião cultural em Assunção, que embora “a escravidão já tivesse sido abolida na Argentina e no Uruguai, não no Brasil e no Paraguai, onde, dada a necessidade de soldados enfrentarem as tropas aliadas, muitos escravos afrodescendentes foram usados, e foram até comprados pelo Estado, para serem integrados às fileiras de seus exércitos”.
Brasileiros e orientais haviam aprendido essa lição dos governos militares argentinos... Vale esclarecer que, na Argentina, a liberdade de ventre foi ditada em 1813, mas apenas quarenta anos depois, a Constituição da Nação, em 1853, aboliu completamente a escravidão em seu artigo 15. Já no Uruguai a abolição foi decretada em 1842, no Paraguai em 1869 e no Brasil em 1888. A Guerra da Tríplice Aliança terminou em 1870 com incontável saldo de negros falecidos nas tropas dos quatro países intervenientes.
Cinco anos mais tarde, quando já não existia o chamado Batalhão de Castas, que se distinguira por sobre os dois regimentos de infantaria de negros libertos (Sétimo e Oitavo), os poucos ‘afrosoldados’ ainda de pé na Argentina tiveram seu golpe final na falada expedição de Júlio A. Roca, na chamada “segunda conquista do deserto” (1872-1875). Esse foi o fim do duplo genocídio (de indígenas e de negros) que durou mais de oito décadas.
Os índios seriam arrasados defendendo as terras que eram deles e os últimos negros morreriam por uma causa ignóbil e alheia aos seus interesses, como todas as outras intervenções nas que foram envolvidos, e sempre sem o mínimo reconhecimento. Mas tudo isso quase não é falado na Argentina, muito menos ensinado nas escolas.
A história oficial argentina dedicou parágrafos mínimos e letra pequena aos afrodescendentes e demorou muito para fazer alguma reivindicação verdadeira na narrativa patriótica. Recentemente, em 2013, o país instaurou que o dia 8 de novembro seja o “Dia dos/das ‘Afro-argentinos/as’ e da Cultura Afro”; data escolhida em memória do falecimento de uma célebre guerreira negra na luta pela Independência, María Remedios del Valle (conhecida como ‘La Capitana’, ‘Madre de la Patria’ e ‘Niña de Ayohuma’).
Essa figura feminina finalmente foi introduzida no panteão dos arquétipos de conduta pessoal e social junto ao ‘Negro Falucho’, o ‘Tamborcito de Tacuarí’ e o ‘Sargento Cabral’, os únicos outros afrodescendentes frisados na literatura educativa, passando também ela — primeira mulher — a formar parte da pedagogia patriótica fundacional, como ressalta, num artigo de 2016, Florencia Guzmán (Afro-argentinos, Guerra e Política).
Vale aqui ser dito que o valente e desarmado ‘Tamborcito de Tacuarí’ só tinha 12 anos de idade quando foi morto, em 1911, na batalha que deu nome à sua lenda: ele, anotado Pedro Rios nos documentos, tocava o tambor (aumentando a coragem dos soldados na hora dos confrontos) no Exército de Manuel Belgrano, criador da bandeira argentina.
Além disso, era guia pessoal do capitão Celestino Vidal, que era cego. Ou seja, para os negros também não existia idade mínima na hora do recrutamento (a história oficial relata que o pai do menino insistiu para que Belgrano o aceitasse – supostamente o famoso militar não queria expô-lo aos riscos dos combates, mas...).
Esses poucos são os nomes exaltados no material escolar; para encontrar mais algum outro negro destacado, há que ir a recentes trabalhos especializados, como o divulgado por Horacio Mosquera, diretor do Museo del Cabildo, de Buenos Aires, e Carolina Penissi, investigadora, intitulado La Historia de La Esclavitud en América..
Aí se lê que “em junho de 1812, um escravo chamado Ventura denunciou que Martín de Álzaga — o herói da Defesa contra os ingleses em 1807 — estava preparando uma conspiração espanhola contra o governo. Por esta ação, Ventura foi premiado com a liberdade e os revolucionários receberam a medalha ‘Por Fiel à Pátria’. No Museo del Cabildo encontra-se a medalha”.
