Teriam eles uma capacidade anormal de aguentar nus um frio de menos de 10 graus?
De acordo com a antropóloga Tatiane Klein, pesquisadora do Centro de Estudos Ameríndios da Universidade de São Paulo (USP), os índios que povoam o imaginário comum — aqueles dos tempos de Pedro Álvares Cabral —, que correspondem a uma ideia de indígenas que vivem/viviam sem roupa, "são um estereótipo, um preconceito relacionado à imagem de um índio genérico, que ignora a diversidade de povos existente no Brasil e suas culturas".
Na época das descobertas, os índios brasileiros ficaram tão famosos por andarem nus que acabaram dando origem à ideia do bom selvagem, de que vivessem no paraíso, como nos tempos de Adão e Eva. Mas eles conheciam roupas. Quando batia a friaca, usavam casacos feitos de peles, palha ou algodão, o mesmo material com que fazem redes.
E isso de fazerem redes demonstra por que não é nenhum mistério: a tecnologia de fazer tecidos — e roupas — sempre esteve no arsenal tecnológico dos índios do Brasil. Afinal, eles, como todos os povos da América, chegaram ao continente através do Estreito de Bering, da Sibéria para o Alasca. Teria sido impossível fazer essa travessia pelo gelo sem roupas.
Acima, uma imagem de Debret dos botocudos em 1834, Eles viviam no Espírito Santo e ainda assim portavam capas. No quadro, provavelmente cerimoniais, usadas apenas pelos homens, mas certamente viriam a calhar diante de uma frente fria. Há várias outras imagens antigas de índios vestidos.
O fato é que, técnica contra o frio,"cada povo tem a sua", como diz Klein. "Em comum, contra as intempéries, seja frio ou calor, estão os conhecimentos astronômicos, meteorológicos e ambientais, que indicam se vai chover, se vai fazer sol, que dão sinais."
E a técnica não se limita a roupas. A antropóloga lembra que, para se aquecer, os povos como os guaranis (espalhados atualmente em SP, SC, PR, RS, MS e PA), utilizavam e ainda usam técnicas de construção coletiva, chá de erva-mate (que originou o chimarrão dos gaúchos), fogueiras, mingaus, entre outros.
Já no caso dos Kaingang (presentes no RS, SC, PR e SP), foram encontradas casas subterrâneas. Os ashaninka, que vivem no Acre, próximo da fronteira com o Peru, quando chegavam as primeiras frentes frias, adotavam uma roupa tradicional, semelhante a um poncho, junto com um cocar específico.
Onde o friozinho só bate à noite, ficar na aldeia em volta da fogueira pode ser o bastante para dispensar a roupa o ano inteiro. Mas é bom lembrar que mesmo os povos que podem andar sempre nus fazem uso de acessórios como o uluri, o cinto "de castidade" das mulheres indígenas, que elas usam para dizer que não estão disponíveis — e nenhum homem pode tocá-las.
O que acontecia e acontece é que não há nenhuma obrigação cultural de usar roupas — ou, melhor dizendo, de tapar o sexo, porque adereços como o uluri, cocares e mesmo a pintura facial são, para propósitos sociais, roupas, cumprindo a função de identificar o povo e o indivíduo.
Na maior parte do ano e na maior parte do Brasil, esses adereços, fogueiras e alimentos eram suficientes. Quando e onde não eram, as onças pagavam o pato.
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