Escrita pouco antes de sua morte, em 24 de agosto de 1954, a carta-testamento deixada por Getúlio Vargas impactou o rumo político do Brasil
Luiza Lopes Publicado em 22/08/2024, às 18h00
Nas primeiras horas de 24 de agosto de 1954, o presidente Getúlio Vargas tirou a própria vida com um tiro no peito. Ao lado de sua cama, foram encontradas duas folhas datilografadas e assinadas, apresentando o documento que ficaria conhecido como "Carta-Testamento".
Este texto se tornou um dos mais influentes e icônicos da história política brasileira, com efeitos imediatos e significativos. Poucas horas após o suicídio, o documento foi lido pelo então Ministro da Economia, Oswaldo Aranha, em rede nacional pela rádio Nacional.
O suicídio de Vargas encerrou seu segundo mandato presidencial, iniciado três anos antes, em meio a uma profunda crise. Em seu primeiro governo (1930-1945), marcado pela ditadura do Estado Novo (1937-1945), ele havia sido deposto por um golpe militar.
Segundo Thiago Cavaliere, doutor em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF), aleitura desencadeou uma onda de manifestações populares que impediram a realização de um golpe de estado que estava em curso.
A carta-testamento de Vargas é um texto pessoal, que combina desabafo, justificativa e despedida. Escrita em um tom emotivo e direto, o documento busca uma conexão direta com o "povo brasileiro".
Nós trabalhamos a carta de Vargas como um documento quase religioso. Vargas ali se coloca como mártir. Quase como um Jesus Cristo, que oferece sua morte para a salvação do povo”, diz Cavaliere.
Vargas expressa sentimentos de traição, desgaste emocional e físico. Sua decisão é apresentada como uma “escolha inevitável”.
"Mais uma vez as forças e os interesses contra o povo coordenaram-se e novamente se desencadeiam sobre mim. Não me acusam, insultam; não me combatem, caluniam, e não me dão o direito de defesa. Precisam sufocar a minha voz e impedir a minha ação, para que eu não continue a defender, como sempre defendi, o povo e principalmente os humildes. Sigo o destino que me é imposto", escreveu o presidente.
Para Marcos Napolitano, professor do Departamento de História da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), "há uma forte carga emocional, incrementada pela narrativa de martírio do líder em nome do povo”.
Vargas combina apelo emocional com uma tentativa de racionalização. Ele explica suas razões para o ato extremo, tentando justificar sua decisão ao mesmo tempo em que expressa suas emoções mais profundas.
"Se as aves de rapina querem o sangue de alguém, querem continuar sugando o povo brasileiro, eu ofereço em holocausto a minha vida. Escolho este meio de estar sempre convosco (...) Meu sacrifício vos manterá unidos e meu nome será a vossa bandeira de luta. Cada gota de meu sangue será uma chama imortal na vossa consciência e manterá a vibração sagrada para a resistência. Ao ódio respondo com o perdão. E aos que pensam que me derrotaram respondo com a minha vitória. Era escravo do povo e hoje me liberto para a vida eterna. Mas esse povo de quem fui escravo não mais será escravo de ninguém", escreveu o político.
A carta também se torna um documento importante de resposta ao clima político da época e busca consolidar sua imagem de mártir e patriota, assumindo o controle de sua própria narrativa.
Vargas relatou que, após "décadas de domínio e espoliação por grupos econômicos e financeiros internacionais", liderou uma "revolução" que buscava libertar o Brasil e estabelecer um regime de liberdade social. No entanto, teria encontrado resistência tanto de forças externas quanto de setores internos que se opunham às suas reformas.
O presidente criticou a dificuldade em avançar com a Petrobrás e a Eletrobrás, empresas estatais. "Não querem que o trabalhador seja livre. Não querem que o povo seja independente", disse.
Vargas também mencionou a crise inflacionária severa que encontrou ao assumir o governo, com lucros exorbitantes das empresas estrangeiras e fraudes significativas em importações.
A carta buscava criar uma memória do getulismo de esquerda, voltado para as causas nacionais e populares, ajudando a apagar o passado protofascista daquele Vargas dos anos 1930. Após a morte de dele, diga-se, o PTB (Partido Trabalhista Brasileiro) deu uma guinada à esquerda, definindo uma linha política, social e econômica que ficou conhecida como 'nacional-popular'. Um dos líderes desta corrente era João Goulart, apadrinhado político de Vargas e ex-ministro do Trabalho. Não por acaso, ele recebeu uma das cópias da Carta-Testamento, como se fosse um herdeiro direto do líder", pontua Napolitano.
"Entre 1951 e 1954, ele fez um governo ruim, no geral. Não conseguiu controlar a inflação, não obteve amplo apoio popular, não conseguiu vencer a oposição nem trazer as Forças Armadas para o lado dele. Era um governo decepcionante em termos de resultados sociais e econômicos. E tudo isso ficou esquecido após o suicídio", acrescenta Cavaliere.
Vargas expressou o "sacrifício pessoal" e a "resistência constante" que suportou em sua luta para proteger o povo brasileiro.
"Tenho lutado mês a mês, dia a dia, hora a hora, resistindo a uma pressão constante, incessante, tudo suportando em silêncio, tudo esquecendo, renunciando a mim mesmo, para defender o povo, que agora se queda desamparado", expôs o político.
O presidente sentia que, apesar de seu esforço e sofrimento silencioso para defender os interesses nacionais, estava desamparado:
Meu sacrifício ficará para sempre em sua alma e meu sangue será o preço do seu resgate. Lutei contra a espoliação do Brasil. Lutei contra a espoliação do povo. Tenho lutado de peito aberto. O ódio, as infâmias, a calúnia não abateram meu ânimo. Eu vos dei a minha vida. Agora vos ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na História", escreveu o presidente.
Para Cavaliere, “a carta-testamento pode ser encarada como um fim triste e absurdamente impactante de uma figura política que chegou ao máximo que se pode chegar para salvar sua biografia”.
Quem tira a própria vida, em virtude de uma (suposta) injustiça, se declarando uma pessoa que viveu em função do povo brasileiro, nada mais é para os trabalhadores como um herói. E foi essa a imagem que ficou no imediato pós-suicídio”, afirma o historiador.
O estudioso acrescenta: "Se o presidente tivesse saído do poder devido a um processo de impeachment, sido retirado pelas Forças Armadas ou ainda condenado por assassinato do Major Vaz e pela tentativa de assassinato de Carlos Lacerda, hoje a memória sobre ele talvez fosse completamente diferente".
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