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Matérias / Anne Frank

A história esquecida de Bep Voskuijl, confidente de Anne Frank

Guardiã e confidente da jovem judia, Bep Voskuijl "desempenhou um papel importante na produção literária de Anne", diz autor; conheça sua história!

Fabio Previdelli
por Fabio Previdelli
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Publicado em 25/06/2024, às 14h41 - Atualizado às 17h12

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Fotos de Bep Voskuijl e Anne Frank - Fundação Anne Frank
Fotos de Bep Voskuijl e Anne Frank - Fundação Anne Frank

Há 77 anos, em 25 de junho de 1947, 'O Diário de Anne Frank' foi publicado pela primeira vez. Hoje, a obra é uma das mais vendidas do mundo, com mais de 30 milhões de cópias adaptadas para 70 idiomas diferentes. 

Até aquela altura, final dos anos 1940 e início da década de 1950, o mundo estava 'acostumado' a lidar com as vítimas por meio do choque de quantidade, com a exibição de pilhas de roupas, sapatos… No mesmo período, o assustador número de 6 milhões de judeus mortos foi conhecido e passou a ser divulgado

Mas com uma escrita sutil e encantadora, os relatos de Anne ajudaram a tratar as vítimas não só como números, mas como histórias que foram apagadas pelos horrores da Segunda Guerra Mundial

+ Qual foi o último relato que Anne Frank deixou em seu diário?

Desde que 'O Diário de Anne Frank' foi publicado, o livro gerou cada vez mais curiosidade sobre o intervalo de 761 dias entre os Frank se mudarem para o Anexo Secreto até a morte de Anne, por tifo, no campo de concentração de Bergen-Belsen. 

Páginas do diário de Anne Frank / Crédito: Getty Images

Não só isso. A publicação do diário também revelou 'heróis ocultos', como Miep Gies, a mulher que ajudou a família de Anne enquanto eles estavam no Anexo e também foi responsável por resgatar o diário e as cartas escritas pela menina — que mais tarde se transformaram no livro. 

Mas apesar de todo esse tempo, uma figura fundamental permanece desconhecida do grande público: Bep Voskuijl; a melhor amiga, confidente e protetora de Anne Frank

Os Frank e os Voskuijl

A relação entre Elisabeth 'Bep' Voskuijl — citada nas primeiras edições de 'O Diário de Anne Frank' sob o pseudônimo de Elli Vossen' — com a família Frank se iniciou em 1937, quando a jovem holandesa, então com 18 anos, foi contratada por Otto Frank como secretária e datilógrafa taquigrafa em sua empresa, a Opekta. 

"Com o tempo, desenvolveu-se um vínculo entre os dois, especialmente depois que Otto Frank começou a convidá-la para sua casa, onde Bep conheceu Anne pela primeira vez, junto com sua irmã Margot e a mãe delas, Edith. Otto tornou-se amigo do pai de Bep, Johan, e eventualmente o contratou como funcionário do armazém (e mais tarde como gerente de lá)", conta Jeroen de Bruyn em entrevista exclusiva ao site Aventuras na História.

Ao lado de Joop van Wijk-Voskuijl, um dos filhos de Bep, Jeroen escreveu o recém-lançado no Brasil 'O último segredo de Anne Frank: A história não contada de Anne Frank, de sua protetora silenciosa e de uma traição familiar' (Ed. Planeta).

Quando os Frank desapareceram em julho de 1942 e se refugiaram no Anexo Secreto, Johan não sabia inicialmente para onde eles tinham ido, mas logo as pessoas no Anexo concordaram em revelar o segredo para Voskuijl", continua. 

Conforme a procura por judeus escondidos em Amsterdã se tornava cada vez mais frequente, em meados do verão de 1942, Victor Kugler (que trabalhava na área administrativa da Opekta e um dos guardiões do Anexo Secreto) teve a ideia de ocultar a entrada do esconderijo com uma estante de livros.

"Jo Kleiman [outro funcionário de Otto] perguntou a Johan Voskuijl se ele poderia construir tal estante. As pessoas no Anexo e os ajudantes sabiam que Johan tinha talento para marcenaria. Eles ficaram muito surpresos ao descobrir que os presentes que Johan havia dado aos residentes do Anexo para o feriado holandês de Sinterklaas tinham sido feitos por ele mesmo: como os suportes de livros para Otto, um porta-retratos para Fritz Pfeffer, um cinzeiro para Hermann van Pels, que fumava muito", contextualiza De Bruyn.

Johan aceitou o pedido e começou a construir a estante em sua casa na Rua Lumeijstraat 18, em Amsterdã. Obviamente, o sujeito não podia contar a ninguém, exceto para Bep, o que estava fazendo durante aquelas semanas. 

