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A magia de Stradivarius

Da genialidade de um artesão italiano do século18 nasceram os mais perfeitos instrumentos de cordade todos os tempos. Conheça a saga de cinco violinos e um violoncelo feitos por Antonio Stradivari

Jeanne Callegari Publicado em 01/08/2006, às 00h00 - Atualizado em 23/10/2017, às 16h36

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Aventuras na História - Arquivo Aventuras
Aventuras na História - Arquivo Aventuras

Para quem fazia violinos, violas e violoncelos há 300 anos, é incrível que Antonio Stradivari continue insuperável até hoje. Dos quase 1100 instrumentos feitos por ele, pouco mais de 600 chegaram aos nossos dias: são conhecidos como Stradivarius, a versão latinizada do nome do mestre. As peças mais cobiçadas são aquelas fabricadas no chamado “período de ouro” de Stradivari, entre 1700 e 1720.

O célebre luthier (fabricante de instrumentos de corda com caixa de ressonância) nasceu em Cremona, no norte da Itália, por volta de 1644. Antes dele, a cidade já abrigava artesãos conhecidos por fazer os melhores violinos do mundo: o mais antigo desses instrumentos que chegou aos nossos dias foi confeccionado pelo cremonês Andrea Amati em 1564. A técnica era passada de pai para filho e, por quatro gerações, os Amati fizeram grandes instrumentos. O trabalho deles foi ofuscado pelo surgimento de Stradivari. O primeiro Stradivarius de que se tem notícia foi feito em 1666. O artesão viveu até os 93 anos, controlando seu negócio com mão de ferro. Não se preocupou em formar os filhos, e muitos de seus segredos de fabricação morreram com ele.

Os Stradivarius são os instrumentos musicais mais caros do mundo – o recorde em vendas públicas pertence ao violino chamado Christian Hammer, arrematado em Nova York em maio deste ano por 3,54 milhões de dólares (em negociações particulares, os preços podem ir ainda mais alto). Eles são primorosos tanto pela sonoridade magnífica quanto pela forma perfeita. “Um Stradivarius é uma obra de arte, como um quadro. É diferente de qualquer outro violino”, afirma o empresário e músico amador Geraldo Modern, de 93 anos. Alemão, ele vive no Brasil desde 1934 e foi um dos poucos a possuir um Stradivarius por aqui – o dele, já revendido, era de 1709.

Seis dos instrumentos feitos por Stradivari tiveram sua saga contada no livro Stradivarius: Cinco Violinos, Um Violoncelo e Três Séculos de Perfeição, do inglês Toby Faber, lançado este ano em português. Veja, a seguir, como a trajetória dessas obras-primas se entrelaçou com a biografia de grandes intérpretes – e marcou a história da música erudita.

A conquista do mundo

O som era expressivo, parecido com uma voz humana. No dia 17 de março de 1782, o público do Concert Spirituel, de Paris, ficou extasiado: nunca tinha ouvido nada como Giovanni Battista Viotti. O violinista italiano tinha a árdua missão de seduzir os parisienses, habituados a usar o violino como coadjuvante. Viotti foi bem-sucedido. As apresentações no Spirituel foram a grande virada na história do violino, o momento em que o instrumento assumiu de vez sua vocação de solista. Considerado o pai do violino moderno, Viotti deve muito a seu instrumento, um Stradivarius com fundo listrado, textura conhecida como “pele-de-tigre”. Não se sabe onde Viotti o adquiriu, mas, a partir dele, os instrumentos feitos pelo italiano Antonio Stradivari começaram a ser cultuados.

Viotti estabeleceu-se na França e, depois, mudou-se para Londres. Quando morreu, seu Stradivarius ficou na Inglaterra – e passou a ser conhecido pelo nome do famoso proprietário, coisa que se tornou comum na história desses instrumentos. Em 2005, a família Bruce, dona do Viotti por 80 anos, vendeu-o para o Estado britânico. Hoje ele está na coleção da Academia Real de Música.

O messias silencioso

“Então seu violino é como o Messias, que está sempre sendo esperado, mas nunca aparece!” A comparação, que o italiano Luigi Tarisio ouviu do irritado violinista francês Delphin Alard, batizou o que viria a ser o violino mais famoso do mundo: o Messias. Tarisio se gabava de ter um lindo Stradivarius de 1716, mas, como ele falava muito do violino e nunca o mostrava, a alcunha pegou. Filho de camponeses, Tarisio foi o maior negociante de instrumentos da primeira metade do século 19. Comprou o Messias do conde Cozio de Salabue, que, por sua vez, o havia comprado dos herdeiros de Stradivari. Enquanto viveu, o mestre nunca vendeu sua obra-prima. Daí surgiria a lenda de que, do Messias, o dono só se separa com a morte. A de Tarisio foi em 1854, e o violino foi comprado por Jean-Baptiste Vuillaume, luthier e negociante francês.

