Entenda a importância de 'Cem Anos de Solidão', obra lançada por Gabriel García Márquez nos anos 1960 e que acaba de virar série da Netflix
A Netflix vai lançar nesta quarta-feira, 11, a primeira parte da aguardada série Cem Anos de Solidão, inspirada na obra literária de mesmo nome publicada por Gabriel García Márquez em 1967. Considerado um marco da literatura mundial, o livro é um dos principais representantes do realismo mágico.
"Na pacata cidade de Macondo, sete gerações da família Buendía vivem o amor, o esquecimento e a impossibilidade de fugir do passado e do próprio destino", destaca a sinopse da plataforma de streaming.
Para entender melhor sua relevância, o site Aventuras na História ouviu dois especialistas: Marcos Penteado, professor de Língua Portuguesa da Universidade Estácio, e o autor de "À Beira do Araguaia",Francisco Neto Pereira Pinto, Doutor em Ensino de Língua e Literatura e graduado em Letras.
A obra do escritor colombiano destaca-se por apresentar uma convivência harmônica entre o lógico e o fantástico. Na narrativa, personagens inusitados, bem como acontecimentos sobrenaturais e alegorias são construídos com naturalidade, sem quebrar a coerência da história.
Esses elementos são usados para explorar temas profundos como poder, violência e exploração, compondo uma crítica velada à realidade política e social da América Latina nos anos 1960.
"Por refletir a realidade latino-americana em seus aspectos culturais e em seus valores – com um toque de fantasia e simbolismo – seu impacto na história da região foi imenso", reflete Penteado.
Vale destacar também que Garcia Márquez inovou em sua obra, lançada há 57 anos. Conforme destaca Pereira Pinto, o modelo europeu de realismo mágico se alcançava pela imaginação, enquanto, em "Cem Anos de Solidão", as realidades visíveis e invisíveis estão misturadas. Em sua visão, "essas duas ordens são elas mesmas a realidade" e estão misturadas — assim como a realidade latino-americana é feita a partir da mistura de povos, crenças e religiões.
Conforme lembrado pelo autor de "À Beira do Araguaia", os personagens e enredos de "Cem Anos de Solidão" abordam temas como a opressão, a desigualdade, a corrupção e a resistência, sempre oferecendo uma visão crítica das condições sociais e políticas da região.
"Essa visão complexa da realidade latino-americana, instaurada pelo romance, impactou sobremaneira os leitores internacionais, possibilitando uma compreensão dinâmica, diversa e rica, colocando-se como uma alternativa às narrativas hegemônicas e colonizadoras", afirma.
Penteado complementa lembrando que o ciclo evolutivo de Macondo — a cidade fictícia da obra —, desde sua fundação até sua decadência, "é espelho de povoados, vilas e cidades nas quais muitos de nossos antepassados viveram."
O professor destaca que o livro, assim como tantas outras obras literárias da época, foi inspirado pelo cenário real da América Latina do século 20, em especial pelas transformações da década de 1960, marcada por regimes autoritários que pouco fizeram pelas cidades menores, como a fictícia Macondo.
Já Pereira Pinto considera que Gabriel García Márquez, sendo jornalista atuante, era muito bem articulado do ponto de vista político, conhecendo as diversas realidades existentes na América Latina. Além disso, em sua visão, o autor teria sido influenciado pelas realidades que observou a níveis comunitário e familiar.
Como destaca Penteado, "a narrativa de 'Cem anos de solidão' é permeada por ciclos de repetição e de tentativas de ruptura com a solidão. Há um pilar central – Úrsula, 'a voz da razão de uma família de loucos', que sobrevive às gerações observando os padrões repetitivos dos Aurelianos e dos Arcádios. A estrutura narrativa leva à percepção de que a vida é um ciclo sem fim, não deixando que os leitores fiquem apenas na superficialidade das personagens."
Por outro lado, Pereira Pinto propõe uma visão da obra com base na psicanálise. Ele destaca que, segundo o psicanalista e psiquiatra brasileiro Jorge Forbes, uma grande obra literária, nunca se esgota com suas muitas interpretações. No caso de "Cem Anos de Solidão", a narrativa é contada de forma não linear em vinte capítulos e conta com cerca de vinte e quatro personagens principais.
"Com certeza, ainda por muitos anos, esse romance irá desafiar nossa imaginação e entendimento com todas as suas relações complexas e com sua profundidade", diz ele.
Questionado acerca de quais elementos estilísticos e linguísticos fazem de "Cem Anos de Solidão" um marco da literatura mundial, Penteado respondeu: "um bom contador de histórias cativa seus interlocutores (...) e Márquez faz isso de maneira primorosa ao construir uma grande metáfora da condição latino-americana."
Segundo ele, "as metáforas, as construções frasais, a mescla dos discursos das personagens levam o leitor para Macondo e para o seio da família Buendía-Iguarán. Não à toa, muitos críticos comparam a obra a trabalhos de Cervantes e Shakespeare."
Já para Pereira Pinto dois pontos principais chamam a atenção: "O primeiro se relaciona ao uso e abuso – no bom sentido, é claro – do realismo mágico, onde os níveis de realidade, visível e invisível, se entrelaçam de maneira natural, criando uma narrativa rica e envolvente. [...] O segundo ponto se relaciona ao trabalho que é feito com a linguagem: a estrutura cíclica da narrativa, com eventos que se repetem ao longo das gerações da família Buendía, reforçando temas como a inevitabilidade do destino e a solidão."
O pesquisador ainda destaca a existência de personagens complexos que evoluem e se entrelaçam de forma inesperada. Para ele, a prosa de García Márquez, além de bastante fluída é "marcada por um ritmo cadenciado e uma musicalidade que tornam a leitura uma experiência quase hipnótica".
Mais de cinco décadas após sua publicação, "Cem Anos de Solidão" continua a inspirar escritores ao redor do mundo. É o caso de Isabel Allende, Salman Rushdie, Toni Morrison e Mo Yan, entre outros, como destaca Penteado.
"Cem Anos de Solidão é um clássico, no sentido que Ítalo Calvino empresta a essa palavra. Clássico é a obra literária que resiste à passagem do tempo, que não se desgasta, que não perde a sua atualidade e vitalidade", diz Pereira Pinto, destacando que "Cem Anos de Solidão" deve continuar por muito tempo a provocar emoções e reflexões em seus leitores, "exatamente porque é clássico, porque é mágico".