Em sua tese de doutorado, Índios Mortos, Negros Invisíveis, José Luis Grosso cruamente diz: “As conquistas do deserto pampeano-patagônico e do deserto do Chaco foram associadas à colonização desses espaços com contingentes de imigrantes. A mentalidade ‘civilizacional’ não tolerava os ritmos e modalidades de vida social das Províncias ‘interiores’, populações históricas em que os traços étnicos coloniais (índios internos, somados aos negros e suas misturas) eram evidentes. Uma forma de transformar a ‘massa’ social era ocupar os novos espaços com os imigrantes europeus: o ‘índio’ foi deslocado para levantar colônias de imigrantes em suas terras (Gastón Gori, 1988). Outra maneira de intervir no clareamento e europeização dessa ‘pasta’ escura e indesejada era favorecer sua vizinhança e sua mistura com as ‘raças superiores’...”.
Grosso, exemplificando com a província de Santiago del Estero, aponta: “Pode-se pensar que a crescente miscigenação deu lugar ‘naturalmente’ ao desaparecimento ‘real’ dos negros e índios nos ‘mestiços’. Mas ressalto que foi desenvolvida uma política nacional de homogeneização que consistia em não mais nomear marcas indesejadas na cidadania: em primeiro lugar, ‘negros’ e ‘cholos’ (camponeses das cidades das áreas montanhosas do centro do país, formados em sua maioria por autóctones que haviam sido assimilados à cultura hispânica) e, em segundo lugar, ‘índios’...”. Foi isso, por tremendo e difícil que resulte aceitá-lo.
Caso contrário, como se justifica que no sistema educacional de 1938, naquela mesma província, se ensinara com as cartilhas de Medardo Moreno Saravia, em que, na Lição 21, Estado do Povo e da Sociedade (ou Processo Etnológico e Sociológico), lê-se sobre o Período Colonial, em seu capítulo 1: “Aqui você vê como Deus nos libertou dos negros”. O Inspetor conta como a introdução ‘desastrosa’ de escravos negros na América e no Vice-Reino do Peru não afetou a ‘qualidade’ da população de Santiago e nem mesmo, em geral, a da Governação de Tucumán, já que aqui eles passavam sem se deter, rumo ao Potosí (onde estavam as principais minas de ouro e prata, riquezas que sustentavam a coroa espanhola). Nunca na região os negros estiveram ‘em quantidade perigosa’.
E a cartilha conclui: “Deus prestou um grande serviço a Tucumán ao libertá-lo desta raça feia e rude”. Por que toda essa insensibilidade? Por que essa necessidade de europeizar um povo à custa de outros, dos povos indígena e negro? Por que incluir a Deus e sua divina decisão para justificar o racismo e a própria crueldade de um insano propósito de ranqueamento, que, por outro lado, não foi replicado em nenhuma outra latitude latino-americana…
É verdade que o negro na Argentina não tinha a utilidade escrava que demonstrava em quase toda a América e no Caribe (na Argentina, então, não havia plantações de açúcar, café, arroz ou bananas, as culturas mais prósperas da época). Além disso, o negro não era “hombre de a caballo”, expertise fundamental para o trabalho no campo. Consequentemente, os afrodescendentes eram, em sua maioria, urbanos. Artesãos ou assistentes, sempre envolvidos em atividades mal pagas que os brancos não queriam exercer. Também lavoravam em tarefas cujas múltiplas habilidades manuais os destacavam sobre os nacionais toscos e mal entretidos.
Assim, o Exército facilmente os recrutava com falsas promessas econômicas jamais cumpridas. Armavam-nos com baionetas para explorar ‘saladeros’ (lugar onde se salgam as carnes) em regiões inóspitas ou transformar terras virgens em fazendas de gado (não eram férteis nem apropriadas para a lavoura agrícola). Esse aliciamento acontecia sistematicamente, sempre que os índios ataca vam as aldeias brancas em busca de alimentos e outros bens, o que era costume em cada período de seca, uma ou duas vezes por ano, todos os anos.
