Em entrevista ao site Aventuras na História, Wagner Barreira, autor de 'Demerara', explica como a Espanha carregou o fardo histórico
Isabela Barreiros, sob supervisão de Thiago Lincolins Publicado em 26/03/2021, às 08h00 - Atualizado em 21/04/2022, às 08h00
Mais de 124 milhões de casos e 2,7 milhões de mortes: esse é o cenário da pandemia do novo coronavírus que atinge todo o mundo. Apenas alguns meses restam para que se complete um ano desde que o isolamento social impôs-se como uma realidade na vida da maioria dos brasileiros.
Embora seja uma situação drástica, não é a primeira vez que um vírus se espalha pelo planeta. Isso também aconteceu em 1918, quando uma doença que ficou conhecida como Gripe Espanhola causou um surto global, matando milhões de pessoas nos mais diferentes lugares.
Por mais que traga uma referência à Espanha em seu nome, o vírus influenza da gripe não surgiu no país. Na verdade, muitos apontam um quartel nos Estados Unidos como a origem da pandemia.
Em entrevista à AH, Wagner G. Barreira, autor de “Demerara” (2020), romance cujo título faz menção ao navio responsável por trazer a gripe para a América do Sul, explica: “foram soldados americanos que levaram a doença para a Europa”.
Foi no final da Primeira Guerra Mundial que o vírus começou a se espalhar pelos mais diversos países, levado principalmente pelos combatentes do conflito. Em um contexto de guerra, os jornais de muitos países envolvidos foram censurados. “Havia censura militar, algo muito comum em países em guerra, para que espiões inimigos não possam acompanhar questões sensíveis pelos jornais”, afirma Barreira.
Mas, na Espanha, a situação era diferente: “A Espanha era neutra e a doença chegou ao país pela fronteira com a França, o primeiro foco foi a cidade basca de San Sebastián, muito próxima do país vizinho. Os jornais espanhóis, sem censura, foram os primeiros a tratar da pandemia, como se a doença tivesse aparecido ali — e o nome ‘gripe espanhola’ se popularizou”.
A doença que circulava pelo mundo passou a ficar conhecida pela denominação que sugeria que ela surgiu na Espanha em consequência do controle dos meios de comunicação devido à guerra.
Ainda assim, ela teve diversos nomes, que, segundo o autor, “buscavam associar a doença ao inimigo”. “Antes de virar ‘espanhola’, a gripe de 1918 teve outros nomes como ‘febre das trincheiras’, ‘mal francês’ e ‘catarro russo’”, exemplifica.
Como não sofria com a censura imposta pelo contexto da Primeira Guerra, a imprensa espanhola divulgava informações importantes sobre a doença, expondo o que se sabia na época sobre o vírus e suas consequências.
Barreira explica que eles relatavam “os sintomas, formas de prevenção — basicamente as mesmas de hoje, distanciamento e uso de máscara, além de repouso para os contaminados — e a contagem de contaminados de acordo com estatísticas oficiais”.
No Brasil
No Brasil, assim como na Espanha, não houve censura. Como conta o jornalista, “o Diário de Notícias, do Rio de Janeiro, publicou no dia seguinte à chegada do Demerara ao porto que o navio tinha doentes da ‘espanhola’ ou ‘dançarina’ a bordo”. A imprensa não apenas noticiou a chegada da doença, como também cobrou ações das autoridades.
É possível observar algumas diferenças e similaridades entre o contexto histórico da gripe de 1918 e o novo coronavírus. No passado, durante a Primeira Guerra Mundial, a ciência possuía poucos recursos, o que mudou conforme os avanços da tecnologia, mas o vácuo de tratamentos médicos e os surtos locais mostram que as duas têm semelhanças notáveis.
“A gripe de 1918 matou entre 50 e 100 milhões de pessoas, em três ondas. A Covid, até agora, 2 milhões”, explica Barreira. “Em 1918, o vírus era tão letal que a pessoa morria 3 dias depois de contaminada. Isso, de certa forma, explica sua duração curta. Em São Paulo, por exemplo, a fase mais aguda da doença durou dois meses. Hoje, estamos a caminho de completar um ano de confinamento”.
Mesmo que a medicina tenha evoluído muito nesses mais de 100 anos, as formas de lidar com as pandemias continuam muito parecidas: o uso de máscaras e isolamento social seguem sendo as ferramentas mais importantes para a contenção dos vírus. Além disso, o surgimento de “remédios” contra o vírus não data dos dias de hoje.
“Tal como temos hoje a cloroquina, apareceram muitos produtos prometendo a cura da doença. Claro, nenhum funcionou. Mas o governo, pelo menos, não estimulou o uso, como faz agora Bolsonaro”, diz.
A relação das pandemias com o governo, no entanto, apresentou algumas mudanças. Em 1918, as autoridades brasileiras hesitaram em fechar os portos, durante o período em o país era um grande exportador de café. “Mas quando a força da doença se impôs, a postura mudou e o governo passou a alertar a população sobre os riscos da doença”, afirma Barreira.
Assim que perceberam a gravidade da doença, os governos estaduais agiram em prol da contenção do vírus. O Instituto de Infectologia Emilio Ribas, em São Paulo, por exemplo, foi uma expansão de um hospital para doenças infecciosas, tornando-se uma referência internacional nos dias de hoje, assim como a Hospedaria dos Imigrantes se transformou em hospital de campanha na mesma época.
Mesmo que sejam passíveis de comparações, a Gripe Espanhola e o novo coronavírus possuem uma diferença brutal: para a covid-19, vacinas já estão sendo desenvolvidas, enquanto em 1918 isso não passava de ficção científica. Vivendo nos dias de hoje, o que nos resta é aprender com os erros do passado e aproveitar o que as novas tecnologias nos propõem.
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