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Os biopiratas do Jardim do Éden

Por mais de três séculos, o Brasil foi um laboratório na guerra global que os europeus travaram pelo controle das especiarias

Laurentino Gomes Publicado em 08/07/2009, às 07h40 - Atualizado em 23/10/2017, às 16h36

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Aventuras na História - Arquivo Aventuras
Aventuras na História - Arquivo Aventuras

Em muitos dicionários e livros escolares, a carambola é apresentada como uma espécie tropical, típica do Nordeste brasileiro. Na verdade, essa fruta suculenta, rica em antioxidantes e vitamina C, chegou ao Brasil há menos de 200 anos, depois de percorrer um longo caminho repleto de aventuras e perigos. A primeira muda foi plantada no Jardim Botânico do Rio de Janeiro em 1811, embora seu cultivo só tenha se propagado seis anos depois, a partir de Pernambuco. O exemplar pioneiro vinha de Caiena, a capital da Guiana francesa, que o então príncipe regente dom João (1767-1826) mandara invadir, com apoio dos ingleses, em 1809.

A ocupação da Guiana pelos portugueses tinha dois objetivos. O primeiro era retaliar o imperador Napoleão Bonaparte (1769-1821), que, dois anos antes, tomara Lisboa e obrigara a família real portuguesa a fugir para o Brasil. O segundo, roubar os preciosos tesouros botânicos cultivados no viveiro de Caiena. Um deles era a carambola. Originária da Indonésia e do Ceilão (atual Sri Lanka), essa espécie fora transplantada para a América por biopiratas franceses entre os séculos 16 e 17. Na Guiana, era guardada como um segredo de Estado. Além da carambola, as tropas portuguesas trouxeram para o Rio diversas outras espécies, incluindo a cana de Caiena, que, adaptada às terras férteis da zona da mata nordestina, passaria a ser chamada de cana caiana, tema da famosa canção de Alceu Valença.

O saque do viveiro francês na Guiana foi apenas um episódio menor da guerra que, durante mais de três séculos, portugueses, espanhóis, ingleses e holandeses travaram pelo controle das especiarias. A lista incluía frutas, flores, grãos e sementes usados como remédios, temperos e cosméticos, além da madeira para corantes de tecidos e fabricação de navios. Algumas eram tão valiosas na Europa como seriam depois o ouro, o diamante e o petróleo. Seu preço comandava a economia internacional e fazia a fortuna de aventureiros e a glória de reis e rainhas.

"Espécies que forneciam tinta ou açúcar, remédios ou carvão, fibras, alimentos, frutas, raízes, flores ou bebidas eram buscadas pelos mares", registra Rosa Nepumuceno em seu livro sobre o Jardim Botânico do Rio. "Funcionavam como reserva de capital, produtos que poderiam garantir a saúde financeira de um reino". Por isso, o cultivo dessas espécies fora de seus habitats era motivo de obsessão.

No período colonial, o Jardim do Éden das especiarias ficava no cinturão conhecido como As Índias. Compreendia, além do próprio subcontinente indiano, o Ceilão, a Malásia, as Filipinas, a Indonésia e, principalmente, as Ilhas Molucas, o paraíso de cravo, noz-moscada e canela. Até o século 14, o comércio de especiarias era monopólio árabe. Eles revendiam aos mercadores de Veneza, que repassavam para o restante da Europa. A descoberta do caminho das Índias pelos mares, contornando o cabo da Boa Esperança, mudou o cenário. Com o poderio de seus canhões e a engenhosidade de suas caravelas, os portugueses logo se tornaram os senhores desse lucrativo negócio. Mas seus domínios seriam disputados, durante séculos, pelas demais potências europeias.

Lucro de 4700%

Em 1499, ao retornar a Lisboa ao fim de sua primeira incursão na Índia, Vasco da Gama (1469-1524) transportava uma carga 60 vezes mais valiosa que o custo de sua expedição. A viagem do britânico Francis Drake (1540-1595), entre 1577 e 1580, com escala nas Ilhas Molucas, rendeu a seus investidores um lucro de 4 700%. Em 1603, quando os ingleses estabeleceram sua primeira colônia na ilha de Run, nas vizinhanças da Nova Guiné, um fardo de 4,5 quilos de noz-moscada era comprado na Ásia por meio centavo de libra esterlina e revendido na Inglaterra por um preço 32 mil vezes maior.

A perspectiva de lucros exorbitantes passou a orientar as ações dos colonizadores. Ao ocupar a cidade de Goa (Índia), no início do século 16, os portugueses tomaram quatro providências. A primeira foi construir uma fortaleza para defender seu novo território. Depois, ergueram uma igreja e uma escola. Por fim, criaram um jardim botânico medicinal, onde os padres jesuítas iniciaram um rigoroso processo de experimentos com plantas indianas. A tradução dessas pesquisas do português para outras línguas europeias é considerada a pedra fundamental da moderna farmacologia, segundo o jornalista e historiador britânico Martin Page.

Ao chegar ao Brasil, em 1808, dom João criou a Real Junta do Comércio, Agricultura, Fábricas e Navegações, que incentivava quem transplantasse para o Brasil plantas de interesse econômico. Um dois premiados foi Luís de Abreu Vieira de Paiva, oficial da Armada Real Portuguesa. Em 1809, ele naufragou perto das Ilhas Maurício, no oceano Índico, pertencentes à França. Ali, o botânico e ex-missionário Pierre Poivre tinha criado o Jardim de la Pamplemousse, para aclimatar espécies da Ásia e das Américas. Poivre foi um grande biopirata, responsável, entre outras façanhas, pelo roubo na Ásia de mudas de pimenta-do-reino que, mais tarde, seriam cultivadas na América. Por isso, em sua homenagem, pimenta passou a se chamar "poivre" em francês. Salvo do naufrágio, Paiva convenceu os franceses a libertar 200 portugueses prisioneiros e ainda trouxe para o Brasil 20 caixas de mudas para o horto do Rio. A carga incluía cânfora, cravo-da-índia, canela, noz-moscada, manga, lichia, cajá, abacate, acácias, nogueiras, abricós, frutas-pão e a famosa palmeira imperial que dom João teria plantado no Jardim Botânico em 1813.

O Brasil já era um laboratório privilegiado de especiarias antes da chegada da corte. Enquanto estimulava a pirataria de plantas de outras regiões, Lisboa promovia a exploração das novas especiarias brasileiras. O primeiro alvo de cobiça (e disputa com os franceses) foi a própria madeira que daria nome ao território, o pau-brasil, usado na tintura de tecidos. Em seguida, veio o ciclo da cana, outra espécie de altíssimo valor. Também foram estudadas e cultivadas as diversas variedades de pimenta da Amazônia, o guaraná, o urucum (substituto do açafrão), a castanha-do-pará e uma infinidade de frutos e raízes usados na indústria de tintas e remédios. Mais tarde, duas descobertas valorizariam ainda mais os produtos da floresta brasileira: o cacau, matéria-prima do chocolate, e o cautchu, também conhecido como borracha, que revolucionaria os meios de transporte junto com a invenção do automóvel.

Saiba mais

LIVROS

O Jardim de Dom João, Rosa Nepomuceno, Casa da Palavra, 2007

Descreve a criação do Jardim Botânico do Rio de Janeiro.

The Scents of Eden: A History of the Spice Trade, Charles Corn, Kodansha International, 1998

Narra o comércio de especiarias a partir do século 16.

The First Global Village: How Portugal Changed the World, Martin Page, Casa das Letras, 2002
O historiador britânico defende a grandeza de Portugal.