+ 'O último segredo de Anne Frank': Obra debate quem denunciou o Anexo Secreto

Johan Voskuijl e a estante que escondia a entrada do Anexo Secreto - Fundação Anne Frank e Maria Austria/MAI/Amsterdam

Depois do jantar, ele dizia à sua esposa: 'Stien, tenho que alimentar os pombos', e então ia para o sótão por algumas horas sem dar explicação. A família conseguia sentir o cheiro da cola que Johan estava usando, e ouvir o barulho da serra e do martelo", revela o autor. 

Jeroen explica que tanto Johan quanto Bep fizeram de tudo para proteger o Anexo Secreto dos trabalhadores da Opekta que não sabiam de absolutamente nada — missão que não foi nada fácil. "Bastava um deslize para levantar suspeitas entre as pessoas sobre o Anexo". 

"A regra dentro do Anexo era que os moradores deveriam sussurrar durante o dia de trabalho e usar pantufas em vez de sapatos para abafar seus passos. Mas mais de uma vez, uma discussão se descontrolava e alguns começavam a gritar. Sempre que Johan ouvia Anne gritando ou uma briga entre o Sr. van Pels e sua esposa, ele tentava criar uma distração. Ele ia até o trabalhador do armazém mais próximo e começava a gritar com ele por alguma infração imaginária, tentando abafar o barulho. Enquanto isso, Bep conseguia subir as escadas e avisar as pessoas: 'Podemos ouvir vocês!'", aponta. 

A relação entre os Frank com Johan e Bep era tão próxima que Anne ficou arrasada quando soube que o sujeito havia descoberto um câncer de estômago em 1943 e, como consequência, não conseguiria manter seu emprego na fábrica. 

"Anne escreveu que Voskuijl foi 'nossa maior fonte de ajuda e apoio quando se tratava de medidas de segurança' e que ela e as outras pessoas no Anexo sentiam muito sua falta. Otto Frank também gostava muito de Johan, e, segundo Anne, sua maior preocupação quando finalmente conseguisse deixar o Anexo seria visitar seu amigo doente em casa", relata Jeroen

A fundamental Bep 

Como narrado em 'O último segredo de Anne Frank', Bep Voskuijl desempenhou diversos papéis importantes para as pessoas que estavam no Anexo Secreto. "Por exemplo, durante a guerra, Bep procurava por comida, já que os produtos alimentícios estavam racionados na época", conta De Bruyn

Para isso, Jan Gies, marido de Miep, forneceu bilhetes de racionamento falsificados ou roubados (obtidos através de seus contatos na Resistência), que ela levava a comerciantes amigos. 

Bep costumava comprar legumes de dois verdureiros conhecidos, já a carne era obtida através de um açougueiro amigo de Hermann van Pels; que frequentemente conseguia dar um pouco de alimento extra. 

Bep também comprava leite para as pessoas no Anexo. Mais tarde, ela confessou a Joop que o leiteiro, que não era muito atraente, gostava dela e que ela flertava descaradamente com ele para conseguir um pouco mais de leite. Bep havia contado ao leiteiro que tinha uma família grande para sustentar. 'Toma isso', sussurrava o homem de vez em quando. 'Um pouco de leite extra para todas aquelas bocas que você tem que alimentar', dizia", conforme descreve Jeroen. 

Além disso, Bep Voskuijl também serviu como um grande apoio para Anne durante o período em que ela esteve escondida. As duas tinham conversas privadas no quarto da garota, onde ela chegou a confidenciar sobre seu amor por Peter (o filho da outra família no Anexo), ou sobre seus planos de se tornar jornalista e escritora após a guerra. 

+ Peter Schiff: O grande amor de Anne Frank

"Ela até pediu a Bep uma vez que a ajudasse a encontrar uma maneira de publicar algumas de suas histórias curtas escritas por ela mesma. Ao longo da guerra, Bep desempenhou um papel importante na produção literária de Anne, fornecendo cadernos e papel. Quando não conseguia encontrar essas coisas nas lojas, ela dava a Anne suprimentos extras do escritório, incluindo papel carbono que Anne mais tarde usaria para revisar seu diário", conta Jeroen

Bep Voskuijl com sua família, 1960 - Fundação Anne Frank, Amsterdã

De vez em quando, Anne compartilhava algumas passagens de seu diário com Bep. No entanto, Voskuijl não ficou tão satisfeita quando percebeu que a garota havia escrito sobre ela, visto que tais passagens poderiam ser extremamente perigosas se o Anexo fosse descoberto. 

