Gravados durante sessões entre os anos de 1975 e 1985, áudios expõem debates sobre as práticas abusivas de agentes da Ditadura
Fabio Previdelli | @fabioprevidelli_ Publicado em 19/04/2022, às 16h17
No último domingo, 17, a colunista do jornal O Globo, Miriam Leitão, publicou uma série de áudios inéditos registrados por ministros do Superior Tribunal Militar (STM), gravados durante sessões entre os anos de 1975 e 1985, onde debatem sobre a tortura durante a Ditadura Militar brasileira.
Os arquivos revelam agressões sofridas por presos, como o caso de Nádia Lúcia do Nascimento, que sofreu uma aborto após ser levada à OBAN; que os ministros do STM se sentiam incomodados quando as acusações eram feitas contra as Forças Armadas; e até mesmo que embora pudessem reconhecer a existência de práticas de tortura, o cuidado com a imagem brasileira no exterior era alvo de maior preocupação.
Embora parte desse material só tenha sido divulgado no último domingo, os registros já são alvos de uma disputa judicial que dura anos. Com a descoberta deste material, o advogado Fernando Augusto Fernandes entrou com um pedido, em 2006, para que esses documentos fossem liberados, mas a Justiça negou sua solicitação.
Uma decisão favorável só foi imposta em 2011 pela ministra Cármen Lúcia, que obteve a aprovação do Plenário. As gravações foram digitalizadas, em 2015, e Fernandes analisou cerca de 54 destas sessões.
Em 2017, o historiador Carlos Fico, titular de História do Brasil da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), obteve uma cópia delas e passou a analisá-las. O historiador explica que decidiu compartilhar os áudios com a jornalista após ela ser ironizada pelo deputado Eduardo Bolsonaro, que debochou do fato de Miriam Leitão ter sido torturada durante os Anos de Chumbo da Ditadura.
"É importante que o estado e que as autoridades se manifestem sempre em defesa dos direitos humanos, e é o que a gente não tem desde a eleição do atual presidente. É preciso sempre, permanentemente, defender os direitos humanos, coisa que o governo Bolsonaro não faz. Em todos os governos, mesmo os mais conservadores, como Collor e Sarney, mais ao centro como o FHC e à esquerda com Lula, todos defenderam os direitos humanos. Tem o ineditismo do governo Bolsonaro, que é péssimo para sociedade porque afloram esses sentimentos de negacionismo", apontou Fico.
Cerca de 10 mil horas de arquivo de áudios foram gravados durante a década apontada. Entre os registros, destaca-se o pronunciamento do general Rodrigo Octávio Jordão Ramos, datada de 24 de junho de 1977. Na ocasião, ele relata a tortura sofrida por Nádia Lúcia do Nascimento:
“Fato mais grave suscita exame, quando alguns réus trazem aos autos acusações referentes a tortura e sevícias das mais requintadas, inclusive provocando que uma das acusadas, Nádia Lúcia do Nascimento, abortasse após sofrer castigos físicos no Codi-DOI.”
Rodrigo Octávio ainda pondera que Nádia, que estava grávida de três meses quando foi detida, “tinha receio de perder o filho, o que veio a acontecer no dia 7 de abril de 1974”.
[Ela] desejava ainda acrescentar que, quando esteve presa na Oban, foi torturada, apesar de grávida, física e psicologicamente, tendo inclusive que presenciar como torturas infligidas a seu marido, razão porque se viu obrigada a assinar todo o interrogatório, sem reagir”, completa.
Já Flora Neide Pavanelli, testemunha do caso, aponta que sofreu maus-tratos físicos, como a aplicação de choques, enquanto esteve no DOI-CODI, onde, inclusive, foi parceira de cela de Nádia. Flora confirmou sua gravidez.
O historiador da UFRJ também destacou um ponto que lhe chamou a atenção: quando os relatos eram feitos contra agentes das Forças Armadas, os ministros do STM se sentiam incomodados e até desconfiavam. Mas aceitavam as denúncias feitas contra agentes do Dops.
Um ponto que corrobora com isso é a fala do general Augusto Fragoso, proferida em 9 de junho de 1978. “[Quando] os primeiros advogados começaram a falar no DOI-Codi, DOI-Codi, DOI-Codi... Eu, como único representante do Exército na hora aqui presente, eu experimentei um grande constrangimento em ver essa organização do Exército tão acusadas, e como mostrou o relator, elas não foram apuradas devidamente”.
“Eu, nesses 50 e tantos anos de serviço, vivendo crises militares de 30, 32 e 35, nunca vi, nunca ouvi acusações desse jaez feitas a órgãos do Exército. Acho que nosso Exército, seguindo exemplo das forças irmãs, devia rapidamente se recolher aos afazeres profissionais”, continua.
Mesmo assim, Fragoso reconhece a gravidade das acusações: “Não posso deixar assim passar em brancas nuvens essas acusações que foram feitas na tribuna contra esses órgãos do Exército. E sabemos que muitas delas são destituídas completamente de fundamento, mas algumas delas têm aparência de veracidade. Pelo menos aparência de veracidade”, encerra.
