Quem foi Paul Otlet, o advogado pacifista que sonhou concentrar todo o conhecimento humano em uma rede mundial, previu os tablets e concebeu os celulares
Texto Diogo Antonio Rodriguez Publicado em 01/10/2013, às 18h27 - Atualizado em 23/10/2017, às 16h36
Paul Otlet imaginou que, no futuro, haveria uma tela onde se poderia consultar livros, revistas e jornais. E as pessoas usariam pequenos telefones de bolso para trocar informações. Imaginou uma grande rede mundial que interligaria continentes e tornaria todo o conhecimento humano disponível, trazendo compreensão e a paz mundial.
Sob os olhos de hoje, as visões desse advogado belga podem parecer um tanto óbvias, mas é preciso dar a ele o devido crédito. Em seu tempo, ainda nem se sonhava com a internet. A telefonia engatinhava. Nas telecomunicações, o rádio e o correio eram soberanos. Paul Otlet (1868-1944) imaginou a rede mundial de computadores bem antes que fosse possível dar vida à World Wide Web.
Nascido em uma rica família belga, Otlet foi educado para assumir os negócios do pai, um industrial e político que enriqueceu construindo ferrovias pela Europa. Por isso, foi estudar direito na Universidade Livre de Bruxelas. Formado, trabalhou em um escritório onde começou a ter contato com o que se tornaria a obsessão e a obra de sua vida: organizar informações.
Otlet em sua mesa de trabalho
Livros do mundo
O primeiro contato com a bibliografia aconteceu quando ajudou a fazer um livro que compilaria a jurisprudência da Bélgica. Outra importante aquisição proporcionada pelo direito foi a amizade com o colega de profissão Henri La Fontaine, que se tornaria senador e ganharia o Nobel da Paz em 1913. Juntos tomaram gosto pela bibliografia e ambicionaram torná-la uma ciência. Em 1895, deram o primeiro passo ao criarem o Instituto Internacional de Bibliografia, cuja missão era reunir todos os livros publicados no mundo até então. Otlet e La Fontaine eram pacifistas e acreditavam que o acesso universal ao conhecimento poderia ajudar a construir a paz. Otlet perdeu dois filhos na Primeira Guerra.
Logo perceberam que o projeto tinha limitações. Para W. Boyd Rayward, principal especialista na obra de Otlet e professor de ciência da informação das universidades de Illinois (EUA) e New South Wales (Austrália), o advogado viu que a bibliografia não seria suficiente para acolher todo tipo de conhecimento. "Ele então criou uma biblioteca de imagens", diz Rayward. "Suas ideias foram ficando cada vez maiores." Era necessário guardar e exibir esse material imenso. Para isso, ele criou o Mundaneum, fundado em 1910 e dedicado a coletar, organizar e compartilhar tudo o que possuísse informações relevantes - localizado no prédio do Palais Mondiale (Palácio Mundial), em Bruxelas. Otlet e La Fontaine não estavam mais limitados a livros: imagens, jornais e revistas também eram considerados fontes de conhecimento.
Classificação
Ao mudar a maneira de arquivar conhecimento, Otlet criou a necessidade de uma nova forma de organizá-lo. Só existia a ordem por assunto e era preciso ampliá-la. Essa seria a única maneira de concretizar outra visão sua: um livro que reunisse todo esse conhecimento capturado. A "enciclopédia universal" só seria possível se a classificação dos assuntos fosse a mesma para todos, em qualquer idioma.
A Classificação Decimal Universal (CDU) cumpria essa função, dividindo todo o conhecimento humano em dez categorias. Cada uma delas pode se subdividir infinitamente, para que fosse possível chegar ao maior nível de detalhe usando números. Usada até hoje, a CDU era a base da ideia dessa enciclopédia. "Ele fragmentou os livros e fez um sistema de navegação pela classificação por assuntos - algo que já existia na época, mas que ele sofisticou. Essa fragmentação do texto contínuo é como um hipertexto", afirma Paola De Marco Lopes dos Santos, bibliotecária formada pela USP.
