Nesse importante episódio da história política brasileira, artistas, estudantes e trabalhadores tomaram as ruas do Rio de Janeiro para exigir liberdades democráticas
No dia 26 de Junho de 1968, o Rio de Janeiro parou. No início do auge da repressão durante o Regime Militar, uma multidão composta por estudantes e artistas protestou contra a ditadura e os abusos de poder do Estado: o ato ficou conhecido como A Passeata dos Cem Mil, parte fundamental do ano de 1968 no Brasil.
Cenário
O Brasil vivia anos de repressão policial e autoritarismo político. Desde 1964, quando uma Junta Militar derrubou um presidente eleito e assumiu o governo, diversos setores revoltados da sociedade sofriam com prisões e arbitrariedades. Um dos setores mais atacados eram os Movimentos Estudantis, que se mobilizavam por suas demandas e eram recebidos com bombas, tiros e ordens de prisão.
Um desses casos foi o estopim para as lutas tomarem as ruas, algo que marcaria os anos seguintes. Os estudantes protestavam no Restaurante Central dos Estudantes, conhecido como Calabouço, na antiga sede da UNE no Aterro do Flamengo, pelo aumento do preço da refeição.
A polícia, para reprimir o movimento, invadiu o prédio com armas. O comandante da tropa da PM, Aloísio Raposo, atacou o estudante secundarista de 18 anos, Edson Luís de Lima Souto, e o matou com um tiro a queima-roupa.
Depois do estopim
Um velório público para o jovem foi feito e ocupou diversas regiões do RJ, onde o confronto com policiais continuou acontecendo. Uma missa, por exemplo, que foi feita na Catedral da Candelária foi interrompida pela cavalaria da PM, que agrediu estudantes, padres e trabalhadores que rezavam lá. Numa outra manifestação, dias depois, resultou na prisão do líder estudantil fluminense Jean Marc von der Weid. No dia seguinte, mais 300 estudantes foram presos.
Os estudantes mantiveram a posição de ocupar as ruas denunciando os abusos do Governo Costa e Silva. No dia 21 de junho, ainda sentidos com os abusos contra Edson Luís, foi marcada uma manifestação de estudantes em frente ao Jornal do Brasil. Gás lacrimogêneo, balas, cassetetes e um saldo de três mortos e mais de mil prisões sumárias. O Rio de Janeiro passara por sua Sexta-Feira Sangrenta.
Como resposta, os estudantes marcaram mais um ato para o dia 26 de junho, que foi aprovada pelos militares pelas pressões que o governo sofreu. Foram dispostos 10 mil policiais militares para realizar qualquer operação necessária nessa manifestação. Na manhã desse dia, as ruas da Cinelândia já estavam tomadas por estudantes, artistas, políticos, ativistas e alguns trabalhadores. Às 14h, começa a andar uma das maiores manifestações civis da História da República brasileira.
A Passeata dos Cem Mil
Em menos de uma hora de passeata, já havia 100 mil membros na manifestação. Em meio à passeata, as pessoas pararam e se iniciou um famoso discurso de Vladimir Palmeira, líder estudantil, que lembrou o atentado contra Edson Luís e o protesto do Calabouço, cobrando o fim da Ditadura Militar e a retomada da Democracia.
Os cartazes de Abaixo à Repressão, Abaixo à Ditadura, O Povo no Poder, Fora militares deixavam clara a posição do ato: era o povo contra o governo. E por três horas, os cariocas andaram até a Assembleia Legislativa, sem conflito com a polícia.
A reação
A Passeata dos Cem Mil gerou grande tumulto na sociedade. Contra ou a favor, era impossível desviar do assunto na época. Muitas fotos do jornalista Evandro Teixeira monumentalizaram esse dia e receberam grandes homenagens de partidários do movimento, como Carlos Drummond de Andrade:
“Das lutas de rua no Rio
Em 1968, que nos resta
Mais positivo, mais queimante
Do que as fotos acusadoras,
Tão vivas hoje como estão,
A lembrar como a exorcizar?”
Outra famosa obra que nasceu do clima da Passeata foi a música Pra Não Dizer que Não Falei das Flores, de Geraldo Vandré. Nela, uma somatória entre homenagem e crítica nos lembra da necessidade de mobilização, grupal e individual, para assumirmos o poder sobre a própria vida e a termos a liberdade da ação. Vandré nos lembra que "esperar não é saber", apontando os problemas dos "indecisos cordões que ainda fazem da flor seu mais forte refrão e acredita nas flores vencendo o canhão".
Ao mesmo tempo, críticas bem mais enfáticas foram colocadas ao movimento. Claro, a oposição aos militares era divisora de opiniões. Porém, mais que isso, uma crítica feita por Nelson Rodrigues foi cirúrgica e incômoda:
“E outra observação que me deu o que pensar: - os Cem mil tinham uma saúde dentária de anúncio dentifrício. (...) E a marcha de 100 mil sujeitos sem uma cárie, sem um desdentado, assumia a forma de um pesadelo dentário (...) “E o povo? Onde está o povo?” O povo era ausência total. Não havia uma cara de povo, um paletó de povo, uma calça de povo, um sapato de povo.”
Portanto, por mais justas que fossem as demandas da Passeata, era claro um perfil dos participantes, que é o de classe média, performativo, privilegiado e revoltado.