As mulheres do cangaço eram tão, muitas vezes mais corajosas que o resto dos bandos, e Dadá deixou seu nome na história
Quem é do Nordeste possivelmente conhece a história de Dadá, a cangaceira. Nascida em 25 de abril de 1915, em Belém do São Francisco, Pernambuco, Dadá foi heroína, guerreira, e única mulher a portar um fuzil no bando de Lampião – que chegou a liderar. E, com Corisco, seu parceiro, resistiu por mais dois anos até o brutal fim da gangue, nas mãos da polícia. Um ícone da rebeldia do cangaço.
Mas não façamos coro à mera mitologia. Dadá era, sim, uma personagem excepcional. Mas, em sua história, há alguns detalhes pouco contados e bem desconfortáveis aos ouvidos modernos, que não vamos nos omitir em abordar.
Um Cangaço feminino
O que aconteceu nos 12 anos em que Dadá viveu embrenhada na caatinga, de acampamento em acampamento, ao lado de Cristino Gomes da Silva Cleto, o Corisco, pode ser revisitado nas falas da própria Dadá, que viveu até 1994 e concedeu entrevistas para programas de TV e documentários, e pelo trabalho de diversos historiadores que ligaram essas falas às de outros cangaceiros e cangaceiras que sobreviveram ao fim do grupo, num amplo trabalho de reconstrução histórica do período.
Corisco era o braço direito de Lampião, chefe do bando que espalhou terror entre os poderosos (e todo o resto) pelo sertão de sete estados, entre os anos 20 e 40 do século passado. Sérgia vivia com a família em Belém de São Francisco (PE), onde nasceu em abril de 1915, e de onde foi levada por Corisco. Segundo ela, foi uma vingança contra seu pai, acusado de delatar um parente de Corisco à polícia. “Então ele veio e me carregou, me botou na garupa do burro.”
Sobre o que veio a seguir, Dadá nunca falou abertamente, mas a pesquisadora Rosa Bezerra, autora do livro A Representação Social do Cangaço, afirma que há relatos privados da própria Dadá de que ela teria ficado muito doente depois do rapto, após sofrer violência sexual, com febre por semanas.
Dadá não foi a única vítima da brutalidade na família. Ela mesma contou, em entrevista reproduzida no documentário Feminino Cangaço, que os irmãos menores tiveram as pontas dos dedos cortadas à faca, que o pai foi espancado e teve uma orelha cortada e a mãe e as irmãs ficaram cinco dias presas sem comida.
Mulheres passaram a ser permitidas no cangaço apenas depois que o chefe, Lampião, conheceu Maria Bonita, em 1930. Essa entrou para o bando voluntariamente. Casada, mas infeliz, apaixonou-se por Lampião e pela ideia de aventura que a vida bandida traria, uma forma de viver que era a antítese da domesticidade reservada a uma mulher de seu tempo.
Frederico Pernambucano de Mello, que estuda o cangaço há mais de 30 anos e se tornou referência no assunto, explica que, “uma vez no bando, a mulher costurava, se quisesse; bordava, se quisesse; cozinhava, se quisesse. Seu status na subcultura do cangaço era superior ao da mulher da cultura pastoril. A cangaceira vivia para se ornamentar e alegrar o cotidiano de dureza do seu homem. Exigia do marido joias, perfumes, brilhantinas, maquiagens”, diz. “A despeito desse luxo, a cangaceira não deixava de ser uma propriedade do marido.”
Dadá era uma exceção não só na forma como entrou mas também por não parecer ter caído nas tentações da riqueza vinda das pilhagens. “Eu aconselhava as outras meninas a não ir. Vê a festa e não sabe o que sofre: dormir no molhado, andar no espinho, fugir tomando tiro, a ruína da sua família... Os períodos de glória e fartura se revezavam com os de miséria”, afirmou.
O bando chegou a ter entre 50 e 60 mulheres, todas companheiras de algum cangaceiro. Embora a violência fosse uma constante – mulheres adúlteras eram assassinadas ou tinham o rosto marcado com ferro em brasa –, histórias de rapto como o de Dadá eram exceção. A maioria fugia da família para acompanhar um cangaceiro. Um caminho sem volta tanto pelas leis do próprio bando quanto para as leis não escritas da moral sexual do Brasil da primeira metade do século 20.