Até o ano de 1876, índios, rebeldes, escravos e criminosos comuns enfrentaram julgamentos controversos e finais trágicos
Até subir ao patíbulo, no dia 28 de abril de 1876, nem o próprio Francisco acreditava que seria enforcado. Segundo descreveu, na época, o jornal Diário de Alagoas, “o réu condenado à pena de morte portava-se na cadeia com alguma intrepidez; dizia que não morreria enforcado”.
Escravo, dois anos antes Francisco havia assassinado o capitão João Evangelista de Lima e sua mulher, Josefina. Ao cometer o crime, fora auxiliado por dois escravos do morto, Prudêncio e Vicente. O primeiro morreu quando foi preso. O segundo, ao que parece, foi condenado à forca, mas acabou indo para a prisão perpétua.
O confiante Francisco não teve a mesma sorte. Escoltado por 32 soldados, percorreu as principais ruas da cidade de Pilar de Alagoas até chegar à forca. Lá, exatamente às 13 horas, cumpriu sua pena.
Aquela foi a última vez em que uma sentença de morte foi cumprida no Brasil. A pena capital já vinha sendo pouco usada no país desde meados de 1850 e, depois da sentença de Francisco, ela desapareceu. Embora tenha continuado a existir na legislação até o começo da República, Pedro II garantiu que ela não fosse mais aplicada. Era o fim de mais de três séculos de enforcamentos, fuzilamentos e degolas, que começaram quando o Brasil ainda era uma colônia de Portugal e estava sujeito às normas daquele país.
As Ordenações Filipinas, conjunto de leis sancionado pelo rei português Filipe I em 1595 e posto em prática em 1603, foram usadas no Brasil até pouco depois da Independência. E elas não economizavam na hora de prescrever a pena de morte. Que o diga Frederico II, rei da Prússia.
No século 18, ao tomar conhecimento do Livro V das Ordenações, que cuidava do Direito Criminal em Portugal e suas colônias, ele perguntou, irônico: “Mas ainda há alguém vivo por lá?” Eram passíveis de pena de morte crimes tão díspares quanto o assassinato e a violação da correspondência do rei – incluindo adultério, estupro, falsificação de moedas, incesto, sexo com animais ou com freiras, rebeliões e feitiçaria.
Embora as leis da colônia sejam conhecidas, não há muita documentação sobre o modo como a pena de morte era aplicada naquela época, nem números precisos sobre a quantidade de pessoas executadas. O que ficou, na maioria das vezes, foram relatos de casos famosos, como os ligados a lutas contra a Coroa Portuguesa. “Já no Império, além da documentação estar mais completa, havia os jornais dando as notícias de execuções, uma fonte imprescindível”, diz o historiador João Luiz Ribeiro, especialista no assunto.
Segundo ele, entre 1833 e 1876, só em Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro, ao menos 230 pessoas receberam a pena de morte – há dúvida sobre outras 180 que podem ter sido mortas da mesma forma. Nessas três províncias, 643 condenados à morte viram sua pena se transformar em prisão perpétua – a partir de 1876, isso se tornaria regra. As penas de morte no Império costumavam ser transformadas em “galés perpétuas” (trabalhos forçados até a morte).
A pena capital chegou ao Brasil pouco depois de Cabral. Naquela época não existiam julgamentos: as execuções, geralmente, eram sumárias. Em 1530, ano da chegada da primeira expedição de ocupação vinda de Portugal, liderada por Martim Afonso de Souza, começaram os assassinatos feitos em nome do Estado. Um dos primeiros ocorreu por causa do fidalgo português Pero Lopes Souza.
Irmão de Martim Afonso, ele estava alojado numa fortaleza em Pernambuco que foi atingida por duas flechas. Ele não se feriu, mas, desconfiado dos franceses que habitavam a região, mandou que todos eles fossem presos e enforcados. A execução coletiva só parou quando dois dos estrangeiros assumiram a culpa.
No início do século 16, quem recebia sentenças de morte eram principalmente índios, piratas, traficantes, hereges e invasores franceses – naquela época, a maioria da população podia ser encaixada em (pelo menos) uma dessas categorias. Ainda no ano de sua fundação, em 1549, Salvador foi palco de uma execução exemplar, ordenada pelo seu governador e fundador, Tomé de Souza.
Um índio matou um português e, como punição, foi amarrado à boca de um canhão. Quando o projétil foi disparado, o condenado se despedaçou no ar, na frente de uma platéia composta por colonos e nativos. Em 1551, também em Salvador, mais dois nativos receberam essa punição. Eram velhos índios que morreram no lugar dos sobrinhos, que haviam fugido após ser acusados de devorar quatro comerciantes.
