O último chefe de estado antes da Revolução Cubana teve um governo marcado
Álvaro Oppermann, arquivo Aventuras na História Publicado em 28/08/2022, às 12h00
Fim de ano agradável em Cuba, com dias ensolarado e temperatura amena. Era dezembro, 1946. No aeroporto de Camagüey, uma multidão de turistas americanos desembarcava diariamente, vinda de Nova York e Miami pelos vôos da Pan Am. Chegavam alvoroçados e seguiam com pressa para os luxuosos hotéis, cassinos, cabarés e balneários da ilha.
Já no Hotel Nacional, o mais famoso e charmoso de Havana, a clientela destoava um bocado desse clima festeiro. Sujeitos corpulentos e taciturnos, vestidos com ternos escuros, ocupavam o saguão de entrada. Um ou outro lia o jornal Miami Herald, entre baforadas de Davidoff. Esse charuto de tipo “robusto” – curto e bojudo – era o preferido dos capangas da máfia.
Os sujeitos do saguão, você já deve ter adivinhado; eram mafiosos ítalo-americanos. E estavam lá porque, entre os dias 22 e 26, o Nacional foi palco de uma reunião de mais de 20 famílias do crime organizado americano. O mentor do encontro, Meyer Lansky, um judeu russo que se tornara lendário na crônica policial de Nova York, operava em Havana desde os anos 30.
Conhecido como Little Man (Nanico), Lansky costurou a reunião para selar um pacto entre as famílias quanto à exploração de jogo, prostituição e tráfico de drogas em
Cuba e nos Estados Unidos.
Quase todos os chefões compareceram, entre eles Vito Genovese, Frank Costello,
Tommy Lucchese, Alberto Anastacia, Lucky Luciano e Santo Trafficante. A única ausência sentida foi a de Al Capone que não tinha mais forças para sair de sua mansão em Palm Beach, na Flórida.
Depois das negociações, feitas a portas fechadas na suíte 212, os mafiosos rumavam para o Salão de Banquetes, onde eram entretidos por belas prostitutas e coristas
dos melhores cabarés habaneros – Tropicana, Montmartre e Sans Souci. No dia 25, não
faltou um animado banquete de Natal. Para animar as cinco noites do encontro, foi contratado o segundo cantor mais popular da América, depois de Bing Crosby: Frank Sinatra.
Entre as décadas de 1930 e 1950, Cuba tinha se tornado um paraíso de impunidade
para organizações criminosas. “Cada túnel e rodovia construído em Havana nos anos 50 vinha do dinheiro da máfi a”, escreve o jornalista americano T. J. English, autor do livro
Havana Nocturne (“Noturno de Havana”, inédito em português).
A ilha era Hotel-cassino Sans Souci, de propriedade sinônima de charutos, cassinos, rum, mulheres e música. Mas essa casca de faceirice escondia um país marcado desigualdade
social. Por trás dessa situação, dois fatores determinantes: a subserviência total aos interesses dos Estados Unidos e a influência perversa de um militar que virou o homem
forte de Cuba: Fulgêncio Batista.
Os interesses americanos na “Pérola das Antilhas” – assim chamada pelos conquistadores espanhóis – datavam do século 19. Na Guerra dos Dez Anos (1868-1878), quando a aristocracia criolla (espanhóis nascidos na ilha) tentou a independência da Espanha, a interferência dos Estados Unidos foi discreta.
Em 1895, de novo, os criollos insurgiram-se contra a Coroa, dessa vez, liderados pelo Poeta, advogado e ativista político José Martí. Era uma luta ganha para os cubanos. O imperialismo espanhol estava tão combalido àquela altura que poderia tranqüilamente
ser derrotado sem a ajuda de ninguém. Mas não foi assim. Em 1898, os Estados Unidos declararam guerra à Espanha e engrossaram a briga. Exigiram a independência de
Cuba. E conseguiram.
No dia 1º de janeiro de 1899, os americanos assumiram a administração da ilha, que
ficou sob controle militar. A tutela acabou em 1902, mas seus efeitos revelaram-se duradouros. Nas décadas seguintes, a sociedade cubana acabaria dividida: de um lado,
os funcionários de empresas americanas estabelecidas na ilha, como General Motors e United Fruit Company, burocratas dos Estados Unidos e a nata da sociedade branca local; de outro, o “populacho”: brancos menos favorecidos e negros.
O balneário de Banes, na província de Holguín, sede da United Fruit, era um exemplo da segregação. Ali havia uma demarcação rígida entre a “cidade americana” e a “cidade cubana”. “A Banes ‘americana’ era uma comunidade fechada de chalés e bangalôs,
com jardins e ruas meticulosamente limpas, como se um subúrbio dos Estados Unidos tivesse sido transplantado”, escreve o historiador americano Louis A. Pérez em 'Cuba Between Reform and Revolution' (“Cuba entre a reforma e a revolução”, sem tradução
para o português).
A outra Banes era repleta de casebres sem pintura, ruas esburacadas de chão batido e
falta de saneamento básico. Em 1948, Fidel Castro, então recém-casado com Mirta Díaz-Balart, filha de um advogado da United Fruit, conheceu a parte exclusiva de Banes. O acesso era controlado por um portão cercado de guardas, e só os funcionários e convidados tinham acesso a ela.
Foi nesse clima que irrompeu, feito furacão na cena política, o jovem oficial Fulgêncio Batista, em 1933. “Batista, além de megalômano, era um modernizador compulsivo”, escreve o americano Robert Whitney em 'The Architect of the Cuban State' (“O arquiteto
do estado cubano”, inédito no Brasil), uma biografia do ditador. Batista logo percebeu que, para fazer as reformas desejadas, precisava de dinheiro novo. E foi bater à porta da máfia.