O Messias serviria de modelo para inúmeras cópias (algumas feitas por Vuillaume). Depois de anos de espera, Delphin Alard conseguiu botar as mãos no Messias: genro de Vuillaume, acabou herdando o Stradivarius após a morte dele. Quando chegou a vez de Alard bater as botas, o violino foi adquirido por uma empresa inglesa. Desde 1939, o Messias está no Ashmolean Museum, em Oxford, Inglaterra. Em 1997, um pesquisador afirmou que o instrumento poderia ser falso, mas testes concluíram que a madeira do violino é de uma época compatível com a de sua suposta fabricação. O que não se sabe é se o Messias é, de fato, um bom violino. Pouco tocado, ele ainda hoje parece novo, com o verniz intacto.

De tartini ao sumiço

Em abril de 1818, o violinista polonês Karol Lipinski, de 28 anos, estava prestes a dividir o palco com o compositor italiano Niccolò Paganini, um dos maiores virtuoses da história. Às vésperas da apresentação, Lipinski foi à casa do músico Salvini, um ex-aluno de Giuseppe Tartini (o grande violinista do século 18). A pedido do anfitrião, tocou maravilhosamente. Quando terminou, Salvini pediu para examinar seu violino e, sem pestanejar, estraçalhou-o na quina da mesa. Lipinski ficou atônito, mas não teve do que reclamar: ganhou, no ato, o Stradivarius de 1715 que havia pertencido a Tartini. O instrumento havia sido herdado por Salvini, mas, ao ouvir Lipinski tocar, ele passou achar que o polonês era o único músico digno de usá-lo.

No palco, com a preciosidade nas mãos, Lipinski causou boa impressão ao lado de Paganini. Embora esquecido hoje, o polonês foi considerado o único à altura do italiano na época em que viveram. Com a morte de Lipinski, em 1861, seu violino passou para um professor alemão. Em 1922, depois de trocar várias vezes de dono, o Stradivarius Lipinski foi para os Estados Unidos (naquele período, empobrecidos pela Primeira Guerra, muitos europeus vendiam seus Stradivarius para americanos). Em 1937, chegou às mãos da família Cañas, de Havana. Malconservado, em vez de se valorizar como seus semelhantes, o Lipinski viu seu preço estacionar. Desde a última venda, em 1962, nunca mais foi visto.

Para Beethoven ouvir

Aos 90 anos, Stradivari ainda era capaz de fazer grandes instrumentos. A prova é o Khevenhüller, de 1733. O nome vem do príncipe austríaco Johann Sigismund Friedrich de Khevenhüller-Metsch, que ofereceu esse violino à segunda esposa como presente de casamento, em 1800. Um ano depois, o príncipe morreu, e o Stradivarius ficou sumido até 1820. Reapareceu em Viena, tocado pelo húngaro Joseph Böhm. Foi com ele que o violinista liderou o quarteto de cordas Opus 127 em Mi Bemol a pedido do próprio compositor, Ludwig van Beethoven. O concerto teve tanto sucesso que incentivou o gênio a compor mais quartetos antes de morrer. Já Böhm seguiu tocando até 1828, quando viu um concerto de Paganini e o achou tão insuperável que desistiu de tocar em público.

Em 1876, com a morte de Böhm, o Khevenhüller foi herdado por seu sobrinho, que o vendeu ao músico russo Viktor Popov. Após a Revolução Russa, o Khevenhüller foi comprado pelo negociante alemão Emil Herrmann. O violino só voltaria a ser ouvido em público nos anos 30, graças ao prodígio americano Yehudi Menuhin. Bancado por um magnata, o garoto de 12 anos pôde adquirir o instrumento que queria. Nos anos 80, Menuhin precisou de dinheiro e o vendeu. Desde 2004, o Khevenhüller pertence a um colecionador suíço.

Um Paganini menor

Mesmo doente e incapaz de tocar, Paganini tentou continuar ganhando dinheiro com música: em 1839, completou um quarteto de Stradivarius e o colocou à venda. Associando seu famoso nome ao do luthier, ele esperava arrecadar uma boa quantia. Paganini conseguira um violino de 1727, um violoncelo de 1707 e uma viola de 1731 – artigo raríssimo, pois só se conhecem 11 delas feitas por Stradivari. Um violino de 1680 ocupou o lugar que faltava. Em termos de som, ele não era uma obra-prima (e, com seu verniz amarelo, era bem diferente dos avermelhados Stradivarius posteriores).

Paganini morreu em 1840, sem conseguir realizar a venda. Seu filho Achillo confiou o quarteto ao negociante Jean-Baptiste Vuillaume, mas, como não houve compradores para o conjunto, teve que aceitar a venda dos instrumentos em separado. A partir de 1852, o “violino amarelo” passou por seis donos até que, em 1944, foi comprado pelo alemão Emil Herrmann. Seu plano era reunir o quarteto de Paganini, mas faltou o violoncelo original. A solução foi completar a coleção com outro Stradivarius que havia sido do mestre: o Landenburg, de 1736.

Herrmann levou só dois anos para vender o quarteto. Por ele, em 1946, a milionária americana Anna Clark pagou 150 mil dólares. Com sua morte, em 1965, os instrumentos passaram à Galeria de Arte Corcoran, de Washington. Em 1994, o Quarteto Paganini foi vendido de novo. E seu valor cresceu 100 vezes: foram 15 milhões de dólares, pagos pela Fundação Musical Nipônica. Dentre os quatro instrumentos, o de 1680 é o menos valorizado – apesar de ter a honra de ser chamado de “Paganini”.

