Dresden sob chamas
Na cidade Alemã bombardeada em 1945, Nora, Helga e Anita escaparam por pouco de figurar na lista de 150 mil mortos. 60 anos depois, elas contam o que viram e como sobreviveram a um dos maiores bombardeio da II Guerra
Em fevereiro de 1945, 500 mil toneladas de bombas caíram sobre a Alemanha. Dresden, ao norte, ficou destruída. Sem alvos militares específicos, mais de 4,2 mil bombas foram lançadas deliberadamente sobre toda a área construída. Uma região de aproximados 16 km2 praticamente sumiu do mapa e outras tantas estruturas, num raio muito maior, foram abaladas. Algumas para sempre.
Quando a Real Força Aérea apareceu sobre Dresden, foram quatro bombardeios em dois dias – 13 e 14 de fevereiro. Além das bombas, os aviões da RAF varreram com metralhadoras várias das estradas vizinhas. Isso resultou em um número estimado de mortos que varia de 35 a 150 mil pessoas – 80% delas mulheres, crianças e idosos.
Os historiadores, inclusive britânicos, defendem que o polêmico bombardeio não se justificava como uma estratégia militar. Mas há quem argumente que a devastação de Dresden, além de arrasar o moral da população, facilitou o avanço das tropas russas rumo à capital, Berlim, e o fim da II Guerra Mundial.
Foi em um café, escondido numa rua minúscula de Dresden, que as alemãs Nora Lang, Helga Skoszowsky e Anita John, que trabalham numa fundação que preserva a história da cidade, contaram a Grandes Guerras como foi o bombardeio e como sobreviveram. A conversa, que começou seca e distante, terminou com elas se emocionando. Parece que o calor dos chás esquentou as pretensamente frias relações germânicas.
Quantos anos as senhoras tinham no dia 13 de fevereiro de 1945?
Nora: 13 anos.
Anita: 12 anos.
Helga: 9 anos.
Mesmo com tão pouca idade, era possível perceber o que se passava no mundo?
Nora: Claro! As condições de vida eram muito ruins. Nós vivíamos no escuro, sem lenha nem para o aquecimento. Tinha ainda o racionamento de alimentos e até o ar estava contaminado! Em toda a parte, era possível perceber. A guerra era visível.
Helga: Meu pai foi para a guerra em 1941e nunca mais voltou. Morreu de fome numa prisão americana. Como eu não perceberia? Lembro também que minhas aulas foram suspensas e o prédio da escola virou um hospital militar.
Anita: Meu pai também foi convocado, mas, como se feriu, voltou para Dresden.
Nora: O meu trabalhava numa fábrica de aço e, por isso, serviu o exército alemão produzindo.
O ataque a Dresden foi um dos mais violentos bombardeios sobre a Alemanha. Como a cidade se preparou contra as bombas?
Helga: Não se preparou. A Alemanha se renderia em maio. Em fevereiro, ninguém podia esperar um bombardeio como o que aconteceu. Na há legitimação para isso. Foi um ataque contra civis indefesos.
Como foi o dia do bombardeio?
Nora: O primeiro bombardeio queimou a cidade inteira. Minha família resolveu sair de casa e me perdi de meus pais. Fiquei sozinha com meu irmão mais novo, de 5 anos, e os documentos de toda a família. Sem conseguir chegar aonde queríamos, nos juntamos a uma moça e decidimos procurar outro abrigo. Aí veio o segundo bombardeio. Muito pesado. Sinceramente, não achei que fôssemos sobreviver! Poucas pessoas, na maioria idosos, ficavam muito tempo nos abrigos subterrâneos. Muitos morreram asfixiados por causa da fumaça. Eu estava com muito medo, mas, depois de ouvir uma mulher dizer ‘temos que sair dessa casa ou vamos morrer’, tomei coragem e fui para a rua. Tudo estava em chamas. Reencontrei meus pais na casa de meu avô, num terreno afastado. Antes do fim da guerra, meu pai havia dito que a situação deveria ficar cada vez mais grave e que seria melhor nos mudarmos para lá. Nunca me esqueci disso. Depois dos bombardeios, foi para lá que eu corri com meu irmão! Meus pais fizeram o mesmo.
