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Carta sem censura de um pracinha

Carta sem censura de um pracinha

João Barone* Publicado em 01/03/2006, às 00h00 - Atualizado em 23/10/2017, às 16h36

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Aventuras na História - Arquivo Aventuras
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"Itália, 23 de fevereiro de 1945

Querida Narinha,

Escrevo esta carta para te tranqüilizar. Ainda estou vivo! Se Deus quiser, em breve estarei abraçando você e todo mundo ao voltar para o nosso querido Brasil. Não sei se minha carta vai chegar inteira até você, pois o serviço de censura está muito rígido. Razões de segurança por conta da quinta coluna, mesmo agora quando a guerra parece que vai acabar, como dizem por aqui. Ao que tudo indica, os alemães estão em retirada, mas ainda resistem ao nosso avanço. Seja como for, não posso deixar de relatar o que tenho visto desde que cheguei aqui para esta guerra.

Como já havia escrito, se estamos vivos até aqui é porque recebemos uma enorme ajuda do Tio Sam. Armas, munição, veículos, chocolate, cigarros, remédios e a comida... bem, a comida é dura de engolir, mas melhor assim do que morrer de fome. Depois de uma patrulha noturna, a gente come qualquer coisa. Quando aparece um arroz com feijão, é festa! Além disso, recebemos agasalhos e casacos, pois não poderíamos sobreviver ao inverno com aquele nosso uniforme de verão... Nesse frio de rachar, descobrimos que é melhor calçar a galocha de neve americana forrada com jornal ou feno, ao invés da bota normal com meias, que logo ficam encharcadas, para assim não pegar o famigerado pé-de-trincheira. Ter o pé congelado não é nada agradável. Falando nisso, a neve! Que coisa linda quando fica tudo branquinho! Pena que não estamos aqui de férias. Mas rapidamente a beleza acaba: depois que ela derrete, fica uma lama horrível e piora ainda mais quando temos que nos entocar em nossos fox holes, se não, ficamos como patos para as metralhas e morteiros alemães. Junte-se a isso um odor de sujeira que dá vontade de sair correndo.

Não queria falar de coisas tristes, mas o Jorge Figueiras, meu amigo do Pedro II, caiu sob fogo. Não consigo pensar como a família dele vai receber a notícia. Isso aqui não é brincadeira. Se não é pela metralha, é pela artilharia, morteiro. Quem pisa em mina ou morre na hora ou fica aleijado. Tem horas que não acontece nada, tem horas que vira o inferno. Rezo para voltar inteiro. Reze por mim e por todos nós aqui. Pode imaginar o quão terrível seria morrer bem no final da guerra?

Faz uns três dias, conseguimos tomar o tal Monte Castelo, mas a que preço! Foram vários ataques desde janeiro, mas os tedescos não saíam de lá. Muitos dos nossos tombaram na subida. Os americanos atacaram o Monte Belvedere bem do lado e nós atacamos simultaneamente o Castelo. Ainda sofremos contra-ataque, mas seguramos a posição. Dizem que por aqui os americanos estão morrendo de rodo. A 92ª Divisão deles, composta só de negros, perdeu mais de 1 000 homens... Só no ataque ao Belvedere, a 10ª Divisão de Montanha perdeu mais de 500. Será que eles são apenas cabeças para o abate? Vai ver que eles são é valentes mesmo, sem medo de morrer. E nós? Será que temos mais medo de morrer ou somos apenas mais malandros do que eles? Quem sabe nossos comandantes são mais humanos e não mandam seus homens para a morte certa...

Estamos nos preparando para a Ofensiva da Primavera. Vamos botar os tedescos para correr até a Áustria! Espero que realmente a guerra acabe logo, como estão falando. Enquanto estamos lutando pela democracia, o que todos se perguntam é: será que vamos ter democracia aí no Brasil, com Vargas no poder, depois que a guerra acabar? Por aqui se fala muito nos ventos da mudança que começam a soprar. O mundo vai ser muito diferente quando esta guerra terminar, não resta dúvida.

Mande lembranças para meus pais, avise Mamãe que recebi a goiabada! Até que o correio funciona bem por aqui. Continue rezando que em breve eu volto para o seu lado. Morro de saudades de pegar uma praia com você. Não vejo a hora de voltar para o nosso Brasil. Isso aqui está muito ruim.

Do seu amado, Gabriel”

* João Barone, baterista dos paralamas do sucesso, coleciona peças e carros militares da ii Guerra mundial e desde a infância lê livros sobre o tema. a partir desta edição, ele vai escrever crônicas, como esta carta fictícia, sobre a Guerra.