O Alcorão é muito mais tolerante com as muçulmanas do que as culturas e os governos de onde vivem
Em meados de 2006, uma jovem de 19 anos estava no carro de um conhecido na província de Qatif, na Arábia Saudita, quando sete homens a sequestraram e estupraram.
Ela denunciou o ataque, com o apoio do marido, e os agressores, julgados, receberam penas de dois a nove anos de prisão. Mas a vítima não foi poupada. Acabou condenada ao açoite - 90 chibatadas - por estar no veículo de um homem que não era seu parente.
Após apelar da sentença, a Garota de Qatif sofreu punição ainda maior: 200 chibatadas e seis meses de cadeia por tentar influenciar a Justiça através da mídia. Em dezembro de 2007, o então rei saudita Abdullah 'a perdoou', mas garantiu que o resultado do processo fora justo.
No mesmo mês, um crime familiar comoveu o Canadá. Muhhamad Parvez, um taxista de origem paquistanesa, foi preso acusado de matar a filha Aqsa, de 16 anos. Segundo seus colegas de escola, em Toronto, ela era ameaçada pelo pai por se recusar a usar o hijab (véu islâmico).
Já os líderes da comunidade muçulmana atribuíram o caso à violência doméstica, sem nenhuma relação com o Islã, e acusaram a imprensa de associar sua religião com a opressão feminina.
Episódios como esses são apenas a parte mais visível dos conflitos vividos por mulheres muçulmanas. Desde os anos 1990, várias delas decidiram romper tabus - e arriscar a pele - ao revelar sua trajetória em livros traduzidos no Ocidente.
É o caso da paquistanesa Tehmina Durrani, que narrou os abusos impostos pelo marido em My Feudal Lord ("Meu Amo e Senhor", de 1993), e da somali Ayaan Hirsi Ali, que acusa o Islã de sexismo em Infiel (2006).
Para muitos historiadores, porém, é apressado concluir que ocorrências desse tipo resultam da religião islâmica. O véu e o isolamento feminino já eram comuns na Arábia antes de Maomé fundar ali a sua fé, no século 7.
Preconceito e violência contra a mulher existem em todas as culturas e religiões, inclusive no Brasil, e o credo não parece ser um fator determinante. Hoje, o Islã é tão diverso quanto outros países podem ser. Afinal, como evoluiu o papel da mulher muçulmana? De onde vêm as tradições que a diferenciam do homem?
Antes de Maomé
O Islã não aconteceu num vácuo. Ele foi influenciado por crenças e costumes das tribos que habitavam o Oriente Médio antes do nascimento do Profeta, em 570. A divisão usual de trabalho entre os sexos masculino e feminino, por exemplo, existia desde a invenção da agricultura e a criação de animais, em cerca de 10 mil a.C.
Em geral, elas cuidavam das tarefas domésticas, enquanto eles monopolizavam a política, a economia e a religião. Judias, árabes, gregas e bizantinas usavam diferentes tipos de véu, sobretudo as da elite urbana.
Segundo a antropóloga Paula Holmes-Eber as civilizações da Mesopotâmia já ostentavam a peça havia pelo menos 4 mil anos. No início, o véu estava mais associado com a classe do que com a religião - obrigatório para ricas e proibido para pobres e escravas. Cobrir o cabelo e partes do corpo e da face era um símbolo de status.
Na península Arábica, as nômades tinham mais autonomia para trabalhar e até lutavam em guerras. Nas cidades, havia maior submissão: os poderosos construíam haréns com várias esposas e escravas.
Apesar das diferenças, os homens do Oriente Médio tinham uma preocupação em comum: a sexualidade da mulher. "Cada vez mais interessados em garantir a paternidade e a pureza da linhagem, eles aumentaram o controle sobre as ações delas", diz a historiadora Nikki Keddie. "Na Assíria do ano 2000 a.C., por exemplo, só os homens podiam se divorciar e ter herança."
Primeiros direitos
Para a maioria das tribos árabes, a honra do homem dependia da fidelidade da esposa. Mulheres suspeitas de fornicação ou adultério podiam ser mortas por parentes. Esses "crimes de honra" continuariam em menor número após o advento do Islã - embora não estejam previstos em nenhuma passagem do Alcorão, o livro sagrado dos muçulmanos. Isso mostra como tradições tribais permearam a nova religião.
Ela também absorveu visões patriarcais do judaísmo e do cristianismo. O Alcorão não culpa Eva pela expulsão do Paraíso, mas compartilha a responsabilidade com Adão - um avanço em relação à Bíblia. No entanto, aos poucos, os juristas islâmicos incorporaram visões pecaminosas sobre a mulher e a homossexualidade.
Historiadores concordam que a fundação do Islã melhorou a condição das mulheres que viviam na Arábia. Mas o grau dessa mudança gera debate.
"A religião deu a elas o direito de ter propriedade, herança e educação e escolher com quem se casar", diz a historiadora Yvonne Haddad. "O Alcorão, contudo, santificou direitos superiores aos homens", afirma Nikki Keddie.