Para registrar cada uma dessas entradas, usava-se um cartão de papel de 12 cm de largura por 7 cm de altura, que se tornou padrão em bibliotecas pelo mundo todo. Os arquivos do Mundaneum abrigam hoje 16 milhões de cartões confeccionados por Otlet e sua equipe. Enfileirados, alcançam 6 km. Seguindo a curva ascendente no tamanho das ideias de Otlet, veio um projeto que o coloca entre os primeiros pensadores a antever o que hoje conhecemos como internet. "Ele pensou que se, de alguma maneira, fosse possível criar uma rede universal de conhecimento e de instituições de conhecimento, poderíamos criar um novo tipo de mundo, um mundo pacífico", diz Rayward. "Você podia pedir uma informação para o instituto deles em Bruxelas. Mas era por correio, não por e-mail."
A Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro fez uma encomenda de 600 mil cartões ao Mundaneum em 1911, "depois que seu diretor Manuel Peregrino da Silva esteve em Bruxelas, visitou o Instituto Internacional de Bibliografia e decidiu importar o sistema de Classificação Decimal Universal", afirma Jacques Gillen, da Universidade Livre de Bruxelas e que trabalha no Mundaneum.
O mais grandioso de seus projetos foi a Cité Mondiale (Cidade Mundial). Ali estariam reunidos não só todo o conhecimento em forma física, como também instituições de cooperação intelectual. Um dos envolvidos no plano foi o arquiteto suíço Le Corbusier. "Quando a Liga das Nações foi criada, em 1920, Paul Otlet e La Fontaine acreditavam que o Mundaneum podia ser o centro do Instituto Internacional de Cooperação Intelectual (IICI) criado pela Liga", diz Gillen. "Como Bruxelas era a sede de várias organizações internacionais, eles achavam que era o local perfeito para a instituição." O IICI foi o embrião para o que depois se tornou a Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura).
Os planos de Otlet estavam fadados ao esquecimento conforme se configurava a situação política, econômica e social que tomou conta da Europa nos anos 30. A crise de 1929 levou o governo da Bélgica a cortar o financiamento ao Mundaneum.
Em um contexto em que o nacionalismo ganhava força, as ideias de La Fontaine e Otlet não eram atrativas. "O Mundaneum tinha atividades relacionadas à paz, como palestras e eventos. Mas, nos anos 1930, a paz não era bem vista", diz Gillen.
Fechado em 1934, o Palais Mondiale só foi reaberto em 1941. Os alemães, que ocupavam a Bélgica, transferiram o arquivo para outro prédio. Armazenado em condições ruins, o trabalho de Otlet se deteriorou. Ele mesmo ficou esquecido por décadas. Até que, em 1998, o governo belga reabriu o Mundaneum na cidade de Mons. Em reconhecimento às previsões de Otlet, o Google tem uma parceria com o Mundaneum para digitalizar seu arquivo e disponibilizá-lo online. No fim das contas, Paul Otlet inventou a internet? Rayward afirma: "Gosto de pensar nele como um antepassado esquecido", diz o historiador. "Não há ligações diretas entre o que estava fazendo e o que foi criado depois, mas ele estava pensando em novas formas de organizar a informação."
Pioneiros da web
Quem pensou a Internet antes de ela existir
Isaac Asimov (1920 - 1992)
Escritor de ficção científica norte-americano
Imaginou uma rede que interligaria computadores na casa das pessoas a bibliotecas gigantescas, às quais as pessoas poderiam enviar perguntas para obter respostas. De uma forma, previu a existência da Wikipedia.
Marshall McLuhan (1911 - 1980)
Teórico e acadêmico de comunicação canadense
Em A Galáxia de Gutenberg, de 1962, previu que as televisões dariam acesso a repositórios de conhecimento que poderiam ser acessados conforme o desejo de quem as estivesse comandando e serviriam como instrumento de comunicação para a troca de informações pessoais.
Leonard Kleinrock (1934)
Cientista da computação norte-americano
Idealizou em 1961 e criou em 1969 a Arpanet, a rede precursora da internet atual que funcionava na Universidade da Califórnia, em Los Angeles. A primeira palavra trocada por mensagem foi "login". Hoje, ele faz parte do Hall da Fama da Internet.