Os poucos negros que viveram para contar a história (embora ninguém nunca os tenha ouvido) acabaram nas grandes cidades, aleijados e envelhecidos, mendigando. Eles nunca foram condecorados, sequer mencionados. É por isso que a pergunta de Florencia Guzmán é tão apropriada: “Quanto às promoções militares e à composição da oficialidade patriota, a afirmação de que os homens de cor, apesar de todos os méritos demonstrados nas guerras coloniais e revolucionárias, não alcançaram em nenhum caso o posto de oficiais, é válida?”.
Nem brasões nem pagamento adequado, embora o professor de História Raul Fradkin, em A Conspiração dos Sargentos, diga que “muito provavelmente, o nível dos salários militares poderia ter sido ainda maior do que o que eles obtinham como trabalhadores não qualificados...”.
Desmascarando os livros de ensino acadêmico e curricular, há muitos autores que concordam com a existência discriminatória, pela “cor preta”, nas hierarquias do Exército, o que se pode entender como uma forma camuflada de escravidão relativa: eles só podiam seguir ordens, nunca as dar.
Martha Goldberg, integrante do Comité Científico Internacional do Programa da UNESCO, em Milícias e Tropas Negras de Buenos Aires, enfatiza o caráter segregativo da militarização pré e pós-revolucionária. A professora Silvia Mallo, coautora de Negros de La Patria, analisa o discurso de senhores, escravos e autoridades em torno das concepções de liberdade, propriedade e experiência revolucionária, em tempos de transição e convulsão renovadora.
Já a antropóloga Carmen Bernand (Escravos Negros e Livres nas Cidades Latino-Americanas) e Marcos J. Carrizo, em sua tese de licenciatura (Córdoba Morena), observam esse processo garantindo que ele não é linear ou progressivo, mas atravessado por avanços e retrocessos, continuidades e rupturas, juntamente com as suas próprias lógicas locais e regionais. Sim, houve diferenças entre um lugar e outro, uma década e outra, mas, no fundo, o negro sempre foi vítima. Na Argentina do século 19 ele enquadrou-se tal qual intitula seu livro a investigadora Liliana Crespi: Nem Escravo Nem Livre.
Todo o dito leva água ao moinho do professor americano George Reid Andrews, autor de Os Afro-argentinos de Buenos Aires, o qual confirma que “o uso de tropas de ataque negras, em preferência às unidades brancas e a consequente eliminação da população afro-argentina na consecução desses objetivos militares” é fato... Foi o mesmo que, infelizmente, de algum modo, se repetiu no mais recente 1982, quando a fatídica Guerra das Malvinas, em que — do lado argentino – apenas a oficialidade não era parda, morena ou de origem provincial pobre e periférica do interior. Somente esses ‘eleitos’ podiam conviver nessas trincheiras com o falho treinamento recebido, uma alimentação ainda mais escassa, sem abrigo nem calçado de acordo com o frio austral e com armamento obsoleto. Como aqueles negros, estes soldados foram e são heróis sem justa honra e de lamentável esquecimento.
É por isso tudo que não há negros na Seleção Argentina. Não há nenhum ‘afro’ no time que conquistou o terceiro título mundial no Catar, nem há pretos naquele que conquistou o segundo troféu no México 1986. Só houve um goleiro suplente negro no elenco que levantou a primeira taça do Mundo em 1978. Pior do que isso, em toda a história da Seleção Argentina de Futebol, houve apenas três afrodescendentes. Três entre quase 1,3 mil jogadores alguma vez selecionados. Três em 120 anos de futebol...
O primeiro foi em tempos do amadorismo. Seu nome: Alejandro Nicolás de los Santos. Filho de angolanos, mas nascido em Entre Rios, estreou na derrota 0x1 para o Uruguai, em Montevidéu, em 10 de dezembro de 1922. Ele jogou outras quatro partidas pela Seleção nacional (incluindo a vitória por 2x2 com o Brasil na Copa América de 1925, vencida pela segunda vez pela Argentina). Não marcou gols com a camisa ‘albiceleste’.