Entre eles, o de punir uma mulher desobediente (mesmo bater), o direito de ter até quatro esposas (desde que pudesse sustentá-las), a ideia de que se deve obediência ao marido (inclusive na cama) e a de que a herança da filha é a metade da devida ao filho. O direito de agredir está expresso assim nas escrituras: "Aquelas de quem temeis a rebelião, exortai-as, bani-as de vossa cama e batei nelas. Se vos obedecerem, não mais as molesteis".
Graças ao Alcorão, as noivas puderam receber dote de casamento, divorciar-se e casar de novo. O texto também proibiu os pais de matarem as filhas indesejadas, uma prática comum até então. E protegeu as mulheres da difamação. Para acusá-las de adultério, passaram a ser exigidas quatro testemunhas.
Evolução
Parte dessa evolução talvez se explique pela importância que as mulheres tiveram na vida de Maomé. A primeira de suas esposas (existe controvérsia sobre o número. Há quem afirme que foram 13), Khadija, era uma viúva rica que o empregou e lhe propôs casamento.
Ela tinha 40 anos, e ele, 25. Seu apoio foi essencial para que o profeta tivesse segurança no início da trajetória. O casamento foi monogâmico - bem ao gosto dela. Após a morte de Khadija, ele se casou com diversas mulheres, entre viúvas e filhas de amigos.
Aisha, a preferida, tinha 9 anos quando disse "sim". Ela exerceu uma grande influência na tradição islâmica após a morte de Maomé, em 632. É citada como a fonte de muitos hadith, as narrativas sobre palavras e hábitos do Profeta.
O historiador Bernard Lewis diz que a reforma promovida pelo Alcorão foi um avanço, mas não tirou a mulher de sua posição inferior. "A escrava solteira estava à disposição carnal do senhor. A mulher livre podia ter escravos, mas não exercer esses direitos sobre eles", afirma. "No caso de crimes religiosos, as mulheres recebiam penas menos severas, como prisão e açoitamento, em vez de execução. Isso, porém, aos olhos do jurista, era sinal de inferioridade, e não de privilégio."
Segundo Lewis, a inferioridade já existia no judaísmo e no cristianismo. "Embora aceitassem a igualdade dos seres humanos, as três religiões limitaram seu desfrute pleno aos homens da mesma fé, livres e adultos."
Ou seja, sempre houve a ideia de que o infiel, o escravo, a criança e a mulher eram subalternos. Os três primeiros tinham solução: o escravo podia virar liberto, o ateu podia se converter e a criança chega à vida adulta. "Só a mulher era condenada à inferioridade", diz ele.
A expansão
Se o Alcorão beneficiou as mulheres da Arábia, é verdade também que seus direitos foram erodidos à medida que os exércitos de Alá conquistaram o resto do Oriente Médio, o norte da África e partes da Europa e da Ásia.
Ao se espalhar, o Islã incorporou costumes tribais de cada lugar. E as escrituras começaram a ser interpretadas de uma maneira mais machista com base nas tradições locais.
Foi o que aconteceu na dinastia dos omíadas (661-750) e na de seus sucessores, os abássidas (750-1258). Elas transformaram o Islã num caldeirão de culturas, que incluía indianos, chineses, europeus e africanos.
No início da expansão, o progresso militar, econômico e filosófico foi tão grande que ficou conhecido como Idade de Ouro da religião. As mulheres, porém, foram progressivamente excluídas da vida pública. "A partir do século 8, os califas (sucessores de Maomé) começaram a isolar suas esposas e criar haréns com elas e as escravas, prática seguida por ricos e poderosos", afirma Nikki Keddie.
O véu também virou regra. "Ao longo da vida de Maomé, o véu era usado apenas por suas esposas. A adoção se generalizou por uma combinação de fatores: a conquista de áreas onde ele era comum na classe alta, o influxo de riqueza, a elevação do status dos árabes e o fato de que as mulheres do profeta eram exemplo", diz Leila Ahmed, professora de estudos sobre a mulher.
As amarras só afrouxaram no domínio dos mamelucos. Originários da Ásia Central, eles eram guerreiros islamizados que haviam sido escravos nas tropas dos califas. Em 1250, tinham acumulado força suficiente para bloquear o avanço dos mongóis no Oriente Médio e criar seu próprio império. Quem o fundou, aliás, foi uma mulher: Shajarat al-Durr, viúva do sultão egípcio As-Salih Ayyub.
Em 1517, uma nova potência islâmica tomou a dianteira: o Império Turco-Otomano. Os sultões otomanos ergueram o último califado (estado islâmico centralizado), que ia do norte da África ao sul da Rússia.
Ao longo de quatro séculos, a situação das mulheres variou bastante nessas terras. Em geral, elas eram defendidas dos abusos do governo graças a um equilíbrio de poder entre os sultões (chefes da política e da guerra) e os eruditos (guardiões da Sharia, a lei islâmica).
"Os governantes não podiam oprimir os cidadãos nem violar as leis de Deus, guardadas pelos juristas", diz Noah Feldman, professor de direito. Para ele, esse equilíbrio tornou o Estado islâmico legítimo ante seus cidadãos.
