Intercâmbio de cigarros, comida e bebida: camaradagem entre soldados britânicos, alemães e franceses na I Guerra Mundial é o tema do filme, indicado pelos franceses ao Oscar
Em dezembro de 1914, depois de duras disputas de posições, os combates na frente ocidental na Europa cessaram. Duas linhas paralelas se estabeleceram – desde a cidade belga de Nieuport, no mar do Norte, até Belfort, no leste da França. De um lado, estavam os aliados (britânicos, belgas e franceses). A menos de 100 m de distância, os alemães. O inverno era dos mais severos, com muita chuva e neve. Nas trincheiras, inundadas, os homens tinham os sapatos e as calças molhados. Havia ratazanas aos montes e corpos estirados pelo chão. Um oficial alemão escreveu: “Amigos e inimigos buscam feno para se proteger da chuva. E não há troca de tiros”. Do outro lado, um inglês resumiu: “Nós os odiamos quando matam um dos nossos. No resto do tempo, contamos piadas sobre eles. Pobres miseráveis, estão na mesma lama que nós”.
Esse é o clima do filme Joyeux Noël, de Christian Carion, lançado em outubro de 2005 na França. A trama descreve como soldados alemães, franceses e britânicos passaram o Natal de 1914 no front. Primeiro começam a despontar pinheiros, iluminados por velas. Depois, passam a ser ouvidas as vozes dos inimigos, embriagadas, entoando canções natalinas. Um tenor alemão resolve sair no perigoso espaço que separa as duas trincheiras, para cantar. Quando acaba, os inimigos aplaudem a apresentação improvisada. Os comandantes negociam então uma trégua – necessária inclusive para que os mortos sejam enterrados. A partir daí, fica liberado o intercâmbio de cigarros, bebidas, fotografias da família, histórias e lembranças. Teve até partida de futebol.
Apesar de parecer pouco plausível numa guerra que se arrastou por 4 anos e matou quase 10 milhões de pessoas, o Natal entre inimigos realmente ocorreu. “É um fenômeno da proximidade da guerra de posição”, afirma Rémy Cazals, professor na Universidade de Toulouse-Mirail e co-autor, com Roméo Dallaire, do livro Frères de Tranchées (“Irmãos de Trincheiras”, inédito no Brasil). Cazals, que participou do filme como consultor, falou a Grandes Guerras.
Como foi sua participação no filme?
Minha função era a de conselheiro histórico. Li o roteiro, escrevi pareceres sobre a autenticidade de cada trecho, sugeri mudanças e emprestei documentos aos roteiristas.
O que achou do resultado final?
Como historiador que pesquisou e encontrou documentos sobre a I Grande Guerra, foi uma grande felicidade ver no rosto e nas atitudes de atores e figurantes a personificação daquilo que li nos arquivos.
A amizade entre inimigos na I Guerra Mundial é pouco comentada nos livros. Por quê?
Os historiadores pensavam que as tréguas eram algo marginal, que não mereciam interesse. Nosso livro mostra que há inúmeros documentos e que o fenômeno é um aspecto constitutivo da guerra de trincheiras. Comecei a estudar a guerra depois de meu doutorado, que era sobre o movimento operário. Meu primeiro trabalho sobre a Grande Guerra tenta dar a palavra aos soldados e não apenas a comandantes, jornalistas e políticos.
Alguém de sua família lutou na guerra?
Meus dois avôs. Um deles morreu em 1936, eu não o conheci. Segundo meu pai, ele sofreu muito, foi ferido e evitava falar da guerra. Conheci meu outro avô, ele também não gostava de conversar sobre isso. Deve ter sido um pesadelo.