"Bep tentou convencer Anne a ser mais discreta, mas seus esforços foram em vão. Tudo o que Bep pôde fazer foi avisar as outras pessoas no Anexo. 'Vocês não deveriam contar tanto para ela', ela dizia. 'Ela escreve tudo no diário!'", recorda o pesquisador. 

O amor de Bep

Ao mesmo tempo em que Bep tinha muitas preocupações durante a Guerra, como manter o Anexo em segredo, comprar comida para as pessoas escondidas e para a sua família, ela também dedicava seu tempo ao seu relacionamento como Bertus Hulsman — a quem ela não amava realmente, aponta De Bruyn

"Anne frequentemente escrevia sobre a vida amorosa de Bep em seu diário. Ela ficou surpresa quando soube, em maio de 1944, que Bep e Bertus estavam noivos. 'Nenhum de nós está particularmente feliz', Anne escreveu, referindo-se às pessoas no Anexo, acrescentando que Bep provavelmente disse sim a Bertus apenas para 'acabar com sua indecisão'. Anne escreveu que esperava que Bep encontrasse um homem legal 'que soubesse apreciá-la', sem saber que Bep já havia encontrado esse homem: Victor Kugler, um dos outros ajudantes do Anexo", narra Jeroen

O fato, aliás, foi confessado por Bep não só para seu filho Joop como também para sua irmã mais nova, Diny, após a guerra. "Aliás, Joop e eu fomos os primeiros a relatar isso na vasta literatura sobre Anne Frank. Bep e Kuglerqueriam manter seu amor em segredo dos outros ajudantes e dos residentes do Anexo, porque não queriam causar conflito ou intriga entre eles". 

Além disso, Victor ainda era casado, e Bep não queria romper o casamento dele. Victor queria construir uma nova vida com Bep e se mudar com ela para a América assim que a guerra terminasse. Mas 'existem escolhas que simplesmente não se pode fazer na vida', Bep contou mais tarde a sua irmã Diny", explica o autor.

Após a guerra, Victor Kugler se casou com outra mulher holandesa e migrou para Toronto com ela. Já Bep se casou com Cornelis van Wijk, com quem teve quatro filhos: Joop, Cok, Ton e Anne-Marie

O casamento de Bep Voskuijl e Cor van Wijk, 15 de maio de 1946 - Fundação Anne Frank, Amsterdã

A esquecida Bep

Mas se Bep Voskuijl teve um papel tão importante assim na vida de Anne, por qual motivo sua história foi esquecida como o tempo? Jeroen de Bruyn aponta que, antes de tudo, é importante ressaltar que Bepteve que lidar com o difícil fato de que sete dos oito residentes do Anexo foram mortos no Holocausto

"A morte de Anne, especialmente, foi algo que ela nunca superou. Como resultado, era doloroso para ela falar sobre a guerra. Quando o diário de Anne se tornou famoso na década de 1950, cada vez mais jornalistas ficaram interessados em Bep e queriam falar com ela, pois sabiam que ela tinha sido confidente de Anne. Mas Bep sofreu com essas entrevistas e eventualmente parou de falar com a imprensa. Os outros ajudantes publicaram suas memórias e deram muitas entrevistas, e gradualmente Bep e seu pai se tornaram os ajudantes menos conhecidos", explica. 

Jeroen conta que um dos principais incentivos para a publicação de 'O último segredo de Anne Frank' é mudar a imagem distorcida que muitas pessoas têm de Bep: uma jovem ingênua. 

"Na realidade, Bep era muito madura para sua idade e carregava uma grande responsabilidade, tanto ajudando a abrigar oito judeus quanto cuidando de seus pais e sete irmãos durante a guerra", diz.

Além disso, Bep foi a confidente mais próxima de Anne durante seu tempo escondida. Não há ajudante sobre quem Anne tenha escrito com mais carinho do que Bep. O diário está repleto de passagens sobre Bep, mas como muitas dessas passagens foram apagadas da edição publicada, Bep se tornou uma personagem menos conhecida na história de Anne Frank", relata. 

"Fiquei impressionado com a quantidade de novas informações que Joop e eu conseguimos encontrar durante nossa pesquisa. Conversamos com testemunhas que nunca haviam falado em público antes, encontramos cartas de Bep para Otto Frank nos arquivos e descobrimos uma entrevista muito rara com Bep de 1978, na qual ela compartilhou detalhes sobre o Anexo que não eram conhecidos pelo público em geral. Encontramos até transcrições dos trechos originais do diário nos quais Anne escreveu sobre Nelly [irmã de Bep] e sobre sua colaboração com os nazistas, que publicamos em nosso livro", finaliza o autor.