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Como fazíamos sem... Ortografia?

Era a anarquia criativa: cada um escolhia o jeito como a palavra lhe parecia melhor

Nathalia Bustamante Publicado em 15/01/2017, às 18h00 - Atualizado em 23/10/2017, às 16h35

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O caos não deixava de ser criativo - Pixabay
O caos não deixava de ser criativo - Pixabay

Coraçom, coraçon, corason. Hoje, parece impensável que essas três formas de escrever a palavra "coração" já tenham sido simultaneamente reconhecidas. Havia uma época, porém - antes que as convenções ortográficas viessem "colocar ordem" na língua portuguesa -, em que elas não apenas existiam como conviviam harmoniosamente em textos de estudiosos, poetas e nobres. Sem ortografia, a oralidade era registrada e transmitida de forma intuitiva e pouco sistematizada. A liberdade artística dos escritores residia não apenas na estrutura dos textos mas também em suas escolhas de como escrever determinadas palavras.

O processo de formalização de regras para a escrita, contudo, é muito mais antigo que a própria língua portuguesa, ou mesmo que sua língua-mãe, o latim. Há padronização nos caracteres em escritos milenares na China e, no Ocidente, a primeira reforma ortográfica conhecida aconteceu em 403 a.C., em Atenas - daí a origem da palavra: orthos graphein, termos que, em grego, significam "correto" e "escrita". Os primeiros escritos da Grécia antiga apresentavam grandes variações entre os dialetos de cada cidade-Estado. Com a popularização dos trabalhos de Homero (Ilíada e Odisseia) e de Heródoto, o dialeto iônico ganhou força e prestígio. Assim, em 403 a.C., foi adotado como o oficial pelo governo de Atenas.

Historicamente, a popularização do uso da língua é a principal motivação para o estabelecimento de regras para a escrita. No século I a.C., os romanos sistematizaram uma grafia correta para o latim, com base na pronúncia adotada em Roma, capital do Império. Dialetos regionais (que evoluíram para as diversas línguas românicas) poderiam se compreender mutuamente pela escrita, que, por outro lado, deixou de refletir pronúncias variadas. 

Os primeiros documentos em língua portuguesa surgiram no século 12 e, até o século 16, o registro baseava-se essencialmente na sonoridade do termo na língua falada - a ortografia fonética. Havia, porém, muita confusão e incoerência: a mesma palavra aparecia com ou sem h (homem/omem) e letras eram intercambiadas sem muitos critérios (sabha = sabia), pois um mesmo som poderia ser representado de diversas formas. Ainda assim, apesar das imprecisões, a grafia desse português medieval era muito mais regular do que a que prevaleceu nos séculos seguintes.

Com o Renascimento, no fim do século 16, houve tentativa de aproximar as palavras portuguesas do que se imaginava serem suas origens nas línguas clássicas, a chamada ortografia etimológica. Surgiu, assim, uma grafia que se baseava em estudos de latim e grego e desconsiderava a evolução natural do idioma - dando origem a algumas consoantes duplas (commercio) e letras não pronunciadas (diphtongo, thesoura). Essa convenção vigorou em Portugal até 1911, quando foi aprovada pelo governo uma ortografia simplificada (no Brasil, só adotada em 1931). Outros acordos ortográficos entre os países de língua portuguesa foram firmados no decorrer do século 20, sendo o mais recente - e controverso - em vigor no Brasil desde 2009.


Sem Ortografia... Até Hoje

Embora pareça natural que todo idioma escrito seja cheio de regras, nem todas as línguas modernas passaram por essa padronização, e muitas nem sequer têm razão que a justifique. O alemão falado na Suíça, por exemplo, não tem ortografia-padrão, mesmo possuindo peculiaridades linguísticas que não encontram analogias no alemão tradicional. Assim, parte de suas convenções de escrita são orgânicas - criadas com e a partir do uso recorrente e da adaptação da oralidade à escrita.

O cantonês, idioma oficial de Hong Kong e Macau e a 16ª língua em número de falantes no mundo, também não tem ortografia própria. Para a versão escrita, são utilizadas adaptações de caracteres do chinês e do mandarim. Em texto, os dois idiomas são inteligíveis, apesar de completamente diferentes na oralidade. Do mesmo modo, como muitos falantes da língua hindi também usam o inglês com regularidade, por vezes o alfabeto devanagari, do hindi, é "traduzido" para o romano, do inglês.

Falando em inglês, é um caso interessante. Não existe uma autoridade como a Academia Brasileira de Letras para determinar qual é a ortografia. O que surgem são sugestões de linguistas e dicionaristas, que acabam aceitas ou não pelo público. Noah Webster, o autor do dicionário com o mesmo nome, publicado em 1828, foi o responsável pela maioria das diferenças entre o inglês britânico e americano, ao mudar palavras como colour para color e centre para center. Como apenas propostas modestas costumam ser aceitas, na prática, o inglês usa uma ortografia obsoleta, datada da adoção da imprensa, no século 15. Daí maluquices como um o ter som de i em women, ou gh virar f em enough. Séculos atrás, essas eram pronunciadas como se escreve.