Há 220 anos, era encontrado o bloco de pedra que permitiu desvendar 3 mil anos de história egípcia, até então perdidos
No meio do caminho tinha uma pedra: um bloco de quase 760 quilos na rota dos soldados franceses que ocupavam o Egito em 15 de julho de 1799, numa expedição liderada pelo temido general Napoleão Bonaparte. O tablete cinzento de 114 cm x 72 cm apareceu quando eles cavavam trincheiras a leste de Alexandria, perto da cidade de El-Rashid, chamada de Rosetta pelos ocidentais. A pedra estava caída no chão, como uma lápide semi-enterrada. Uma versão menos aceita entre os historiadores dá conta de que ela estava incrustada num muro que os militares demoliam.
Seja como for, a Pedra de Rosetta chamou atenção de imediato porque tinha gravadas três escritas diferentes. Coordenador das obras, o capitão Pierre-François Bouchard sabia que uma das grafias era o grego. Embora não identificasse bem quais eram as outras — o hieróglifo e o demótico —, ele suspeitou da importância do artefato e o enviou para o Cairo, onde cientistas franceses estavam reunidos. Os sábios confirmaram o palpite: pela primeira vez, um texto em grego aparecia junto com hieróglifos. Assim, a pedra poderia ser a chave para entender a escrita sagrada dos faraós.
Esses sinais tinham marcado a paisagem urbana do Egito por mais de 3 mil anos, até desaparecerem no século 4. Diversos pesquisadores já haviam tentado decifrá-los, sem sucesso. Inúmeras perguntas sobre a civilização egípcia permaneciam sem resposta. Quais eram os faraós que ergueram aqueles templos gigantescos? Para que construíam suas tumbas? Por que preservavam os mortos?
A seguir você verá como um pedaço de basalto encontrado por acaso nas areias do deserto ajudou a elucidar esses mistérios.
Em 1798, o general francês Napoleão Bonaparte era a sensação de seu país. Derrotara o exército austríaco na Itália e tinha tudo para segurar as rédeas da Revolução Francesa. Aos 28 anos, sua fama era comparável à de um pop star moderno.
O povo aplaudiu quando ele anunciou uma milionária expedição ao Egito para bloquear as rotas inglesas de comércio com o Oriente e conquistar uma preciosa colônia para a França. A missão tinha valor estratégico duvidoso, mas foi patrocionada pelo Diretório, o governo imposto pela alta burguesia. Afinal, era uma forma de manter o general longe da política parisiense enquanto eram definidos os rumos da revolução.
"A expedição foi motivada pela competição colonial europeia, mas também por uma fantasia pessoal de Napoleão. Ele sonhava em ser o novo Alexandre, o Grande", diz Nina Burleigh, autora de Miragem — Cientistas de Napoleão e suas Descobertas no Egito. Para imitar os passos do conquistador macedônio, o general destacou quase 50 mil soldados e marinheiros.
Na cola dos militares, marchava uma unidade especial formada por cerca de 150 sábios, os savants. Eram cientistas, matemáticos, botânicos, astrônomos, químicos, engenheiros, poetas e até um musicólogo. Napoleão imitava outra faceta do ídolo: Alexandre viajara com uma trupe de filósofos ao conquistar a Pérsia, no século 4 a.C. Para o general, a campanha tinha caráter civilizatório. Levaria as luzes de Paris aos "bárbaros" mamelucos que dominavam o Egito. Antigos guerreiros da Ásia Central convertidos ao Islã, os mamelucos tinham sido escravos dos árabes por séculos e acabaram fundando seu próprio império.
Para os savants, era uma viagem de sonho. Poucos ocidentais haviam se aventurado no Oriente Médio desde que o sultão Saladino derrotara os cruzados, no século 12. Na visão da Europa, o Egito era um mundo desconhecido, de gente extravagante e clima inóspito. "Pouco se sabia sobre a civilização das pirâmides. Aquela era a chance de se debruçar sobre os monumentos do Egito", afirma Nina.
