Machado de Assis e capa de "Dom Casmurro" - Wikimedia Commons via Domínio Público; Reprodução
Dom Casmurro

Dom Casmurro: Capitu traiu Bentinho? Entenda a discussão

Desde sua publicação em 1899, o romance “Dom Casmurro”, de Machado de Assis, levanta uma das questões mais debatidas da literatura brasileira

Luiza Lopes Publicado em 07/10/2024, às 19h00

Desde sua publicação em 1899, o romance “Dom Casmurro”, de Machado de Assis, levanta uma das questões mais debatidas da literatura brasileira. A obra é narrada por Bento Santiago (Bentinho), também conhecido como Dom Casmurro, que revisita sua vida marcada por um romance trágico.

Ao longo da história, Bento desenvolve uma crescente desconfiança quanto à fidelidade de sua esposa, Capitu, especialmente em relação a seu amigo Escobar. Após o nascimento de seu filho, Ezequiel, Bento passa a acreditar que o menino não se parece com ele, o que intensifica suas suspeitas de traição.

Essas dúvidas o levam a se distanciar de Capitu e a enviar sua esposa e filho para a Suíça. Anos depois, vivendo em solidão, Bento decide registrar suas memórias na tentativa de convencer a si mesmo e ao mundo de que não errou ao acusá-la.

Traiu ou não traiu?

O mistério da infidelidade de Capitu e as múltiplas interpretações ocorrem, em grande parte, pela riqueza da narrativa de Machado, que deixa lacunas propositalmente sem resposta, convidando o leitor a formar sua própria conclusão.

Fotografia de Machado de Assis por Marc Ferrez, em 1890 / Crédito: Wikimedia Commons via Marc Ferrez/Adam Cuerden

 

Capitu, no romance, é uma criação "única e exclusiva" de Bentinho, o que significa que só a conhecemos através das palavras do próprio narrador, que se sente traído, afirma Welington Andrade, doutor em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP) e professor de Língua Portuguesa do curso de Jornalismo da Faculdade Cásper Líbero, à Aventuras na História.

Esse recurso – embora adotado às claras – nem sempre é percebido pelo leitor. Há um caráter metalinguístico aí muito interessante: o fato de Capitu ser uma personagem criada pelo narrador Bentinho. Uma figura da memória e da imaginação”, pontua o professor.

Nesse sentido, a interpretação de que houve uma infidelidade ou não depende da experiência individual de leitura. Ao longo das décadas, a história foi compreendida de formas diversas, muitas vezes influenciados pelas ideologias e valores sociais de seus tempos.

Quando a obra foi publicada, no final do século XIX e início do século XX, o Brasil vivia profundas transformações, com o fim da escravidão e a Proclamação da República, mas ainda mantinha fortes traços de uma sociedade conservadora e patriarcal.

Nesse contexto, segundo Andrade, Capitu foi amplamente considerada culpada, uma vez que a moralidade da época exigia uma conduta imaculada das mulheres. O Código Penal de 1890, por exemplo, previa punição para a mulher casada que cometesse adultério, enquanto o homem só era punido se mantivesse uma concubina.

A mulher era vista como responsável por suas funções domésticas e maternas, e qualquer comportamento contrário gerava julgamentos sociais, o que em parte explica a aceitação quase unânime da traição de Capitu

Assim, até meados do século XX, as leituras de Dom Casmurro não questionavam uma possível inocência. Somente na década de 1960, a crítica literária Helen Caldwell, em seu livro “O Otelo brasileiro de Machado de Assis”, levantou a hipótese de que a personagem poderia ser vítima das acusações de Bento, sugerindo que a visão patriarcal silenciou Capitu e a transformou em culpada injustamente.

"Com as conquistas feministas exercendo enorme e louvável pressão sobre a mentalidade patriarcal, Capitu está sendo alçada a outro patamar: a de uma figura que foi insidiosamente silenciada", destaca Andrade

Além disso, para o professor, a questão da traição “distrai o leitor” de outros temas mais profundos no romance. “Roberto Schwarz, que aponta, em seu célebre ensaio, para a singularidade da condição histórica brasileira de fins do século XIX: ‘engastada entre o lastro sufocante do colonialismo e da escravidão e as promessas inconsistentes da modernidade e do progresso’. Ou seja, enquanto perde tempo com uma questão da ordem da intimidade, o leitor não atenta para a dimensão pública com a qual o romance também trabalha”, ressalta. 

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