A lei compreende um dos muitos capítulos que formaram a saga da abolição da escravidão no Brasil
Os africanos que já habitavam o Brasil permaneciam na prática opressiva. Afinal, as leis em vigor só consideravam livres os que eram vítimas do tráfico – e, ainda assim, muitos foram escravizados.
A situação em terras brasileiras só começou a mudar com a promulgação da Lei do Ventre Livre, em 28 de setembro de 1871. “Essa lei também foi votada sob pressão internacional, uma vez que terminada a Guerra Civil nos Estados Unidos em 1865, com a decorrente libertação dos escravos sulistas, o Brasil alcançava a vergonhosa fama mundial de ser o último país escravista do continente americano”, enfatiza a historiadora Célia Azevedo, autora do livro 'Onda Negra, Medo Branco: O Negro no Imaginário das Elites no Século 19'.
Além de prever que todos os filhos de escravizadas nascidos a partir daquele ano seriam considerados livres, a legislação estabelecia em seu artigo 4° que os escravos podiam formar pecúlios para comprar a alforria, permitindo que eles pudessem juntar dinheiro por meio de doações, heranças e a partir do próprio trabalho.
Caso o valor para a compra da alforria não fosse aceito pelo senhor, o montante seria fixado por meio de uma avaliação realizada por três peritos nomeados por um juiz.
Ou seja, o escravo que quisesse ser livre, teria que comprar a sua própria liberdade e, em alguns casos, ainda corria o risco de ser avaliado por outras pessoas que iriam lhe dizer o quanto valia.
Segundo a historiadora Joseli Mendonça, professora na Universidade Federal do Paraná e autora de Cenas da Abolição, com o acirramento das campanhas abolicionistas, era comum existir listas de doações com o objetivo de recolher dinheiro para libertar as vítimas.
Além disso, aos escravos não estavam completamente vetadas as possibilidades de inserção na economia monetária. Apesar de não ser tão simples, eles podiam – com a autorização do senhor – fazer serviços por fora para ganhar alguns trocados.
“Não podemos supor que isso era algo fácil. Primeiro, o escravo tinha de cumprir com todas as obrigações para o seu senhor”, reforça a pesquisadora.
Um exemplo dessa situação é o do escravo João, que acionou a Justiça brasileira no século 19 e garantiu ao magistrado ter condições de comprar sua liberdade.
Segundo documentos do Arquivo Público do Paraná, ele havia realizado serviços por fora e conseguido, inclusive, emprestar dinheiro ao seu senhor.
Antes mesmo de essa possibilidade estar na letra da lei, a historiografia aponta que, entre 1684 e 1745, metade das alforrias na Bahia foram compradas pelos próprios escravos.
“O fato de a compra da alforria ter sido realizada pelos escravos antes mesmo da lei de 1871 é uma forte evidência de que as possibilidades de formar pecúlio estavam abertas. A lei firmou como direito algo que os escravos já entendiam ser”, explica Joseli.
Além das lutas de resistência por parte dos negros, naquela época já havia advogados abolicionistas nos processos de compra de alforria. Outro ponto a ser destacado na Lei do Ventre Livre estava em seu artigo 3°.
A legislação determinava que, por ano, seriam libertados, em cada Província do Brasil Imperial, “tantos escravos quantos corresponderem à quota anualmente disponível do fundo destinado para a emancipação”.
O fundo era composto por impostos sobre transmissão de propriedade dos escravos, das multas governamentais, das cotas que deveriam ser estabelecidas pelo orçamento das províncias e municípios e das doações destinadas à libertação dos escravos, entre outros.
“Embora não fosse numericamente muito impactante, esta medida mudou a vida de algumas pessoas escravizadas”, reconhece Joseli.