Os colonos portugueses não estavam imunes à pena capital, embora ter uma boa posição social ajudasse bastante. Nos assassinatos, por exemplo, se o acusado fosse um fidalgo, as Ordenações Filipinas diziam que o caso devia ser bem analisado antes de se optar pela pena de morte. Mesmo assim, se tornaram comuns as execuções de “homens bons”.
Como o coronel Fernão Bezerra Barbalho, dono de engenho em Pernambuco que, por suspeitar de infidelidade, assassinou a esposa e as três filhas. Já estávamos na segunda metade do século 17, quando já existiam julgamentos organizados. Condenado, o coronel foi degolado em 1687.
Ter o pescoço cortado era o principal método usado para executar nobres e membros da elite. Morrer na forca era algo vergonhoso, destinado à ralé. Mas a violência das leis nem sempre era aplicada na prática. Os condenados podiam apelar ao rei – que, com seu “direito de graça”, muitas vezes os perdoava.
“Essa estratégia mantinha toda a força da autoridade, mas, ao mesmo tempo, permitia ao soberano ser magnânimo”, diz Arno Wehling, presidente do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
Com o avanço da colonização, a partir do século 17, consolidou-se a escravidão de africanos, trazidos ao Brasil para cuidar de engenhos e de toda sorte de trabalhos braçais. Apesar de viver humilhados, durante boa parte do período colonial os escravos dificilmente eram condenados e executados. Isso porque muitos morriam no tronco, sob o jugo de seus proprietários. “Era no próprio engenho, longe dos olhos do Estado, que eles eram mortos, e ficava tudo por isso mesmo”, diz o historiador Ilmar Rohloff de Mattos, diretor do Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
A partir do século 18, Portugal começou a intervir mais na política da colônia. O principal foco de fiscalização era Minas Gerais, por causa dos metais preciosos descobertos por lá. O crescimento da opressão levou a revoltas, quase sempre punidas exemplarmente. Em casos como o do mineiro Tiradentes, não bastava para as autoridades que o réu fosse enforcado e esquartejado. A sentença do inconfidente foi a de “morte para sempre”, o que significava matar também sua memória: derrubar sua casa, salgar o terreno para que nada mais crescesse por lá e declarar infames todos os seus descendentes.
Após a Independência, em 1822, a tortura do réu e a mutilação do cadáver passaram a ser vistas como barbárie. Em 1830, surgiu o Código Criminal do Império. O texto manteve a pena de morte, mas o fez apenas para homicídios e revoltas escravas. Todas as mortes tinham que ser pela forca. Foram banidas a tortura, o esquartejamento e a exposição de corpos.
As normas do Código, entretanto, não foram seguidas instantaneamente em todos os recantos do país. Em 1831, os escravos Narciso e Elesbão mataram seu senhor, Luiz José de Oliveira, a facadas e foiçadas em Jundiaí, São Paulo. Os dois confessaram o crime e ainda admitiram ter bebido o sangue do morto. Narciso foi julgado e enforcado. Já Elesbão, depois da confissão, passou a negar ter participado do crime. Seu julgamento durou quatro anos.
No fim, o juiz municipal José Mendes Ferraz resolveu ignorar o Código e se ater às antigas Ordenações. Ele exigiu que, depois que a sentença de morte fosse executada, as mãos e a cabeça do escravo fossem cortadas e penduradas em postes. Ao expor as mãos em Campinas e a cabeça em Jundiaí, o juiz pretendia intimidar o público. No caso de Elesbão, isso não funcionou muito bem. Depois de algum tempo penduradas, as mãos negras da vítima teriam ficado brancas. Isso foi interpretado como um sinal da inocência do escravo (posteriormente, moradores de Campinas passaram a atribuir milagres à sua alma).
Seis meses antes de Elesbão ser executado, havia entrado em vigor a lei de 10 de junho de 1835. Ela estabelecia que os escravos homicidas não deveriam ser julgados segundo os princípios liberais do Código Criminal. Se ficasse provado que o escravo tinha matado ou ferido gravemente seu senhor ou alguém da família dele, a única pena possível era a de morte.
Essa rigidez decorria do medo gerado por uma série de revoltas escravas acontecidas entre 1807 e 1835, cujos ápices foram a Insurreição de Carrancas, de 1833, em Minas (que acabou com o enforcamento de 12 escravos), e a Rebelião dos Malês, de 1835, na Bahia (que resultou no fuzilamento de quatro negros). Se até os últimos anos do Brasil Colônia os escravos foram minoria entre os executados em nome da lei, eles passaram a ser maioria durante o Império.
