Da Grécia Antiga aos dias atuais, a mitologia nos convida à reflexão sobre a potência intuitiva da mulher ao longo da História
No ano de 2015, eu fui a um workshop na Grécia para pesquisar para um livro. Acabei indo visitar Lesbos, paraíso de turismo ecológico, e o que vi foi um choque visceral de realidade. Pescadores lançavam as redes ao mar e traziam pessoas em vez de peixes. Barcos chegavam sem parar. Desespero e medo escorriam pela areia sendo tragados pelas ondas do mar Egeu. Lesbos, antigo espaço de veneração à deusa Afrodite, tinha se tornado o maior centro de refugiados do mundo.
Sentei-me na praia e chorei, impactada pelas cenas. Comecei a me perguntar: e se Afrodite, que fora ali adorada por séculos, voltasse ao mundo? O que a deusa do Amor, da Beleza e dos relacionamentos diria sobre nós? Por ser uma estudiosa de Jung, parto do princípio de que arquétipos são padrões universais que moldam nosso inconsciente, sonhos, mitos e cultura.
Por isso, decidi escrever um romance no qual Afrodite seria a narradora e uma questionadora da sociedade atual. Saí em busca de respostas: onde foram parar o amor e o afeto na sociedade contemporânea? Onde se perderam os ensinamentos da Deusa do Amor?
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Comecei a pesquisa com a historiadora Bettany Hughes, para a quem o mito nos ensina a ver o desejo — ao mesmo tempo a ferida e a cura — não só como libido, mas como a pulsão criativa e caótica que nos move. O mito de Afrodite seria um alerta para não procurar o desejo que destrói, mas o desejo que une comunidades e pessoas.
Os antigos entendiam que o desejo merecia respeito e viam Afrodite como a deusa que misturava as coisas e as pessoas, posto que ninguém controla o desejo, ele não pode ser contido, mas pode ser vivido com consciência.
Afrodite em cada uma das suas histórias seria um lembrete do que acontece quando impomos nossa paixão sobre os outros e ao mundo em volta de nós. Ela representa, entre outras coisas, a força da consequência dos nossos atos.
A segunda parada da pesquisa foi a conversa com o junguiano Roger Woolger, autor de a “Deusa Interior”. Descobri que na Idade Média, houve uma fusão no Inconsciente Coletivo do arquétipo de Afrodite (o desejo, o Amor) ao Arquétipo de Perséfone (a capacidade de andar entre a superfície e o submundo; a capacidade de dar qualidades mágicas a plantas e etc.) associada à imagem da feiticeira.
Nesse momento da história, teve início à caça às bruxas. De acordo com os autos da Inquisição, mais da metade das mulheres foram queimadas não por praticarem magia, mas por provocarem desejo ou por praticarem sexo fora do casamento, pelos chamados pecados da carne.
Para Jung, a perseguição da mulher pela Inquisição, causa o despertar do arquétipo da bruxa no inconsciente masculino. Ele considera que a depreciação da imagem da mulher pela Igreja, gerou um retrocesso na capacidade dos homens de se relacionarem. Pois, ele precisaria controlar “a perseguidora”, provocadora de desejo.
Ao longo da Idade Média, o sexo e o corpo reverenciados antes como algo sagrado nos rituais do templo de Afrodite até século I, passam a ser algo sujo e profano, separando alma de corpo; sexo de espiritualidade. Colocamos o sexo no lugar do profano, limitando-o à esfera de banalização na qual ele está até hoje.
Antes disso, quando a adoração à deusa é levada da Grécia para Roma é associada aos critérios de beleza física da época tais como, os cabelos loiros. Cleópatra quando vai à Roma chega a usar uma peruca com o cabelo das escravas germânicas para se parecer com Afrodite. E assim a deusa primordial da fertilidade que teria vindo da Fenícia acaba sendo associada apenas ao desejo físico.
No meu novo livro que lanço agora, “Rio de Vênus”, Afrodite sai do Olimpo para questionar a sociedade atual enquanto promove um romance — ele, um homem misterioso, conectado com o submundo dos refugiados, através da Interpol e de uma quadrilha que só rouba quadros das deusas gregas pintados por uma irmandade do século XIX. Ela, uma jovem em busca do seu desejo como pintora e como mulher. A deusa narra enquanto busca o porquê de voltar à Terra.
*Patrícia de Luna é psicóloga, analista junguiana, escritora de ficção histórica e palestrante. Especializada em mitologia, é uma spiritual traveller e busca, ao redor do mundo, pesquisadores, livros, documentos, pessoas e vivências para criar narrativas originais.
Como resultado desse processo, publicou os livros Léo no Mundo do Espelho, Saga de Bravos e Rio de Vênus, além do projeto teatral Lenda de Apoena. Também é criadora de conteúdo digital, com foco na divulgação de conhecimentos históricos e mitológicos.