O segundo afro-argentino foi José Manuel Ramos Delgado, que, depois de triunfar no River Plate, disputou a Copa do Mundo de 1962. Mais tarde, transferiu-se para o Santos F.C. de Pelé. Defensor da hierarquia, quando se aposentou ficou morando no Brasil. Filho de pai cabo-verdiano — de San Vicente — e mãe argentina, nasceu em Quilmes (cenário da primeira invasão inglesa repelida), ele teve a honra de ser capitão da Seleção Argentina na Copa das Nações, disputada em São Paulo em 1964, e conquistada pela Argentina após derrotar o Brasil por 3x0 na final. Com a divisa da AFA disputou 25 jogos. Morreu em 2010.
O terceiro e último, foi Héctor ‘Chocolate’ Baley, goleiro substituto de Ubaldo M. Fillol na Copa do Mundo de 1978. Nascido em Ingeniero White (geografia pampiana daquelas “expedições ao deserto”), entre outros clubes custodiou o arco de Estudiantes de La Plata e Independiente de Avellaneda, clubes onde foi campeão, incluindo um título intercontinental. Na Seleção Argentina disputou 13 partidas, todas amigáveis, nenhuma oficial. Hoje tem 72 anos.
#SaludoAlbiceleste 🇦🇷 Hoy cumple 71 años Héctor Baley, 🧤 arquero campeón del mundo en 1978 con la Selección @Argentina ¡Felicidades! 👏👏 pic.twitter.com/VY1Ma2R95E
— 🇦🇷 Selección Argentina ⭐⭐⭐ (@Argentina) November 16, 2021
Jogadores como José Manuel D. Laguna (Copa América 1916), Oscar Ortiz (Copa do Mundo de 1978) ou Héctor Enrique (Copa do Mundo de 1986), entre vários outros, responderam ao apelido de ‘Negro’, mas não eram de origem ‘afro’, apenas tinham tez escura.
De suas feições deduza-se que eles não descenderam das viúvas daqueles negros que morreram por um país que jamais os valorizou; mulheres que eram virtuosas domésticas, de múltipla servidão ou esperançosas cozinheiras que muitas vezes engravidavam dos filhos de seus patrões brancos que se “estreavam” com elas, miscigenando a reprodução. Isso foi habitual com as fêmeas que não eram levadas junto das milícias, para “aliviar” os soldados entre combate e combate, esperando por uma morte difícil de enganar.
Essa é a verdadeira história por que San Baltasar e San Benito são venerações quase extintas na Argentina e por que o candombe foi pouco menos que sufocado nas ruas de paralelepípedos de San Telmo. O relatado explica por que os orixás não são populares nos guetos de Buenos Aires nem do interior e elucida por que o substantivo ‘Negro’ se tornou um apelido comum e carinhoso, tanto quanto são ‘Flaco’,‘Capo’, ‘Tano’, ‘Gordo’, ‘Turro’ ou ‘Pibe’.
A transformação da palavra “negro/a” em uma alcunha coloquial, de alguma forma, ainda que indireta, “ajuda” a negar a história genocida e exterminadora e colabora para tornar invisível o afrodescendente. Nos últimos 150 anos, os argentinos cresceram sem vizinhos negros, sem colegas de escola negros, sem professores negros, sem policiais ou ladrões negros, sem cozinheiros negros, sem parentes negros, sem namoradas negras, sem presidentes negros, sem idolatrias negras e sem aprender nada a respeito dos negros; eles já eram invisíveis...
O único contato, preferentemente visual e a distância, sempre foi ver futebolistas negros importados, geralmente do Brasil (Domingos da Guia, Dorval, Paulo Valentim, Walter Machado da Silva, Petronilo do Brito) ou do Uruguai (Tomás Rolan, Jorge J. González, Carlos A. Sánchez, Juan C. Mesías, Nicolás de la Cruz). Eram uma raridade, de alguma forma ainda são uma curiosidade, embora hoje cheguem preferencialmente de países do Pacífico (Colômbia, Peru, Equador).
