Em nova obra, Lilia Moritz Schwarcz mostra como o racismo se disseminou no Brasil por meio da imagem
A imagem é clássica: pai, mãe e filhos reunidos posam para um retrato em um estúdio profissional de fotografia, algo bastante comum no começo do século 20, quando o registro de uma imagem de família era considerado um grande evento.
Muitas vezes, tratava-se de um momento único da vida familiar, já que “tirar um retrato”, nos tempos em que a fotografia galgava os primeiros passos, era muito caro, complicado e reservado a poucos e selecionados momentos, uma espécie de registro familiar para a posteridade. Naquele tempo se fazia uma foto da família e nada mais, o que, certamente, causaria estranheza aos atuais fãs dos smartphones e a possibilidade de dezenas de fotos em um único dia.
Na cena, que ilustra bem a sociedade patriarcal da época, o pai, como o grande chefe e provedor familiar, está sentado com uma criança no colo ao centro, com a corrente do relógio de bolso aparecendo no colete do paletó, símbolo de ostentação, e tendo ao lado o filho maior, de pé. A esposa, de pé, pousa o braço suavemente nas costas do marido. Todos impecavelmente vestidos com as melhores roupas, bastante justificável para a ocasião especial.
O 'Retrato da Família' (que estampa a capa desta matéria), feito no ano de 1910 em um estúdio fotográfico em Diamantina, Minas Gerais, é muito semelhante a outros retratos tirados por famílias de todo o país. O que chama a atenção é a menina e a mulher nos cantos direito e esquerdo da imagem, posicionadas de forma a segurar um painel de fundo para a fotografia oficial.
Praticamente invisíveis e com roupas muito simples, a mulher e a menina negra não faziam parte do roteiro, nem mesmo como coadjuvantes, e foram cortadas da foto tradicional da família, ressurgindo décadas depois em uma espécie de making off do fotógrafo.
A função delas era apenas segurar o painel para uma cena de fundo fake do retrato familiar. São elas, porém, que chamam a atenção da historiadora e antropóloga Lilia Moritz Schwarcz em seu mais recente livro 'Imagens da Branquitude – A Presença da Ausência' (Companhias da Letras).
Na publicação, Lilia mostra, por meio das imagens, como o racismo estrutural se consolidou ao longo da História do Brasil. Mostra como a branquitude, algo difícil de explicar, mas facilmente percebido em imagens, exerceu um domínio político, econômico, cultural e social desde o início da colonização.
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Para isso, Lilia, professora titular do Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo (USP) e eleita este ano para a Academia Brasileira de Letras (ABL), reuniu ampla iconografia, mostrando o quanto a História disfarçou esse racismo que existe até hoje.
E que, de certa maneira, ergue um muro que impede uma sociedade mais igualitária em um país onde a população negra e parda compõe a maioria da população, segundo dados do IBGE.
À medida que a leitura avança, é como se a autora conduzisse o leitor por um museu repleto de quadros, fotografias, esculturas e estátuas que contam a História do Brasil. Mas a curadora deste museu transportado para as páginas do livro chama a atenção do espectador para prestar atenção nos detalhes sutis daquelas imagens aparentemente inocentes — e muitas vezes ufanistas — mas que, na verdade, escancaram uma desigualdade racial que passa completamente desapercebida aos olhos menos atentos.
Exemplos são encontrados em diversas fotografias e pinturas do século 19. Em especial, naquelas que estão incluídos brancos e negros escravizados. Na esmagadora maioria das imagens — fotografias ou pinturas — os escravizados sempre estão descalços, mesmo nos casos em que estão trajando roupas adequadas. Não terá sido por coincidência, explica trecho do livro, que o viajante francês Jean-Baptiste Debret, que chegou ao Brasil em 1816 como uma espécie de pintor da Corte de D. João VI, reproduziu uma loja de sapatos em uma de suas pinturas.
"Há sapatos por todos os lados: no teto, nas paredes, pelo chão. Sapatos só não estão nos pés dos escravizados", diz o texto.
A imagem de Debret na sapataria ilustra o cotidiano de trabalho forçado no Brasil escravocrata, em que a presença de sapatos nos pés do patrão e a ausência deles nos escravizados são símbolos de um sistema que supõe a posse de uma pessoa sobre a outra.
O certo é que a liberdade calçava sapatos e a ausência deles representava, até alegoricamente, o cativeiro", resume Lilia.
Imagens da 'Branquitude – A Presença da Ausência' é um livro que apresenta a história do Brasil e das Américas de uma maneira atípica, abrindo as janelas para uma visão abrangente e crítica da própria História a partir de elementos, informações e imagens que, muitas vezes, são relegadas a segundo plano ou não exploradas em sua plenitude.
Exemplo disso é a Revolução do Haiti, a única em que negros escravizados conseguiram, por meio da revolução, libertar o país do domínio francês. A história de luta pela liberdade da população negra naquele que hoje é um dos países mais pobres do planeta ainda é pouco conhecida e pesquisada, inclusive nos meios acadêmicos.
"A Revolução Haitiana terminou em 1804, com a vitória dos ex-escravizados e a independência da colônia. Seu apagamento, porém, continua presente", comenta Lilia.
Segundo a historiadora, é importante atentar para o fato de que a imensa riqueza das colônias e os lucros auferidos pelo vultoso tráfico de escravizados no Caribe francês financiaram a própria Revolução Francesa.
"Se a Revolução Francesa pregou a liberdade, a igualdade e a fraternidade sem incluir os escravizados, a Revolução Haitiana seria a primeira e única liderada pelo espírito de liberdade sem pejos e para toda a humanidade. Ela encarnou a possibilidade da abolição e da própria criação de uma República negra", sintetiza a antropóloga, trazendo luz ao que tanto foi esquecido. Finalmente.