Há 100 anos, maior marcha militar da história do Brasil dava os primeiros passos contra o presidente e as oligarquias agrárias que sustentavam o poder
“Deram aos soldados do povo todos os nomes: Coluna da Morte, Coluna Fênix, Coluna Invicta, Coluna Prestes. E dizendo Coluna Prestes o povo dizia Coluna da Esperança. Na sua frente, o Cavaleiro da Esperança, Luiz Carlos Prestes.” Assim, o escritor baiano Jorge Amado define no seu livro O Cavaleiro da Esperança um dos mais importantes e duradouros movimentos revolucionários ocorridos na primeira metade do século 20 no Brasil e que completa um século: a Coluna Prestes.
Por dois anos e três meses, integrantes do levante, formado em sua maioria por jovens militares de baixa patente, os tenentistas percorreram, grande parte a pé, cerca de 25 mil quilômetros Brasil adentro. Eles atravessaram praticamente todos os estados, numa época em que precárias estradas ligavam as cidades do interior às capitais e os meios de comunicação mais modernos eram o telégrafo e a ferrovia. O rádio ainda engatinhava e os principais jornais estavam concentrados nas capitais.
Por trás do objetivo principal, que era a deposição do presidente Artur Bernardes e a derrubada das oligarquias agrárias que sustentavam o poder durante a República Velha, estava o propósito de refundar o Brasil sobre novas bases políticas e sociais, com a promessa de mais justiça social, menos corrupção, democracia e igualdade para todos.
Para isso, na visão dos revolucionários, era necessário alertar e mobilizar a população no interior do território nacional, incluindo vilas, povoados e comunidades rurais escondidas nos mais profundos rincões do país.
As raízes da Coluna Prestes remetem a 1922, durante o episódio que ficou conhecido como Levante dos Dezoito do Forte de Copacabana e que marcou o início do movimento tenentista. Em 5 de julho daquele ano, 17 militares e um civil saíram em uma marcha de protesto contra o governo pelas ruas do Rio de Janeiro, então capital federal.
Os rebeldes protestavam contra a repressão e o estado de sítio imposto pelo presidente Artur Bernardes, a censura à imprensa e as fraudes eleitorais que eram comuns naquele período de forte turbulência política, principalmente nos grandes centros urbanos. Cercados pelas tropas legalistas, dezesseis deles foram fuzilados e apenas dois sobreviveram: os tenentes Siqueira Campos e Eduardo Gomes, que se tornariam líderes do tenentismo.
A carnificina em plena orla de Copacabana, promovida pela repressão política federal, foi o estopim para vários levantes em quartéis, sobretudo do Exército, em diversas partes do país. Em 5 de julho de 1924, tropas comandadas pelo general Isidoro Dias Lopes tomaram a cidade de São Paulo, transformando a capital paulista em um palco de guerra que provocou a morte de centenas de civis e destruição em vários bairros da metrópole.
Em dezembro daquele mesmo ano, no interior do Rio Grande do Sul, o jovem capitão do Exército Luiz Carlos Prestes, que desde outubro comandava levantes ocorridos em unidades militares instaladas nas cidades gaúchas de Santo Ângelo, São Luiz Gonzaga, Uruguaiana e São Borja, reuniu as tropas rebeldes e se colocou em marcha rumo ao Paraná.
Sob o comando de Prestes, cerca de mil homens, com poucas armas e munições, enfrentaram e enganaram tropas legalistas durante todo o trajeto, embrião da famosa Coluna Prestes.
Ao mesmo tempo, após serem derrotados em São Paulo, os tenentistas liderados por Isidoro Dias Lopes abandonaram a capital paulista e embarcaram em um trem com destino a Bauru, de onde também seguiram rumo ao Paraná.
Em Foz do Iguaçu, os dois grupos — gaúcho e paulista — uniram forças e, em abril de 1925, se colocaram em marcha Brasil adentro. O comando era formado por Prestes, Juarez Távora e Miguel Costa, oficial de prestígio da Força Pública paulista e que havia combatido ao lado de Isidoro Dias Lopes, em São Paulo. Daí muitos estudiosos denominarem a Coluna de Prestes-Miguel Costa.
"A Coluna Prestes é a maior marcha militar conhecida da História no Brasil. Contribuiu decisivamente para a derrubada do poder oligárquico existente durante a Primeira República e a vitória da chamada Revolução de 1930", explica a historiadora Anita Leocádia Prestes, filha de Prestes e estudiosa profunda do tema. Em celebração ao centenário do episódio, Anita acaba de lançar a quinta edição de 'A Coluna Prestes' (Boitempo Editorial).
