Às vésperas do Golpe de 1964, CIA realizou relatório afirmando que o então presidente João Goulart estava “ou fora da realidade ou pouco informado”
Um relatório elaborado pela CIA às vésperas do golpe de 1964 afirmou que João Goulart, então presidente brasileiro, estaria “vivendo num mundo da fantasia”. O documento faz parte de uma série de arquivos secretos da agência corroboram o monitoramento e a interferência dos Estados Unidos na América Latina durante a década de 1960.
Ao todo, a Casa Branca divulgou 2.343 documentos confidenciais, somando 77 mil páginas, agora digitalizadas e disponíveis no dossiê do Arquivo Nacional dos EUA dedicado ao ex-presidente John F. Kennedy.
O acervo inclui relatórios sigilosos de diversos órgãos, como a própria CIA, e aborda temas centrais da Guerra Fria, período marcado pela rivalidade entre o bloco capitalista, liderado pelos EUA, e o comunista, sob influência da União Soviética e de Cuba. Entre os registros, há detalhes das relações entre Cuba e outros países da América Latina após a Revolução Cubana de 1959 e a crise dos mísseis em 1962.
Um memorando da CIA de 27 de março de 1963, com mais de 40 páginas, revela que 19 brasileiros receberam treinamento de guerrilha em Cuba. De acordo com o portal UOL, o relatório, intitulado “Treinamento cubano de subversivos latino-americanos”, estimava que havia cerca de 2.000 militantes pró-Cuba atuando na América Latina naquele período.
Segundo o documento, aproximadamente 400 brasileiros viajaram à ilha em 1962; entre eles, estavam os 19 treinados, incluindo Maurício Grabois, um dos fundadores do Partido Comunista Brasileiro, morto na Guerrilha do Araguaia em 1973.
Em outro informe, datado de 17 de abril de 1963, conselheiros do presidente Kennedy argumentavam que “um golpe militar a certo ponto seria preferível a permitir que um país tão grande e poderoso como o Brasil caísse nas mãos da oposição”. Menos de um ano depois, em 31 de março de 1964, os militares derrubaram João Goulart.
Um documento da CIA, datado de 26 de novembro de 1963, reforça a visão de que Jango estava “ou fora da realidade ou pouco informado”. O relatório alertava que “o maior perigo é que a oposição pode recorrer a um ato ilegal, dando a Goulart a desculpa para assumir o poder”. Embora tenha sido eleito em 1960 e assumido a presidência em 1961, Goulart foi acusado pelos conspiradores de planejar um autogolpe para instaurar o comunismo no país.
Os documentos revelados reforçam que a suposta “ameaça comunista” serviu como justificativa para golpes de Estado em diversos países da América Latina. Segundo Sidnei Munhoz, professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e coordenador do projeto Abrindo os Arquivos, o embaixador dos EUA no Brasil, Lincoln Gordon, teve papel decisivo ao apoiar a tese de que Goulart representava um risco iminente.
“O contato de Gordon com os oficiais de Washington que atuavam no Brasil e com setores conservadores das elites brasileiras o levaram cada vez mais a adotar a tese de que era necessário apoiar um golpe para depor Goulart -- e assim evitar que o Brasil se tornasse não uma "nova Cuba", mas uma "nova China", dadas suas dimensões territoriais e populacionais”, explicou o historiador.
Além disso, de acordo com o colunista do UOL Jamil Chade, a CIA utilizou a mala diplomática brasileira para enviar correspondências aos agentes americanos infiltrados na dissidência cubana em Havana.
O presidente Kennedy chegou a receber enviados do governo brasileiro, demonstrando interesse em entender o cenário político do país e influenciar suas decisões. Em abril de 1962, Jango e Kennedy se encontraram nos EUA, mas a relação entre os dois governos rapidamente se deteriorou.
Pouco antes de sua morte, Kennedy teria dado sinal verde para um golpe de Estado. Com a posse de Lyndon B. Johnson, o apoio dos EUA aos golpistas brasileiros foi mantido, culminando no golpe civil-militar de 1964 e na instalação de um regime ditatorial que duraria mais de duas décadas, concluiu Munhoz.