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Ashkenazi e sefaradi: cinco mil anos à mesa

Os pratos destas cozinhas são deliciosos passeios pela história e pelas tradições religiosas do povo judeu

Giovana Sanchez Publicado em 01/05/2007, às 00h00 - Atualizado em 23/10/2017, às 16h36

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Aventuras na História - Arquivo Aventuras
Aventuras na História - Arquivo Aventuras

Século 15, época da Inquisição. Em Portugal, os judeus convertidos tentavam fugir das constantes perseguições. Mas rezar o Pai-Nosso e molhar a cabeça com as águas do batismo não era o suficiente. Para não serem mortos, os cristãos-novos, como eram chamados, tinham de trabalhar aos sábados e, mais importante, comer o que os católicos comiam. Foi então que eles inventaram a alheira, uma espécie de lingüiça sem porco – alimento proibido para os judeus. A técnica consistia em rechear o chouriço com diferentes carnes como vitela, coelho, peru, pato e galinha, e envolvê-lo em um pão de centeio. Como condimentos, a massa levava pimenta branca, sal, salsa, louro, cebola e – indispensável – muito alho, que deu nome ao prato.

Não se sabe ao certo até que ponto os judeus alteraram os hábitos alimentares de portugueses e de outros povos com os quais conviveram. O fato é que, em suas constantes migrações, eles interagiam com as populações locais, enriquecendo ambas as culinárias. Muitas vezes, pela falta de ingredientes disponíveis ou em épocas de pobreza e dificuldade, era preciso modificar o cardápio tradicional. Para o gourmet Breno Lerner, “não existe uma culinária judaica, e sim uma forma judaica de fazer a culinária dos outros”. Mas, além de adaptar pratos alheios a suas leis gastronômicas, os judeus construíram ao longo dos tempos uma relação mais profunda com a gastronomia. Para eles, o ato de sentar-se à mesa simboliza a permanência da tradição, o elo com os antepassados e a união da família.

É como explica Marcia Algranti, autora de Cozinha Judaica – 5 000 anos de História: “por tratar-se de um povo que desde tempos imemoriais foi sempre banido de seus países de origem, conservar os hábitos alimentares, em um novo país, era como se sentir menos apátrida”. E, ainda hoje, mesmo com um país para chamar de seu, muito do cotidiano da maioria das famílias judaicas é compartilhado em volta da mesa. É ao redor dela que são comemorados os dias sagrados, as festas, os casamentos e os nascimentos.

As receitas do que se pode chamar de “culinária judaica” variam principalmente entre dois grandes grupos de judeus: os ashkenazim – que em sua maioria foram levados pela Diáspora para a Europa Central e Oriental – e os sefaradim – que seguiram para países árabes e da Península Ibérica. Por terem condições de vida distintas e lidarem com diferentes alimentos, essas comunidades desenvolveram hábitos gastronômicos particulares, que hoje se encontraram na nova culinária de Israel.

Às voltas com o clima gelado da Europa Oriental, os ashkenazim tinham poucos ingredientes para variar seu cardápio. Batata, beterraba, cebola, repolho, trigo sarraceno (ou kasha), gordura de galinha, carne de segunda e peixe eram praticamente todos os insumos de que dispunham. Uma canção popular iídiche revela a escassez da variedade dos pratos: “Domingo, batatas; segunda, batatas; terça, batatas; quarta, batatas; quinta, batatas; sexta, batatas; e sábado, um tchulent (cozido) com batatas!”

Mesmo com poucos alimentos disponíveis, os habitantes do Leste Europeu criaram pratos típicos hoje famosos, como os latkes, bolinhos de batata ralada servidos em muitas delicatessen americanas, e o fígado batido, quase obrigatório nas mesas de sábado, dia de descanso judaico. Há também um prato consumido por todos os judeus, mas que tem especial significado para os ashkenazim: o gefilte fish. Originalmente, a pele do peixe, principalmente a carpa, era retirada, cozida e colocada novamente para servir como se fosse um peixe inteiro. Mas como eram pobres e não podiam comprar muito do peixe fresco, os judeus ashkenazim maquiavam o prato. A carne era retirada e incrementada com cebola, ovos e pão, para aumentar a quantidade.

Cores e aromas

Ao contrário dos ashkenazim, os judeus sefaradim desenvolveram uma gastronomia colorida e aromática. Por terem permanecido mais tempo nos lugares para onde migraram e se adaptado melhor, eles puderam influenciar e serem mais influenciados. Foi durante os 200 anos de cativeiro do Egito (1700 a.C.), por exemplo, que os judeus conheceram a galinha, o alho e a cebola.

Mais tarde, expulsos da Espanha durante a Inquisição, eles se dispersaram por todo o Mediterrâneo. Em terra fértil, cozinhavam com abundância de frutas, ervas, grãos e especiarias. No cardápio sefaradi, há ingredientes como alcachofras, aspargos, espinafre, berinjela, azeitonas e feijões variados, além de amêndoas, tamarindos, abricós e uvas – alimentos com os quais os judeus do Leste Europeu jamais sonharam.

A cozinha sefaradi difere de um país para outro e, às vezes, de uma cidade para outra. Há, no entanto, uma unidade na preparação dos pratos. Um dos mais comuns é o couscous, tradicional do norte da África, feito com semolina. Há também os mustatchudos, docinhos de nozes para ocasiões especiais, e a sopa de moloheia, vegetal de sabor forte, semelhante ao espinafre.