Dividida em três partes, a obra, publicada originalmente em 1990, é resultado da tese de doutorado da autora em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Na plateia da cerimônia de defesa da tese, em 1989, um entusiasmado Prestes, pai da autora do estudo e principal personagem da tese, celebrava a conquista da filha.
A Coluna mostrou que o povo brasileiro, quando encontra um ideal pelo qual se dispõe a lutar e lideranças confiáveis, revela grande heroísmo no combate por esses objetivos”, explica Anita.
A opinião é compartilhada com o cientista político e historiador Paulo Ribeiro da Cunha, professor livre-docente da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e autor do livro Militares e Militância: Uma Relação Dialeticamente Conflituosa (Editora Unesp).
“A Coluna Prestes-Miguel Costa foi um dos mais fascinantes movimentos políticos e militares da História do Brasil. Seus personagens fizeram história nas décadas seguintes, alguns no campo da esquerda, como Prestes, outros no campo conservador, como Juarez Távora”, diz Cunha.
Diversos fatores explicam a movimentação da marcha, que adentrou o Mato Grosso a partir de Foz Iguaçu e percorreu milhares de quilômetros do sul ao norte do Brasil, travando diversas batalhas contra tropas federais, estaduais e milícias contratadas por coronéis, principalmente no interior do Nordeste.
Prestes, considerado um exímio estrategista, praticamente inaugurou no país a chamada “guerra de movimento”, em que as tropas estão em constante movimento para se desviar e confundir o inimigo.
Até então, as escolas militares eram muito influenciadas pela missão francesa e as táticas de trincheiras herdadas da Primeira Guerra Mundial, em que os soldados esperavam parados o inimigo para atacar.
Nas batalhas travadas dos tenentistas contra tropas federais, entretanto, táticas como o “laço húngaro”, em que os soldados fazem uma contramarcha e caminham em sentido contrário aos próprios passos, algumas vezes pisando nas marcas que deixavam na terra, confundiram o Exército nacional durante a perseguição, que nunca conseguiu debelar o levante.
Militares graduados, como Cândido Mariano Rondon, Tasso Fragoso e Góis Monteiro, com milhares de soldados à disposição, acabariam derrotados nas batalhas contra os soldados de Prestes e Miguel Costa.
A marcha rumo ao interior também era uma questão tática. Conforme ficou comprovado no levante paulista de julho de 1924, travar uma guerra urbana apenas daria vantagem às tropas legalistas. “Eles foram para o campo porque lutar na cidade era brigar no campo inimigo”, explica Cunha.
Havia também a necessidade de levar a mensagem do movimento, que teve origem nos grandes centros — Rio de Janeiro e São Paulo —, para outros lugares do país. “A Coluna Prestes-Miguel Costa deve ser estudada enquanto movimento político e não apenas no seu aspecto militar”, ressalta Cunha.
Os cerca de 1.500 homens que percorreram o país rebelados contra Artur Bernardes, explica Anita Leocádia, não só não foram esmagados como realizaram uma jornada de proporções inéditas na história mundial, introduzindo no país uma nova forma de guerra, a guerrilha, em que o movimento é a garantia de vitória e o imobilismo o caminho para a derrota.
Apesar de contarem com um aparato militar infinitamente menor — poucas armas e equipamentos como munições, malvestidos e mal alimentados — os tenentes impuseram seguidas derrotas aos oficiais pró-governo, graças às táticas desenvolvidas pelos seus líderes.
Após adentrar pelo sertão de Mato Grosso, Goiás, Maranhão e Piauí, onde várias batalhas foram travadas ao longo dos meses, a Coluna chegou ao Nordeste. Os comandantes depositavam grande esperança na região, já que, diante da miséria do povo, acreditavam em grande adesão e apoio popular à causa revolucionária. Não foi o que aconteceu.
Havia muita simpatia. O sertanejo compreendia que, contra nós, lutavam todos os seus inimigos, que eram o governo federal, o governo estadual, o governo municipal e os fazendeiros e coronéis”, observou Prestes, conforme registro em A Coluna Prestes.
A simpatia, porém, não se transformou em adesão dos mais humildes à causa. “Eles viam que estávamos lutando contra o inimigo deles, mas não tinham perspectiva. Achavam que éramos uns loucos, uns aventureiros, que estávamos sonhando. Derrotar essa força, para eles, parecia impossível”, completou o Cavaleiro da Esperança.
No início de 1926, os insurgentes chegaram ao Ceará. Para tentar conter o movimento e debelar de vez o levante, que nunca passou de 2 mil homens, em média, durante todo o trajeto da Coluna, o governo Artur Bernardes contou com uma ajuda inusitada: o cangaço.