A descoberta
As tropas francesas aportaram em Alexandria e em três semanas acabaram com 700 anos de domínio mameluco na região. Na Batalha das Pirâmides, em julho de 1798, a estratégia e as armas dos franceses foram decisivas para superar o maior número de soldados das forças locais. Mas a Inglaterra não se acomodou. Apenas três semanas depois, o almirante Horatio Nelson afundou quase toda a frota francesa na Batalha do Nilo. Sem o apoio marítimo, o exército de Napoleão perdeu a iniciativa. Foi alvo da crescente revolta da população nativa e, para piorar, um surto de peste bubônica arrasou suas fileiras.
Apesar das dificuldades, o general criou no Cairo o Instituto do Egito, onde os sábios colecionavam as relíquias e divulgavam suas pesquisas. O instituto ocupava o palácio de Hassan Al Kachef, um burocrata mameluco. O quarto de imersão do seu harém virou a sede das assembleias onde se discutiam das espécies de insetos do deserto à produção de cerveja com uma planta nativa.
E veio a surpresa. Numa dessas reuniões, o conselho de savants soube da Pedra de Rosetta. "Quando a viram, os sábios logo perceberam sua importância", diz Nina. Cópias das inscrições foram enviadas de imediato a Paris e intelectuais começaram a trabalhar na decifração.
Não satisfeito em bancar o Indiana Jones, Napoleão marchou com suas forças para a Síria e a Palestina, dominadas pelo Império Turco-Otomano. A manobra, porém, custou caro: os turcos repeliram a ofensiva e o general voltou ao Egito com um exército em frangalhos. Prevendo o fracasso da expedição, e preocupado com a instabilidade política na França, ele retornou a Paris em agosto de 1799 com um grupo de savants. Quem ficou no Egito vivia na corda bamba, já que a ocupação francesa lutava em três frentes: a revolta árabe, os ataques ingleses e o crescente avanço dos turcos sobre o Cairo, com o apoio da Inglaterra. Enfraquecido pela peste, o exército francês capitulou em 1801, encerrando três anos de expedição.
Com a vitória na guerra, os ingleses se apoderaram de várias relíquias que os savants haviam pilhado. Entre elas a Pedra de Rosetta, que foi parar no Museu Britânico.
Duelo de titãs
Era o início de outro combate entre a França e a Inglaterra, agora para decifrar as inscrições enigmáticas no artefato. O duelo reuniu duas mentes brilhantes, obcecadas por entender os hieróglifos: o cientista inglês Thomas Young e o jovem linguista francês Jean-François Champollion. Era uma briga desigual. Young era um catedrático nobre e famoso, que tinha o apoio da coroa e trabalhava diretamente sobre a pedra.
Já Champollion era um garoto-prodígio humilde, cujos estudos eram bancados a duras penas pelo irmão mais velho, e que precisou descolar cópias dos textos da relíquia sem ter certeza se eram bem feitas. A partir do grego, os dois gênios souberam que a Rosetta continha um decreto emitido por um conselho de sacerdotes egípcios em 196 a.C.. "Assumindo que os textos das outras duas escritas eram idênticos, então a pedra poderia ser usada para decifrar os hieróglifos", diz o cientista Simon Singh em artigo para a BBC.
Só que havia um problema. "O grego revelava o que os hieróglifos significavam, mas ninguém havia falado a antiga língua egípcia por vários séculos. Assim, era impossível determinar o som das palavras egípcias", afirma Singh. "A menos que os pesquisadores soubessem pronunciá-las, eles não poderiam deduzir a fonética dos hieróglifos." E tampouco entender a escrita de forma a traduzir qualquer inscrição. O demótico presente na pedra, uma forma cursiva e simplificada de escrita egípcia, já conhecida no Ocidente, dava elementos para a comparação, mas não a engrenagem que faltava.
Pesquisadores já haviam tentado quebrar o código, mas derraparam numa hipótese falsa: a de que os hieróglifos eram desenhos impronunciáveis. Achavam que se tratava de uma grafia simbólica, não fonética, e que, portanto não podia ser lida como este texto.