Apesar de estar enraizado em Cuba desde a década de 1920, o crime organizado só ganhou musculatura na ilha – e liberdade para agir – com Batista. Obviamente, uma mão lavou a outra. “A máfi a americana tornou-se um dos braços do ditador no poder”,
afi rma o cubano Enrique Cirules, autor de 'El Imperio de la Habana' (“O império de Havana”, também inédito por aqui), sobre a presença da máfia em Cuba.
Havana, uma cidade colonial, foi reurbanizada, ganhou hotéis, clubes e cassinos. Por um decreto de 1937, as casas de jogos viraram concessão estatal. A licença de um novo
estabelecimento custava 25 mil dólares, mais 20% dos lucros anuais. O cartão de visitas na ilha era o Tropicana, um nightclub inaugurado em 1939, no bairro Marianao, Havana.
Seus espetáculos, com garotas seminuas e coreografias monumentais de Roderico “Rodney” Neyra, ajudaram a fazer da cidade uma referência mundial do show business, como a Broadway, em Nova York. Carmen Miranda, Nat King Cole e Josephine
Baker apresentavam-se lá regularmente.
A orquestra do catalão Xavier Cugat revezava-se entre o hotel Waldorf Astoria, em Manhattan, e Cuba. Na década de 1950, a Cubana Airlines oferecia um vôo especial Miami-Havana, que saía no fim da tarde e retornava aos Estados Unidos às 4 da
manhã.
A bordo dos Lockheed-1049 Constellation da frota, os passageiros jantavam ao som de pianos de cauda, especialmente instalados nos aviões. O ator George Raft, que se popularizou no papel de gângster em filmes da Warner Brothers, só se hospedava numa suíte do hotel Capri, em Havana, onde promovia festas particulares com prostitutas, cocaína e jogatina.
A alquimia financeira de Batista deu certo: os dólares injetados na economia geraram bolsões de prosperidade nas principais cidades da ilha. Cuba era primeiro lugar na América Latina e no Caribe em número de aparelhos de televisão, com 150 mil televisores, e tinha quatro emissoras de TV. Também era recordista em número de salas de cinema, e filmes de sucesso de Hollywood estreavam quase simultaneamente em Nova York e Havana.
A influência americana fazia-se notar até no esporte favorito dos cubanos: o baseball. A garotada idolatrava o jogador Mickey Mantle, do New York Yankees. Era, sem dúvida, um mundo de absoluta despreocupação e muito glamour. Mas também de decadência.
O lendário cantor cubano Ignacio Villa, mais conhecido como Bola de Nieve, sintetizou o espírito daqueles anos com uma frase cortante: “Yo soy un hombre triste que me paso la vida muy alegre” (Eu sou um homem triste que leva uma vida muito alegre).
O homem que, discretamente, montou o império mafioso em Cuba foi Meyer Lansky. Em 1934, Fulgêncio Batista queria aumentar o rendimento medíocre dos cassinos de
Cuba e chamou um gerente de corridas de cachorro da Nova Inglaterra, Lou Smith, para supervisionar a operação. Como não tinha a menor experiência no assunto, Smith, por sua vez, pediu ajuda ao baixinho Lansky, antigo parceiro de tráfico de bebidas durante a Lei Seca americana.
Lansky e o estadista cubano entrosaram-se rapidamente. Com o tempo, o gângster montou um esquema de lavagem de dinheiro e contrabando de diamantes e ouro
entre os Estados Unidos, Cuba e bancos suíços. Havana servia de ponto intermediário do triângulo, um lugar discreto e seguro para a entrada e a saída de mercadorias, divisas ou
o que fosse. O “Nanico” também serviu de “embaixador” quando outros mafi osos se estabeleceram na ilha.
Os Trafficante, pai e filho, influentes criminosos no estado da Flórida, tornaram-se os proprietários de um hotel-cassino – o Sans Souci, na rua 51, em Havana. De quebra, enviavam cocaína e heroína provenientes da Colômbia para os Estados Unidos.
Batista permitiu que a máfia ganhasse licença para abrir instituições financeiras em Cuba.
Don Amadeo Barletta, um calabrês que, na década de 1930, servira de “laranja” para
negócios do ditador italiano Benito Mussolini, fundou o Banco Atlantico S/A em Havana. E ganhou uma concessionária da General Motors em Santiago. Antes tratados como marginais, os mafiosos ganharam súbita respeitabilidade na ilha. “Eles passaram
a usar colarinho branco e limparam o vocabulário. Viraram homens de negócio”, escreve T. J. English.
A Era Batista chegou ao ápice em 1952, quando Fulgêncio deu um golpe de Estado e proclamou-se ditador. Cuba, àquela altura, tinha o terceiro maior PIB entre os países latino-americanos. Mas as distorções sociais e a inversão de valores eram visíveis.
A indústria da prostituição gerava mais dinheiro que a exportação de frutas. Estima-se que 20 mil prostitutas trabalhavam nas ruas e cabarés de Havana.
Em 1954, também na capital, um médico ganhava 90 pesos por mês. No mesmo período, um crupiê recebia 1,5 mil, fora as gorjetas. No interior do país, o cenário era de miséria absoluta. O sopé de Sierra Maestra era pontilhado de cruzes, pertencentes às covas de trabalhadores dos canaviais (os chamados macheteros), que morriam na beira da estrada, à espera de transporte até os hospitais de Santiago de Cuba.
No campo, 70% das crianças não freqüentavam a escola. Batista ainda não percebia. A máfia, tampouco. Mas aquele cenário era o estopim de uma revolução. Quando ela
explodisse, os dois seriam varridos da ilha.
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