Documentos atestam que o próprio ministro de Guerra, general Setembrino de Carvalho, enviava recursos para o pagamento de “batalhões patrióticos” — milícias arregimentadas por coronéis e políticos locais formadas, em maior parte, por criminosos e cangaceiros.
Em Juazeiro, um dos líderes do cangaço contatados para aderir aos movimentos “patrióticos” teria sido Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião. Os intermediadores teriam sido o deputado cearense Floro Bartolomeu e seu padrinho político, padre Cícero Romão Batista.
Lampião ganharia, em troca da adesão à milícia federal, muitas armas e farta munição, além de uma patente de capitão. Não existem detalhes sobre a eventual negociação, mas o fato é que os dois — Prestes e Lampião — nunca se enfrentaram. A patente simbólica e sem qualquer valor oficial, porém, foi incorporada pelo rei do cangaço.
Após cruzar o Ceará e o Rio Grande do Norte, a Coluna chegou à Paraíba. Na Vila de Piancó, os guerrilheiros enfrentaram forte resistência comandada por outro padre, Aristides Ferreira da Cruz, que acabou preso e assassinado pelos rebeldes.
O episódio de Piancó foi muito explorado pelos governistas, para reforçarem o discurso de que os rebeldes não passavam de um bando de sanguinários e ladrões que aterrorizavam as pessoas de bem, inclusive degolando padres.
Houve muito envenenamento da imprensa da época, que acusava os integrantes da Coluna de roubos, estupros, mortes e tudo mais de ruim. Isso causava pânico na população”, explica o jornalista e historiador Moacir Assunção, especialista em cangaço e autor de livros sobre a revolta de 1924 e o tenentismo.
Não que os problemas não ocorressem. Cavalos, alimentos, armas e outros produtos de necessidade básica eram “confiscados” pelos integrantes da marcha, que ofereciam uma espécie de recibo para que os donos pudessem receber os valores dos seus bens após a vitória da revolução, o que, claro, nunca aconteceu.
Roubos e outras infrações, porém, eram punidos com rigor, incluindo a expulsão dos criminosos da jornada. Assunção lembra que Filinto Müller, expulso da Coluna por acusação de roubo, muitos anos depois tornou-se chefe da polícia política de Getúlio Vargas, sendo o responsável direto pela prisão de Prestes e sua mulher, Olga Benário, em 1936.
Na região que compreendia pequenas cidades e vilarejos como Taiobeiras, Rio Pardo e Riachão dos Machados, no norte de Minas Gerais, o comando da Coluna, diante da grande concentração de forças legalistas no estado, resolve fazer o “laço húngaro” e dar início a uma contramarcha.
“Foi uma manobra interessante. Requisitamos muita coisa na Bahia, no comércio baiano. Nas cidades, entrávamos, requisitávamos calçado, roupa, chapéus, arreios e outras coisas mais. Passávamos um recibo, dávamos uma ‘requisição’”, descreve Prestes no livro de sua filha.
Após cruzarem a região da Chapada Diamantina, as tropas seguiram para o Piauí, Goiás e Mato Grosso, rumo ao Paraguai e Bolívia. Era o começo do fim. Com o desfecho do mandato de Bernardes e encerramento do estado de sítio no país, a avaliação dos líderes era que grande parte do objetivo da jornada havia sido cumprido e não valia a pena continuar com a luta armada, com poucos recursos e homens, sacrificando a população civil nas regiões de combates. Novas formas de luta deveriam surgir para a derrubada das oligarquias e mudanças efetivas no país.
O último combate ocorreu em janeiro de 1927, às margens do Rio Jauru, no Mato Grosso, próximo à fronteira com a Bolívia. Em fevereiro de 1927, cerca de 620 homens adentraram no país vizinho. Maltrapilhos, feridos e enfraquecidos, entregaram seu arsenal às autoridades bolivianas, cujo saldo era: 90 fuzis Mauser, quatro metralhadoras, das quais uma inutilizada, dois fuzis-metralhadoras e munição para 8 mil tiros.
Uma vez no exílio, Prestes tratou de arranjar trabalho para que os soldados pudessem sobreviver e, aos poucos, retornarem ao Brasil, já na condição de civis. Em seguida, ele próprio partiu para a Argentina.
Dois anos e três meses após o início da marcha que partiu do Sul e do Sudeste com o objetivo de abalar as pilastras da República Velha, o moral da tropa tenentista, mesmo após a deposição das armas e a penúria com que encerraram a missão, permaneceu elevado. “Não vencemos, mas não fomos vencidos”, afirmou o tenentista Lourenço Moreira Lima.