Young sabia dos avanços de Champollion, e vice-versa. Nessa corrida, eles usaram outros documentos além do bloco de basalto, como as inscrições do templo de Abu Simbel e do zodíaco do Templo de Dendera. Os dois gênios, porém, seguiram técnicas distintas. Young usou um método matemático: se havia 30 estruturas iguais no texto grego, ele checava se essas 30 estruturas se repetiam nos hieróglifos - e assim foi formando um alfabeto rudimentar, por aproximação. Até publicou seus primeiros achados, mas não foi muito longe. "Parece que ele não conseguiu superar a ideia reinante de que os hieróglifos eram só desenho. Não estava preparado para quebrar esse paradigma", diz Singh.
Já Champollion conhecia diversas línguas, e isso fez toda a diferença. Ele percebeu que havia uma escrita por trás daqueles desenhos. Começou associando nomes gregos como Ptolomeu aos hieróglifos correspondentes. E, com a ajuda do irmão, foi a Paris para estudar e tentar provar sua teoria. Logo viu que seria difícil. Até seu professor defendia a tese dos desenhos mudos. Champollion recusava a ideia, mas como seria possível descobrir o som daqueles símbolos estranhos?
A solução do jovem foi aplicar o copta, o idioma dos primeiros cristãos do Egito que ainda era falado em algumas igrejas de Paris. Ele percebeu que a sonoridade do copta se relacionava com a da antiga língua. Se pudesse coincidir os sons do copta com os dos hieróglifos, poderia fazer falar os faraós. Assim matou a charada. "Enquanto o idioma grego ajudou a entender o hieróglifo, o copta ajudou a sonorizá-lo", diz o historiador Júlio Gralha, especialista em Egito Antigo, professor da UERJ.
Ao ver um círculo com um ponto no meio, por exemplo, Champollion conseguia associá-lo ao deus egípcio Sol. Mas não sabia o nome que ele tinha, pois faltava sonorizá-lo. Foi aí que o copta entrou na jogada: ao unir seus sons com as imagens dos hieróglifos, Champollion conseguiu ler Ramsés e outras palavras. "Os pesquisadores da época sabiam que havia um faraó chamado Ramsés, mas não sabiam como escrever seu nome. E Champollion triunfou. Young não teve essa perspicácia", afirma o egiptólogo.
As investigações do francês incomodaram a Igreja. Temia-se que a compreensão dos hieróglifos ameaçasse a noção do Dilúvio Universal, que teria ocorrido em cerca de 2300 a.C. Se a escrita demonstrasse que os egípcios existiam antes do episódio e não foram afetados por ele, os bispos teriam um abacaxi para descascar.
Mas Champollion deu de ombros. Desde criança queria calcular a idade do mundo, e achava que os hieróglifos lhe dariam a resposta. Mais de duas décadas após a descoberta da Pedra de Rosetta, no outono de 1822, ele finalmente conseguiu decifrar a língua sagrada. Em 1828, realizou outro sonho: foi ao Egito. Só não teve tempo de somar a idade do mundo. Morreu em 1832, aos 41 anos, em Paris, vítima de um acidente vascular cerebral.
A fantasia de Napoleão despertou o Egito de um sono milenar. Sem a pedra, os hieróglifos provavelmente só seriam decifrados muito mais tarde. Se fossem. E, sem eles, seria quase impossível compreender a civilização do Vale do Nilo. "A partir da leitura dos hieróglifos começamos a entender por que os egípcios faziam tumbas e sua crença na vida eterna, por exemplo", diz Júlio Gralha. "Identificamos os faraós que haviam erguido diferentes templos, entre muitas outras descobertas."
Sem o domínio da escrita sagrada, não saberíamos da existência de faraós hereges, como Akenaton, que destronou as divindades da nação e elegeu Aton como o deus supremo no século 14 a.C. A atitude custou-lhe a vida e as marcas de seu reinado. Mas há registros da restauração dos templos que ele havia destruído, assim como foram reveladas mentiras contadas pelos faraós, como uma vitória inexistente de Ramsés II.
A última dinastia
A pedra serviu ainda para entender a dinastia ptolomaica, que governava o país quando ela foi gravada. Estimulou a egiptologia e - para desgosto da Igreja - os cultos maçônicos na Europa, já que a civilização era admirada e sua simbologia, amplamente usada pela irmandade.