Mas a derrota do Império Otomano na Primeira Guerra gerou uma reviravolta: o califado chegou ao fim e as terras do Islã viraram colônias dos países ocidentais. Logo alcançaram a independência - a maioria na forma de ditadura. Foi quando a situação da mulher piorou para valer.
Espectro islâmico
No século 20, dois acontecimentos sacudiram a religião: a adoção da ideologia extremista wahabismo pela Arábia Saudita, nos anos 1920, e a revolução islâmica do Irã, em 1979. O wahabismo inspirou a Al Qaeda e o regime dos talibãs, no Afeganistão, além de ser ensinado em mesquitas e escolas corânicas (madrassas) pelo mundo.
O regime dos aiatolás segregou as mulheres nos ônibus, passou a idade mínima para casamento de 18 para 9 anos e condenou adúlteras e prostitutas à morte por apedrejamento (um costume do judaísmo dos tempos bíblicos). "Milícias armadas patrulhavam o comportamento das mulheres nas ruas. Um vestígio de maquiagem e eles vinham, implacáveis", disse Azar Nafisi, autora de Lendo Lolita em Teerã em entrevista à VEJA.
Hoje, o Islã é um espectro que vai da Turquia (secular) à Arábia Saudita e ao Irã (teocracias), passando por casos intermediários, como Marrocos, Egito, Mali e outros 51 países onde a lei islâmica se mescla com as leis modernas.
Assim, em muitos deles, a religião e o Estado são uma coisa só. Quem interpreta e aplica a Sharia são autoridades locais - o que dá margem a exageros e impede que cada pessoa seja livre para seguir a fé como bem entender.
Isso explica por que as mulheres devem andar completamente cobertas em Cabul e não podem dirigir na Arábia Saudita, diferentemente do que se percebe na Jordânia, onde a rainha Rania não usa o véu.
"Nos países guiados pela lei islâmica, não há polícia para proteger a mulher no caso de violência doméstica. Espera-se que ela seja protegida do caos externo pelos homens da família", diz a turca Didem Ozdemir. "Ninguém sabe se a Sharia consiste em práticas e palavras reais do Profeta ou se foi ajustada num sistema de opressão que funciona para o interesse de poucos."
Especialista em questões gênero, ela sustenta que essa estrutura justifica a violência doméstica: se um homem bate na mulher, é porque ela fez algo errado. "Na Turquia, as lei são modernas e as agressões são proibidas. Mas, no passado, vimos policiais dizendo a uma mulher machucada que voltasse à casa e desse outra chance ao marido, pois seria ele seu guardião."
No entanto, Ozdemir lembra que a relação entre violência e religião não é tão direta - especialmente no Oriente Médio, onde os costumes não religiosos é que podem ser opressivos: "Muita gente não sabe dessas tradições e acha que é tudo parte do Islã. A violência deriva de uma hierarquia sofisticada, criada por costumes e apoiada na religião." Segundo ela, números sobre as agressões contra muçulmanas são imprecisos, mas estima que os casos sejam bastante comuns.
Relatório do Fórum Econômico Mundial sobre a disparidade entre homens e mulheres, o Global Gender Gap Report (2009) mostra que, dos 20 países onde é maior a desigualdade entre os gêneros, 19 são muçulmanos.
Os dados avaliam diferenças de acesso a educação e saúde e o espaço na política e na economia. Dos 134 listados, os piores são Iêmen, Chade, Paquistão e Arábia Saudita. O Brasil está em 81o lugar, atrás de, entre outros, Argentina (24o) e Islândia (1o).
Não foi só o fundamentalismo que sacudiu o Islã no século 20. Um movimento bem mais silencioso começou a pressionar pela liberalização das leis sobre o universo feminino.
A iniciativa levou à eleição de três governantes mulheres a partir dos anos 1980: Benazir Bhutto (Paquistão), Tansu Ciller (Turquia) e Megawati Sukarnoputri (Indonésia). O "feminismo muçulmano" é o capítulo mais recente dessa história. O termo foi cunhado nos anos 1990, na esteira da 4a Conferência da ONU sobre a Mulher, em 1995.
Há três correntes de feministas muçulmanas. A primeira, que inclui a americana Amina Wadud, aborda o papel da mulher sem romper com a tradição do Islã (defende, por exemplo, a maior participação feminina nos serviços religiosos).
A segunda corrente busca a mudança pelas ideias seculares, como é o caso da indiana Asra Nomani, para quem homens e mulheres deveriam se sentar juntos nas mesquitas. A última alega que o credo impõe aversão à mulher. Sua expoente é a somali Ayaan Hirsi Ali.
Muitas muçulmanas não se sentem oprimidas. "Ayaan lucra com as críticas ao Islã. Outras informantes internas (alguém da própria religião que difama) andam muito populares porque reforçam estereótipos que a imprensa quer perpetuar", diz Yvonne Haddad.
O véu tampouco é um problema para boa parte das mulheres. Ao contrário. O que os ocidentais podem definir como "submissão", elas chamam de "identidade".