A sentença de morte para os cativos era tão certa que eles já a conheciam de antemão. Como José Crioulo, que assassinou seu senhor, José Augusto Cisneiros, em 1851, no Rio de Janeiro, com uma estocada de compasso no peito. Crioulo alegou que estava sendo espancado pelo dono quando reagiu e o matou, mas sabia que isso nada lhe adiantaria – legítima defesa não valia para escravos. No interrogatório, reconheceu que nada que ele dissesse poderia mudar seu destino. E, falando ao juiz, fez uma sábia comparação: “Vossa Excelência bem sabe, no meio das galinhas, as baratas não têm razão”. Morreu enforcado em 1852.
No mesmo ano em que José Crioulo foi executado, um homicídio chocou a cidade de Macaé, no Rio de Janeiro. Manoel da Motta Coqueiro, um rico fazendeiro local, foi acusado de ter mandado assassinar uma família inteira de colonos que vivia em sua propriedade. Morreram Francisco Benedito, a mulher dele e seis filhos (incluindo três crianças), todos abatidos a pauladas e retalhados a golpes de foice. Só uma filha escapou, Francisca.
Ela, que desapareceu, foi tida como o pivô de tudo: estava grávida de Motta Coqueiro. O povo queria vingança. O fazendeiro foi condenado com base em depoimentos controversos de alguns de seus escravos – que, por lei, nem poderiam testemunhar contra ele.
Motta Coqueiro foi enforcado em 1855. Pouco depois, surgiu a versão de que a mandante do crime teria sido, na verdade, Úrsula das Virgens, a mulher do réu – que acabou enlouquecendo durante o julgamento.
“Se naquele tempo até pessoas ricas e poderosas podiam ser condenadas à morte sem provas ou certezas, quantos miseráveis e inocentes teriam sido estupidamente pendurados numa corda antes que a pena de morte acabasse?”, questiona o jornalista Carlos Marchi em Fera de Macabu, livro em que conta a história de Motta Coqueiro e afirma que a suposta inocência do fazendeiro influenciou o imperador Pedro II, que assumira em 1840, a seguir em frente com sua campanha pessoal para acabar com a pena capital no Brasil.
O caso de Motta Coqueiro ocorreu na época em que a aversão do imperador às execuções começava a dar frutos. “A partir de 1854, por determinação de Pedro II, em todas as sentenças de morte a última palavra sobre a execução caberia a ele”, diz Ribeiro.
O monarca, então, se habituou a reverter penas, incluindo as de escravos, transformando-as em prisão perpétua. Enquanto entre 1833 e 1853 pelo menos 130 escravos foram executados, entre 1854 e 1876 o número baixou para 50. A última execução de homem livre aconteceu em 1861, quando Antônio José das Virgens foi enforcado na Paraíba. Embora legalmente a pena capital continuasse existindo, ela foi desaparecendo na prática.
De 1876 até a Proclamação da República, o imperador impediu todas as execuções, fazendo do Brasil um dos primeiros países a abolir a pena capital, ainda que não oficialmente. O fim formal veio com a primeira Constituição republicana, de 1891.
A partir daí, as forcas, guilhotinas, fogueiras, cadeiras elétricas, injeções letais, fuzilamentos e outras formas de execução não teriam mais vez no Brasil. Ao menos amparadas por lei. Por aqui, a pena de morte está prevista no Código Penal Militar e na Constituição, em caso de guerra.
+Saiba mais sobre a escravidão pelas obras disponíveis na Amazon:
Dicionário da escravidão e liberdade: 50 textos críticos, 2018 - https://amzn.to/2Y0apkO
Escravidão – do primeiro leilão de cativos em Portugal até a morte de Zumbi dos Palmares, Laurentino Gomes, 2019 - https://amzn.to/2yFP9Gn
Ser escravo no Brasil: Séculos XVI-XIX, Kátia M. de Queirós Mattoso, 2016 - https://amzn.to/3cFWMvs
Feitores do corpo, missionários da mente, de Rafael Marquese, 2004 - https://amzn.to/356TDC7
Manual Jurídico da Escravidão: Império do Brasil, de André Barreto Campello, 2018 - https://amzn.to/2VZAeii
Escravidão e capitalismo histórico no século XIX: Cuba, Brasil e Estados Unidos, de Ricardo Salles e Rafael Marquese, 2016 - https://amzn.to/2KssujA
Vale lembrar que os preços e a quantidade disponível dos produtos condizem com os da data da publicação deste post. Além disso, a Aventuras na História pode ganhar uma parcela das vendas ou outro tipo de compensação pelos links nesta página.
Aproveite Frete GRÁTIS, rápido e ilimitado com Amazon Prime: https://amzn.to/2w5nJJp
Amazon Music Unlimited – Experimente 30 dias grátis: https://amzn.to/2yiDA7W