Nesta bem-humorada ficção jornalística, o capitalismo pode ter mudado, mas ainda não convence o velho comunista
Beber um cafezinho é um ato simples — a não ser, é claro, que você tenha a longa e espessa barba de Karl Marx. Enquanto se esforça para não manchar a alva cabeleira facial, o filósofo alemão observa atentamente notebooks ecelulares nas mãos dos clientes da cafeteria, de uma famosa franquia americana. “Imagine: eu poderia escrever um livro como O Capital numa dessas máquinas, ouvindo Beethoven”, diz. No trajeto que percorreu do cemitério de Highgate, no norte de Londres, até nosso ponto de encontro, ele conta que ficou surpreso com a riqueza da capital da Inglaterra. “Quando estudava aqui perto, na Biblioteca do Museu Britânico, há mais de 140 anos, Londres era bem mais suja e cinzenta. Em compensação, ninguém pagaria tanto por um café.”
KARL MARX – Comunistas?! Meu caro, até uma criança sabe que a experiência russa e de outros países no século 20 não foi comunismo.
Capitalismo de Estado, stalinismo, nacional-estatismo... a escolha é sua. Não houve sequer ditadura do proletariado. Houve uma ditadura sobre o proletariado.
Sou filósofo, não sou cartomante. Como já escrevi uma vez, os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem. No século 20, em vez de se rebelar contra o capitalismo, a classe trabalhadora optou por melhorar de vida negociando com os patrões.
Quando vivi aqui, no século 19, o mundo era dividido entre proprietários capitalistas, profissionais liberais – que vocês chamam de classe média – e os proletários, urbanos ou rurais. Mas hoje um proletário se comporta como se fizesse parte da classe média ou se veste como um capitalista. Assim fica difícil lutar.
Em termos de renda, não há dúvidas de que há trabalhadores assalariados que estão muito bem. Mas, apesar disso, eles continuam sendo explorados por quem tem os meios físicos de produção. Isso não mudou.
Olha, é verdade que a tecnologia permite que uma empresa cresça sem muitos meios físicos. Isso só ocorre porque os produtos passaram a ser menos importantes do que a marca estampada neles. Não é à toa que se paga um absurdo por um cafezinho. Os marqueteiros dizem por aí que você está bebendo a “experiência” dessa marca. No fundo, tudo não passa de uma evolução do que chamei de “fetiche da mercadoria”. Mas termos como esses não estão mais em moda. Hoje prefere-se estudar marketing para vender mais.
Confesso que, por vaidade, fiquei lisonjeado por ter dado nome a uma nova corrente filosófica. Foi agradável ver meu nome estampado em milhares de livros, como os da coleção Os Pensadores. Mas depois, quando me vi transformado em estátuas naqueles condomínios monótonos da ex-União Soviética, fiquei deprimido. Descobri que o marxismo, para muita gente, havia se transformado em religião.
Lembre-se de que, quando eu disse isso, o ópio não tinha a imagem negativa de hoje. Costumo conversar muito sobre esse tema das drogas com meu amigo Freud, que, por sinal, era usuário de cocaína. Aliás, já está na hora de voltar para o além. Agora que Deus me convenceu de que existe, ele vive me chamando para bater um papo sobre filosofia. (Levanta da cadeira) Bem, foi um prazer! Ah, é você que vai pagar a conta, não é?