Numa sessão do dia 13 de outubro de 1976, o juiz Waldemar Torres da Costa discursa sobre o que o leva a crer na verdade das acusações de tortura por parte dos militares. "Quando as torturas são alegadas e, às vezes, impossíveis de ser provadas, mas atribuídas a autoridades policiais, eu confesso que começo a acreditar nessas torturas porque já há precedente".
Eu não me recuso a me convencer dessas torturas, mas exijo que essa torturas tragam uma prova e não fiquem apenas no terreno da alegação. Reconheço, senhores ministros, que também é difícil o indivíduo provar as torturas pela maneira como é feita", aponta.
Em sessão do dia 19 de outubro de 1976, o almirante Júlio de Sá Bierrenbach fala como as acusações são prejudiciais à imagem brasileira no exterior. “Muito se tem falado em direitos humanos. Com profunda tristeza tenho tomado conhecimento da repercussão no exterior de fatos que passam no Brasil. Fatos esses que também ocorrem em todos os demais países civilizados do mundo. Quando aqui vem à baila um caso de sevícias, esse se constitui um verdadeiro prato para os inimigos do regime e para a oposição ao governo”.
“Imediatamente, as agências telegráficas e os correspondentes dos jornais estrangeiros, com a liberdade que aqui lhes é assegurada, disseminam a notícia e a imprensa internacional, em poucas horas, publicam os atos de crueldade e desumanidade que se passam no Brasil, generalizando e dando a entender que constituímos uma nação de animais”, salienta.
Evidentemente, essa não é a realidade, o brasileiro de um modo geral não admite a violência. Por isso mesmo há tremenda exploração quando surge um desses lamentáveis casos”, prossegue.
Embora faça uma homenagem à Oban, Bierrenbach acaba reconhecendo a gravidade da questão: "O que não podemos admitir é que o homem, depois de preso, tenha a sua integridade física atingida por indivíduos covardes, na maioria das vezes, de pior caráter que o encarcerado".
“Senhores ministros, já é tempo de acabarmos de uma vez por todas com os métodos adotados por certos setores policiais de fabricarem indiciados, extraindo-lhes depoimentos perversamente pelos meios mais torpes, fazendo com que eles declarem delitos que nunca cometeram, obrigando-os a assinar declarações que nunca prestaram e isso tudo é realizado por policiais sádicos, a fim de manterem elevadas as suas estatísticas de eficiência no esclarecimento de crimes”, conclui.
Apesar de, em algumas vezes, os ministros darem o braço a torcer e assumir que as torturas poderiam estar acontecendo, principalmente pelos relatos da mídia internacional, não há indícios que o STM fez algo para impedir a continuidade de torturas e assassinatos — que resultaram no desaparecimento sistemático de centenas de opositores ao regime ditatorial.
Essa descrença, aliás, foi rebatida pelo advogado Sobral Pinto em 20 de junho de 1977. “Os senhores ministros não acreditam na tortura. É pena que não possam acompanhar os processos como um advogado da minha categoria acompanha, para ver como essa tortura se realiza permanentemente”.
Em entrevista ao jornal O Globo, Carlos Fico afirmou que, através da análise dos áudios, constatou que os militares chegaram a fazer “piadas” com as pessoas que foram vítimas da Ditadura. “Sobretudo em sessões secretas, esses ministros se sentiam muito confortáveis. Tem falas muito pesadas, grotescas, piadas com vítimas de tortura".
“Esses ministros eram naturalmente inseridos nesse contexto autoritário, nessa ideologia extremista, segundo a qual era preciso reprimir e acabar com a subversão, com o que eles chamavam de subversivo”, contextualiza.
Em vários momentos, comentários muito inadequados eram feitos. Ouvia coisas dessa natureza, coisas como ‘morreu mesmo e está enterrado’. Isso é uma frase que eu me lembro. Ou o ministro perguntando sobre o réu e falando de uma maneira muito depreciativa dessas pessoas e da circunstância de terem apanhado”, diz.
Na madrugada entre os dias 31 de maio e 1º de abril de 1964, os militares assumiram o poder após um Golpe que culminou com a deposição do presidente João Goulart. Por 21 anos, até 1985, o Brasil viveu sob um cruel e autoritário regime militar.
Durante as mais de duas décadas, centenas de pessoas foram perseguidas, presas e torturadas — sendo que muitas delas permanecem desaparecidas até hoje. Além da repressão, o período também ficou marcado pela censura à imprensa e aos artistas, e ao fechamento do Congresso.
Como uma forma de jogar uma luz sobre esse período sombrio de nossa história, a então presidente Dilma Rousseff, em 2011, estabeleceu a criação da Comissão Nacional da Verdade (CNV), que investigou os crimes cometidos por militares durante a ditadura.
Após três anos, o relatório final da CNV, publicado em dezembro de 2014, apontou que 377 pessoas foram responsabilizadas por crimes cometidos durante o período, como tortura e assassinatos. Além do mais, ficou estabelecido o número de 434 vítimas da Ditadura, entre mortos e desaparecidos.
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