A importância da Pedra de Rosetta vai além da decifração dos hieróglifos. Ela registra um momento fundamental da história egípcia: a dinastia ptolomaica. Sabe a Cleópatra dos filmes e da literatura? Ela foi a sétima do reinado ptolomaico (305 a 30 a.C.). "Existiram sete Cleópatras e 15 Ptolomeus", diz o historiador Júlio Gralha. "O texto da Rosetta é a transcrição de um decreto editado pelo conselho de sacerdotes, reunido em 196 a.C. em Mênfis, capital do norte do Egito. O decreto foi feito durante o reinado de Ptolomeu V Epiphanes (210-180 a.C.)."
Naquela época, a glória dos primeiros faraós era coisa do passado. O país fora conquistado em 332 a.C. pelo macedônio Alexandre, o Grande, que se autoproclamou soberano. Com a morte dele, a administração do Egito coube a um de seus generais, Ptolomeu, que instituiu uma nova linha de sucessão. "Como a dinastia dos ptolomeus era de cultura grega (helenizada), ela precisaria adotar fortemente a cultura faraônica se quisesse reinar", afirma o historiador. É que as práticas mágico-religiosas egípcias continuavam muito fortes entre o povo.
E, se os ptolomeus não se identificassem com esses rituais nem assumissem a monarquia faraônica — estranha aos gregos —, não conseguiria se manter no poder. Os primeiros ptolomeus não adotaram completamente a cultura local, o que explica a resistência que sofreram. Para a população, eles ainda eram estrangeiros. Segundo Gralha, foi somente no governo de Ptolomeu V que a dinastia adotou plenamente a religião egípcia.
A prova disso é a Pedra de Rosetta. O decreto que ela contém marca o momento em que os sacerdotes exaltam as virtudes de Ptolomeu V e se dirigem a ele com títulos antigos — tal como os faraós. Com esse carimbo de aprovação, o monarca enfim ganhou legitimidade para governar. O documento feito de basalto cita algumas de suas benfeitorias, como doar trigo para os templos, perdoar dívidas e reduzir impostos para candidatos ao sacerdócio.
A Pedra de Rosetta foi gravada em três idiomas para que sacerdotes, funcionários do governo e a aristocracia pudessem entender o que dizia. O hieróglifo era a língua religiosa, o demótico reproduzia a linguagem popular e o grego era o idioma dos ptolomeus. Mas o artefato não foi o único do gênero. Pesquisadores acreditam que outras pedras idênticas foram espalhadas pelo Egito, como uma campanha de marketing. Uma delas foi achada no fim do século 19.
Mas por que espalhar aqueles blocos se a maioria da população não sabia ler? O efeito era semelhante ao das estátuas: o líder se fazia presente sem estar lá. Ao que tudo indica, as pedras também foram um recado aos rebeldes que dominaram o sul da nação por 20 anos. "A revolta foi derrotada e, a partir daí, a dinastia percebeu que era hora de adotar as práticas faraônicas", diz Gralha. "O país foi então pacificado." A dinastia só durou 300 anos, em boa parte por causa das disputas após a morte de Ptolomeu V, em 180 a.C. Vários Ptolomeus e Cleópatras se engalfinharam na corrida pelo trono. Um deles foi Ptolomeu VIII, que matou o filho e entregou à mulher, Cleópatra II.
"Ptolomeu XV e Cleópatra VII (esposa de Julio César e Marco Antônio) foram o último casal governante do Egito. Com a morte dela, o país deixou de existir como potência internacional, mas seu legado perdurou durante séculos", afirma o egiptólogo.
Hoje, a Pedra de Rosetta é uma das atrações mais visitadas do Museu Britânico. Está lá desde 1802 e só saiu de Londres por algumas semanas para ser exposta no Museu do Louvre, em 1972, no aniversário de 150 anos da decifração dos hieróglifos.
E Champollion, quem diria, nunca pôde ver esse pedaço de rocha que tanto admirava. Uma das muitas ironias da história.
Saiba mais
Miragem — Os Cientistas de Napoleão e suas Descobertas no Egito, Nina Burleigh, Landscape, 2008
Historia del Mundo Antíguo, Susan Wise Bauer, Paidós, 2007
Egito — Redescobrindo um Mundo Perdido, BBC, 2005