O clássico de Jonathan Swift, que foi reproduzido como uma comédia, tinha como objetivo criar um retrato da natureza humana e atacar sua mesquinhez
Único sobrevivente de um naufrágio, o médico Lemuel Gulliver consegue alcançar uma praia desconhecida. Exausto, desaba e adormece. Ao acordar, se vê amarrado até os cabelos ao chão e é surpreendido por um homenzinho de menos de 16 cm que, do alto de seu queixo, empunha um arco e flecha.
Logo, está na mira de dezenas, centenas de criaturinhas nervosas. O primeiro encontro entre o cirurgião aventureiro e os habitantes de Lilipute é mais do que conhecido. Mas suas viagens o levarão ainda a outras terras tão ou mais estranhas, numa saga que se tornou um texto essencial da literatura infanto-juvenil.
Antes de seguir adiante, porém, é bom corrigir esse que é um dos maiores equívocos sobre o clássico do irlandês Jonathan Swift: rabugento convicto, dizia não suportar as crianças. Não queria, portanto, escrever para elas. Em carta ao amigo e poeta Alexander Pope, afirmou que pretendia com a obra agredir o mundo, e não diverti-lo.
Ao publicar o livro, em 1726, sob o título Viagens em Diversos Países Remotos do Mundo em Quatro Partes, por Lemual Gulliver, a Princípio Cirurgião e, Depois, Capitão de Vários Navios, queria, sim, por meio da sátira e ironia afiadas, criar um retrato da natureza humana e atacar sua mesquinhez.
Na voz do médico (a quem faltavam pacientes e sobravam vontade de viajar e desânimo com a vida londrina), Swift faz uma dura crítica a formas de pensar e à organização de países, religiões e grupos sociais. O tom fabulesco e a prosa deliciosa, porém, garantiram fãs de todas as idades e o sucesso desde a primeira edição.
Na primeira escala em Lilipute (As Viagens se divide em quatro livros), o aventureiro compartilha suas impressões sobre o povo minúsculo e feroz, que se opõe em dois partidos e resolve suas divergências em disputas.
A etapa seguinte leva Gulliver à terra de Brobdingnag, onde ele se vê na situação inversa, numa terra de gigantes 12 vezes maiores que ele. Vivem aparentemente em paz - governados por reis contrários à violência -, mas imersos na soberba. Na terceira parada, o médico alcança a ilha flutuante de Laputa, onde muito se pensa e pouco se realiza.
Sua última viagem o conduz ao país dos houyhnhnms - cavalos inteligentes e virtuosos que convivem com os rudes, grosseiros e desleixados yahoos, seres humanos usados como serviçais, na terra mais exemplar encontrada por Gulliver. A rota completa incluiu outros países de nomes estranhos (como Luggnagg e Glubbdubdrib) e até o Japão, onde o cirurgião explica aos habitantes e líderes locais como as coisas funcionam na Europa - sobretudo na Inglaterra.
A forma de contar esse enredo, cuja veracidade é sempre destacada pelo narrador, acaba por ser uma paródia ao estilo literário em alta na época: os relatos de viagem. O inglês Daniel Defoe publicara em 1719 Aventuras de Robinson Crusoé com grande sucesso. "A Inglaterra ainda vivia um processo de expansão marítima e novas descobertas. Destacava-se o exotismo, as diferenças entre os britânicos e os nativos dessas terras", diz Sandra Vasconcelos, professora de literatura da USP.
"Swift usa esse aparato ficcional, então muito popular, para atingir outro objetivo: a sátira, que também tinha forte presença na literatura inglesa e nos trabalhos do autor".
Politicamente incorreto
Se Defoe (com a superação do náufrago Crusoé e outros textos) transborda otimismo, o colega irlandês é bem mais cético em relação às habilidades humanas. "Matem todas as crianças da Irlanda", sugeriu Swift no texto de 1729 Uma Modesta Proposta - Para Impedir que os Filhos das Pessoas Pobres da Irlanda Sejam um Fardo para seus Progenitores ou para o País, e Para Torná-los Proveitosos ao Interesse Público.