O som da generosidade

“Quinze gloriosos minutos.” Assim o francês de origem chinesa Yo-Yo Ma, um dos maiores violoncelistas da atualidade, descreveu sua primeira experiência com o Davidov. No início dos anos 80, o violoncelo (fabricado por Stradivari em 1712) pertencia à musicista inglesa Jacqueline du Pré. Em 1983, Jacqueline e seu então marido, o maestro argentino Daniel Baremboim, resolveram emprestar o instrumento ao dedicado Yo-Yo Ma.

Atos de generosidade como esse são uma marca na história do Davidov, um dos 21 violoncelos conhecidos feitos por Stradivari com o chamado “molde B”, considerados os melhores do mundo. O nome do instrumento vem do virtuose letão Karl Davidov. Ele o adquiriu por volta de 1863, graças a uma doação do conde Wielhorski, de São Petersburgo. Mas o dono era relapso com o instrumento. “Não tenho tempo para meu violoncelo”, dizia. Nas suas mãos, o Stradivarius sofreu muito desgaste – antes dos concertos, Davidov costumava largar a obra-prima com seus alunos, para que eles amaciassem as cordas. Depois que o músico morreu, em 1946, o violoncelo passaria por vários donos. Em 1964, a rica madrinha de Jacqueline du Pré, Ismena Holland, comprou-o por 90 mil dólares e o deu de presente à afilhada.

A violoncelista teve uma carreira meteórica, mas, por sofrer de esclerose múltipla, teve que parar de tocar. Quando a doença a matou em 1987, aos 42 anos, o Davidov foi posto à venda. Yo-Yo Ma não tinha como pagar a quantia pedida e se viu ameaçado de perdê-lo para sempre. Foi aí que um admirador anônimo do violoncelista comprou o instrumento e o cedeu a ele em caráter vitalício. Ainda hoje, Yo-Yo Ma diz sentir a presença de Jacqueline no instrumento.

Caixa de música

Violinos foram modificados, mas mantêm a excelência do fabricante

A principal façanha de Stradivari está na chamada “projeção sonora”: o som de seus violinos alcança facilmente o fundo das salas de concerto. A responsável por isso é a caixa de ressonância, que serve como amplificador: o luthier cremonês inovou ao deixá-la mais plana, quase eliminando a curvatura do tampo e do fundo. Entretanto, como todos os violinos de sua época, os Stradivarius também tiveram que ser adaptados às necessidades dos concertistas contemporâneos – que exigem ainda mais projeção sonora. Assim, os violinos do mestre usados em apresentações tiveram o braço inclinado para trás e deixado paralelo às cordas. Outra mudança foi nas barras harmônicas, substituídas por modelos mais longos e fortes (para suportar a pressão das cordas, hoje mais tensas do que antes). Mesmo transformados, os Stradivarius mantêm seus traços originais inconfundíveis.

Fundo

Há quem diga que o segredo dos violinos do período de ouro do mestre está nas peças de bordo usadas para fazer o fundo das caixas de ressonância. A madeira teria sido embebida em água salgada (de propósito ou por acidente), o que as teria tornado exepcionalmente duráveis.

Etiqueta

Visível através da abertura acústica esquerda, indicava, em latim, o fabricante, a cidade dele e o ano de fabricação. Assim, um Stradivarius feito em 1700 traria a inscrição “Antonius Stradivarius Cremonensis Faciebat Anno 1700”. Para fingir que tinham obras do mestre, comerciantes imitavam essas etiquetas.

Voluta

A voluta serve, basicamente, para pendurar o violino. Assim como as aberturas acústicas, as volutas de Stradivari são magníficos trabalhos de marcenaria. Aparentemente, elas revelam um certo conhecimento matemático, pois lembram os princípios do traçado de espirais descobertos pelo filósofo grego Arquimedes.

Verniz

A receita especial que Stradivari usou para envernizar seus instrumentos permanece desconhecida. No início, ele aplicava o verniz amarelado comum em Cremona. Depois, mudou para um tom vermelho. É possível que esse verniz ajude na sonoridade, mas até hoje não se pôde comprovar como isso acontece.

Aberturas acústicas

Seu formato segue proporções áureas. São estreitas, removendo pouca madeira do tampo. Acabamentos circulares nas pontas evitam que surjam rachaduras. As aberturas estão entre os principais traços analisados por especialistas na hora de distinguir um Stradivarius de uma cópia.

Tampo

Feito de madeira macia, vibra junto com as cordas. Os tampos de Stradivari eram montados a partir de duas peças coladas, tiradas do tronco da árvore como se fossem fatias de bolo. É o chamado “corte radial”, que garante o equilíbrio entre graves e agudos.

Saiba mais

Livro

Stradivarius, Toby Faber, Record, 2006 - Apaixonado por violinos, o autor faz um levantamento histórico e entrevista músicos para contar a história de seis instrumentos que exemplificam a genialidade de Stradivari.