A lei dos alimentos

Os hábitos alimentares dos judeus permanecem apoiados na religião. O modo de preparação dos alimentos e as definições do que é ou não permitido comer seguem regras milenares. São as leis do Kosher, o código de conduta que rege a alimentação judaica e que, segundo a tradição, foi revelado por Deus a Moisés no Monte Sinai.

As regras estão na Torá, o livro sagrado dos judeus. Eles são proibidos, por exemplo, é proibido ingerir sangue – porque a vida está no sangue – e comer a carne de um animal que sofreu para morrer. Também não é permitido misturar carne e leite em um mesmo prato, conforme o mandamento que não admite cozinhar “o cabrito no leite de sua mãe”.

Grande parte das regras do Kosher diz respeito à carne e à forma de abate. O animal transformado em alimento precisa ser ruminante e ter o casco fendido – daí a proibição ao porco. A origem dessa tradição está na idéia de que todo animal vive constantemente ligado ao mundo material pelas patas. O casco, porém, separa-o do chão. Animais de casco fendido, portanto, têm uma ligação menor com mundo material. Vale o mesmo para os peixes: só é permitido comer aqueles que têm escamas – elas separam o animal do mundo exterior.

As limitações da culinária Kosher fazem com que, hoje em dia, apenas os judeus ortodoxos sigam à risca as restrições alimentares. De acordo com a chef Simone Chevis, “além de difícil, a cozinha Kosher é muito cara”. Em seu buffet tipicamente judaico, ela não segue muitas dessas regras alimentares. Também não pretende inovar nas receitas. “O que eu faço é um resgate, não a criação de novos pratos”. Chevis finaliza todos os pratos sozinha. Seu objetivo é chegar ao sabor tradicional, trazendo de volta temperos e modos de preparo. “O mais gratificante para mim é quando alguém me diz que a comida estava parecida com a que sua avó preparava. Aí sim, eu sei que consegui fazer algo pela manutenção de uma cultura.”

Comida de festa

O que se come - e o que é proibido comer - nas comemorações religiosas do calendário judaico

SHABAT

É a comemoração do dia do repouso – do pôr-do-sol da sexta-feira ao pôr-do-sol do sábado. Considerado símbolo de louvor e de evocação ao descanso do Senhor, neste dia o judeu não trabalha – e nem cozinha. Sendo assim, grande parte dos pratos é preparada no dia anterior ou são comidos frios. A festividade inclui vinho, challot (pães trançados), peixe ou carne. Entre os judeus marroquinos, o prato principal é o hamin ou adafina, um cozido de ovos, grão de bico e carne. Os judeus ashkenazim têm um prato semelhante para o shabat. Trata-se do tchulent, um cozido preparado com feijão branco, galinha e carne de peito.

PURIM

Celebrado anualmente no 14º dia do mês hebraico de Adar, o Purim – ou Festa dos Sorteios – comemora a vitória da sobrevivência judaica sob domínio persa. O costume judaico nessa época é beber muito vinho, comer fritura e dar e receber mishloach manot – docinhos. Dois pratos entre os mais típicos na celebracão do Purim são as latkes (bolinhos de batatas raladas) e os sufganiot (sonhos).

YOM KIPPUR

É a data mais sagrada do ano judaico. Ocorre exatamente dez dias depois do Ano Novo, começando e terminando com uma refeição festiva. A que precede o jejum de 24 horas é leve, com frango, e sem temperos fortes, como pimenta e canela. Bebidas alcoólicas ficam de fora, para não dar sede. Já o jantar que encerra a celebração é farto e traz muito peixe salgado ou curtido para que sejam repostos os sais minerais perdidos durante o dia anterior.

SUCOT

Também conhecida como Festa das Tendas, começa cinco dias depois do Yom Kippur e comemora duas passagens importantes da religião: a forma como os judeus viveram por 40 anos no deserto e o início das colheitas, principalmente das frutas. Nessa época, as crianças vão para as sinagogas carregando um maço com folhas de palmeira, mirta e salgueiro. As refeições são à base de frutas e há arranjos nas sobremesas e no entorno das mesas.

PESSACH

Durante os dias da Páscoa judaica, quando é celebrado o Seder (“ordem” em hebraico), os judeus são proibidos de comer qualquer alimento fermentado. As casas são limpas de tudo o que possa ter fermento para relembrar os dias iniciais da peregrinação, nos quais não havia tempo para fermentar a massa. O primeiro jantar do feriado tem caráter didático. Os pais devem fazê-lo para ensinar os filhos sobre a saída dos judeus do Egito e o valor da liberdade. Tudo o que é servido tem um símbolo. No centro da mesa fica um prato redondo com seis alimentos: um pedaço de osso assado (representando o cordeiro pascal), um ovo cozido (que lembra o ciclo da vida), uma erva amarga e uma alface (ambos simbolizando o sofrimento da escravidão), uma massa de nozes e maçãs picadas, com gengibre e vinho (referência aos tijolos que os escravos judeus faziam) e salsão ou aipo (que representam o trabalho árido do povo escravo). Também nessa data, são preparados os famosos matzot, pães sem fermento, separados em três fileiras principais, tipificando a geração de Abraão, Isaac e Jacó e as famílias Cohen, Levi e Israel. No Seder, todo judeu deve beber quatro copos de vinho, que correspondem às quatro expressões de liberdade mencionadas na Torá.