Foi impulsionado, mais uma vez, pelo inconformismo em relação à "burrice" do homem civilizado, principalmente com a política inglesa, responsável pela colonização, que deixara irlandeses agora colhendo as consequências da miséria, falta de comida e trabalho, imigrando para os Estados Unidos.
Fiel ao próprio estilo, o autor recomendava aos ingleses que garantissem a amamentação dos bebês até o primeiro ano de vida, de forma que, gordinhos, fossem servidos como aperitivo no jantar. Seria melhor opção do que deixar que "virassem ladrões" por falta de trabalho.
Para impedir a extinção dos irlandeses, ele sugere que 20 mil crianças fossem reservadas para a procriação no futuro. Para o escritor francês André Breton, um dos fundadores do movimento surrealista, no século 20, Swift foi precursor do humor negro na literatura.
Jonathan Swift nasceu em Dublin, em 1667, filho de uma inglesa radicada na Irlanda que ficou viúva antes de dar à luz. Abigail Erick custeou os estudos do filho com a ajuda dos cunhados. Ele se formou bacharel em artes e foi morar em Londres, onde tornou-se secretário do diplomata sir William Temple, parente distante de sua mãe. Com o apoio dele, Swift fez o mestrado em Oxford e, ordenado padre em 1695, foi indicado cônego da igreja anglicana em Kilroot, Irlanda.
Em meados do século 17, a política inglesa estava dividida entre dois grandes grupos: os whigs(liberais, que resistiam à ascensão de um rei católico) e os tories (conservadores e defensores do direito divino ao trono). Em 1685, o católico James II foi coroado. Sob forte pressão, acaba destituído pouco depois pela filha protestante e pelo genro Guilherme III. Essa disputa divide também os intelectuais.
Swift costumava ser identificado com os whigs, mas sob o governo da rainha Ana se aproxima dos tories. O autor começou escrevendo poemas. Só no início do século 18, dedica-se à prosa satírica, assinando suas obras, em geral, como Isaac Bickerstaff. Apesar de ser associado a um ou outro partido, ele se dizia contrário a várias características da prática política e se revelava cético sobre a sociedade setecentista.
"No fim do século 17, o poder real deixa de ser absoluto na Inglaterra, que passa a ser uma monarquia constitucional de parlamento forte. Swift explora isso nas Viagens, mas não toma partido", diz Sandra.
Rato na toca
Ele acaba pagando um preço pelos textos irônicos. Em 1713, sob um governo tory, perde um importante cargo: em vez de conseguir a Sé de Hereford, na Inglaterra, é indicado como deão da Catedral de São Patrício, em Dublin. Swift ofende-se com a nomeação, mas crê que o melhor a fazer é retornar à Irlanda, onde diz se sentir como um "rato entocado".
Por mais que tivesse sua própria visão política - sob forte influência do racionalismo e da moral anglicana conservadora -, ao escrever sua maior obra preferiu recorrer a terras fantasiosas, comparando as atitudes de seus habitantes com a sociedade europeia e a política inglesa.
Gulliver aprende sobre cada lugar por onde passa, mas no cenário mais "evoluído" que encontra (com os cavalos virtuosos) acaba sendo renegado, pois se parece com a casta inferior, a dos humanos. Ele então abandona os mares e retoma sua vida solitária.
Os anos derradeiros de Swift também foram de reclusão. Seguiu escrevendo ensaios satíricos. Estava convencido de que a estupidez humana estava por trás de todos os males sociais. Por causa disso, chegou a desejar a loucura, que o ajudaria a "esquecer a idiotice".
Em 1736, ironicamente, adoece, fica surdo e é diagnosticado como louco. Hoje se entende que ele tenha sofrido de Alzheimer ou da síndrome de Ménière, que afeta o equilíbrio e a audição. Internado num asilo, para o qual doaria quase toda a sua herança, serviu de atração para curiosos (devido à sua doença, e não à sua obra). Foi sua última viagem. Morreu em 1745.
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