Anita: O horizonte estava bem claro no dia dos bombardeios. Como já era noite, os pontos de fogo se tornaram uma referência. Rapidamente, portanto, os ingleses viam seus alvos. Depois do primeiro bombardeio, algumas pessoas saíram dos abrigos para tentar ir à cidade. Houve quem morresse asfixiado nas casas ou atingido pelos destroços dos prédios que ruíam. Eu entrei num desses abrigos subterrâneos com mais 13 pessoas. Fui a única a sair viva de lá. Não sei explicar como foi possível, mas hoje acredito que minha natureza me ajudou a sobreviver. Ainda criança, vi mais mortos do que soldados. Com uma espécie de cobertor, um pano úmido que coloquei sobre o rosto, saí sozinha para a rua. A sensação era de que a cidade havia sido atingida por um terremoto. Tudo queimava! Por todos os lados, só se viam fogo e fumaça. Estava muito quente. Pedaços de coisas caíam de repente. Como eu, havia muita gente vagando pelas ruas, meio perdida, atordoada, sem direção.
Helga: As sirenes tocaram só uma vez. Depois, como toda a cidade, queimaram. Durante meia hora, fiquei num abrigo subterrâneo. Quando o primeiro bombardeio terminou, minha mãe, minha irmã e eu resolvemos sair. Acabamos não levando nada. Nada mesmo! Saímos apenas com a roupa do corpo. Na rua, encontramos uma vizinha e ela nos convenceu a entrar em outro lugar. Havia muito fogo! Nessa hora, minha mãe resolveu que voltaria para casa e tentaria salvar algumas coisas nossas. O prédio onde eu fiquei parecia mal-assombrado. Estava cheio de gente, as janelas e as portas batiam. O barulho era horrível. Sem minha mãe, sentia mais medo por estar entre desconhecidos. O que fazer com eles? Ela apareceu de repente. De mãos vazias, mas viva! Nossa casa queimou e ela não teve tempo de nada. Mamãe abraçou a mim e minha irmã e nós mexíamos as mãos na tentativa de espantar o fogo. Todos se empurravam. Quando o dia já estava claro, fomos tentar atravessar o rio porque meus avós moravam do outro lado. Mas o fogo não nos deixou passar. Nunca mais os vi.
Como vocês fizeram para superar o trauma?
Nora: Falando de tudo o que vivemos, contando, como estamos fazendo aqui. Nós queremos ser ativas contra a guerra. A Alemanha tem a fama de não gostar dos estrangeiros, mas não é assim. Trabalhamos para uma fundação que mantém contato com pessoas de outros países que passaram pelo mesmo que nós. Não importa se é na Espanha, nos Estados Unidos, na Palestina ou em Israel, é sempre gente inocente. Não existem ingleses, americanos, alemães. São clichês. O mundo militar pensa diferente. Para ele, os civis estão em último lugar na hierarquia. Estamos no século da comunicação e a imprensa tem um papel fundamental para acabar com esse tipo de lugar-comum.
Helga: Nossa vida está cicatrizada por isso. É um sofrimento lembrar, mas não há como esquecer! Não quero que outros passem pelo que eu passei. O bombardeio, para nós, que vivemos, foi um crime. Não tenho culpa do que aconteceu. Não tenho orgulho nacional. Não quero vingança, só quero fazer o possível para que isso não aconteça nunca mais, não importa onde.
Anita: Eu passei por tudo isso, poderia contar uma história muito pessoal, mas é difícil. Nós queremos que os jovens saibam, verdadeiramente, o que são a guerra e o sofrimento. Só assim para que não se repita. Você é jovem e brasileira, tem idéia do que é uma guerra?
“A cidade inteira foi queimada. Minha família resolveu sair de casa e me perdi dela. Fiquei com meu irmão de 5 anos”
Nora
“Eu entrei num abrigo subterrâneo com mais 13 pessoas. Fui a única a sair viva. Não sei como isso foi possível”
Anita
“Fomos tentar atravessar o rio porque meus avós moravam do outro lado. O fogo não deixou. Nunca mais os vi”
Helga
A Comunidade de Interesse por 13 de Fevereiro de 1945 foi fundada em 1990 por um grupo de cidadãos de Dresden que, desde 1985, estudam a história da cidade durante a II Guerra Mundial. Atualmente, a associação mantém contato com instituições e pessoas de diferentes países. Entre as atividades, estão a realização de encontros públicos, leituras, encenações e discussões com professores e convidados estrangeiros. O acervo da comunidade compreende entrevistas, documentos escritos (anotações pessoais e documentos oficiais), fotografias, filmes e jornais e tem como objetivo preservar a memória dos fatos e auxiliar a pesquisa desse tema.