Nunca foi ensinado nas escolas da Argentina que os negros foram aniquilados como o Ku Klux Klan pretendeu sem sucesso nos Estados Unidos. “Essas coisas” eram vistas no cinema sem que se soubesse se elas eram fato ou ficção, como acontecia com os filmes de Tarzan ou Batman. Nenhum professor contava nem conta que eles foram suprimidos nos censos e apagados do mapa por extermínio genocida. É por isso que nenhum argentino adverte que na sua Seleção há apenas brancos. Sempre foi assim.
Pelo contrário, nos colégios se exaltam os genocidas, claro que sem usar-se essa palavra, substituída por “próceres” ou outras perífrases semelhantes. Assim, eles são pró-homens da história civilizatória nacional, como Domingo Faustino Sarmiento, “o grande mestre argentino” que mais do que ninguém queria uma nação branca, o deixou escrito em reiterados textos.
No penúltimo capítulo de seu livro Facundo (1845), destaca: “Felizmente, as contínuas guerras já exterminaram a parte masculina dessa população [negra] (...) Por causa das três raças das quais se tornou o tipo popular argentino do início do século, duas delas – o negro e o índio – são, em sua ‘pureza’, radicalmente inferiores à raça branca ‘pura’. Em uma hierarquia supostamente natural e determinante, o tipo intermediário entre cor e brancura, isto é, o mestiço e o mulato, só são resgatáveis como um ser pensante na proporção de sua quantidade de sangue branco”.
Embora Sarmiento, contraditório e ao seu modo, sempre distinguisse o negro por acima do indígena, em outra obra, Viajes , de 1849, ele aponta: “o negro é incapaz de subir às altas regiões da civilização”. Vinte anos depois, em 1869, sendo já Presidente da República e escrevendo de Buenos Aires, detalha o negro como “uma criança que canta, ri, dança e obedece. Deus o deixou assim, meio crescido”.
Sarmiento nunca ficou vermelho. Nem quando disse: “como raça, como elemento social, já não são mais do que um acidente passageiro, tendo desaparecido completamente nas províncias (...). De Buenos Aires, daqui a vinte anos, será necessário ir ao Brasil para vê-los em toda a pureza de sua raça.”
Incrivelmente, apesar disso tudo, nos ginásios, liceus, ateneus, escolas e institutos argentinos continua-se cantando “Glória e louvor ao grande Sarmiento... Glória e louvor, honra inigualável para o grande entre os grandes, pai da sala de aula, Sarmiento imortal. Glória e louvor!”. O eminente venezuelano Simón Bolívar disse bem: “Um povo ignorante é um instrumento cego para sua própria destruição”.
Essa provocada ignorância e tamanha negação privaram a Argentina de, talvez, ter um Nelson Mandela, uma Maria Firmino dos Reis, um Pixinguinha, um Cassius Clay, um Jesse Owens, um Barack Obama, um Aleijadinho, uma Tina Turner, um Machado de Assis, uma Alice Ball, um Louis Armstrong, um Michael Jackson, um Usain Bolt, uma Billie Holiday, um Martin Luther King, uma Serena Williams, um Bob Marley, um Stevie Wonder, um Grande Otelo, um Michael Jordan, uma Aretha Franklin, um Benjamin Banneker, uma Katherine Johnson ou um Lewis Hamilton.
E também privaram a Seleção Nacional de Futebol de desfrutar um Garrincha, um Mbappé, um Didi, um Eusébio, um Jairzinho, um José Leandro Andrade, um Carlos Alberto Torres, um Alberto Spencer, um Roberto Dinamite, um Júlio Meléndez Calderón, um Ronaldinho Gaúcho, um Roger Millá e — por que não? — um Pelé. Vidas negras não importavam…
Edgardo Martolio é jornalista e escritor (laureado com o Troféu Raça Negra, da Sociedade Afro-brasileira de Desenvolvimento Sóciocultural – Afrobras– e pela Universidade Zumbi dos Palmares – Unipalmares – em 2008).