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Matérias / Esporte

Tratado do ABC: Por dentro do acordo que deu nome ao time de futebol

O episódio se deu graças ao pacto entre Argentina, Brasil, Chile e o próprio clube, que é um dos maiores do Brasil

José Renato Santiago, arquivo Aventuras na História Publicado em 12/09/2021, às 08h00 - Atualizado em 23/11/2022, às 09h16

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Fotografia dos responsáveis pelo Tratado do ABC - Domínio Público/ Creative Commons/ Wikimedia Commons
Fotografia dos responsáveis pelo Tratado do ABC - Domínio Público/ Creative Commons/ Wikimedia Commons

As primeiras décadas do século 19 foram marcantes para a definição da distribuição política do continente americano, sobretudo da América do Sul. Os países, antes divididos pelo Tratado de Tordesilhas, um acordo assinado em 1494 entre os reinos de Portugal e Espanha, seus exploradores, passaram a conquistar a independência em um curto espaço de tempo. Embora alguns vínculos tenham permanecido vigentes ainda durante décadas, entre os anos de 1810 e 1830, todos os países sul-americanos passaram a ser “donos de seus próprios narizes”.

A manutenção dessa condição, no entanto, pareceu que não iria durar muito tempo, sobretudo nas últimas décadas desse século, quando se nota o ressurgimento de certo impulso imperialista de conquista e anexação de territórios por parte de alguns países europeus. A motivação desse súbito interesse estava fundamentada por interesses econômicos, pela busca de novos mercados; militares, tendo em vista a criação de áreas estratégicas no globo; e por fim, talvez o mais forte deles, a busca pela afirmação de um orgulho nacional. Esse entendimento acabou por se mostrar definitivamente verdadeiro a partir de 1914 com a eclosão da Primeira Guerra Mundial.

Somado a isso, o significativo crescimento da influência norte-americana sobre os demais países do continente americano passou a ser visto como preocupação, principalmente junto aos mais promissores países sul-americanos naquela época, Argentina, Brasil e Chile.

Para compreender o que se passava, bastava notar a adoção de medidas intervencionistas comandadas pelos presidentes norte-americanos William McKinley (1897-1901), Theodore Roosevelt (1901-1909), William Howard Taft (1909-1913) e Woodrow Wilson (1913-1921), que chegaram a autorizar ocupações militares em diversos países da América Central. Esse cenário serviu como pano de fundo para uma natural aproximação entre os países da América do Sul, principalmente por meio de acordos bilaterais, em sua grande maioria focados na “não agressão” entre as partes.

Tendo em vista criar um bloco mais conciso entre as principais nações da região, por um acordo de cooperação mútua, José Maria da Silva Paranhos Júnior, o Barão do Rio Branco, que ocupava a pasta das Relações Exteriores do governo brasileiro, iniciou negociações, entre os anos de 1907 e 1909, com os vizinhos chilenos e argentinos.

Em 1909, um grande passo nesse sentido foi dado com uma minuta elaborada a quatro mãos, entre o nosso Barão e o chanceler chileno Federico Puga Borne. A grande rivalidade entre o brasileiro e o argentino Estanislao Zeballos, no entanto, acabou por retardar esse processo, que só foi retomado em 1914, quando os três países exerceram uma mediação conjunta, ante um conflito entre Estados Unidos e México.

Cientes de que a existência de um acordo formal poderia ajudar a consolidação de um ambiente de maior cordialidade entre os países por causa da existência de construção de uma “inteligência cordial”, da “comunhão de ideias e interesses” e do pleno afastamento de possíveis conf litos no futuro, os chanceleres José Luis Muratore, da Argentina, Lauro Muller, do Brasil, e Alejandro Lira, do Chile, reunidos em Buenos Aires, assinaram em 25 de maio de 1915 o Tratado para Facilitar a Solução Pacífica de Controvérsias Internacionais, que passou para a História como o Tratado do ABC, devido às iniciais de cada um dos países signatários.

Naquela época, o pacto foi considerado um marco na história das relações dos países latino-americanos, uma vez que até aquele momento os acordos firmados sempre tinham como principais protagonistas os países europeus e/ou Estados Unidos.

O ineditismo e a importância do Tratado do ABC, sobretudo em tempos de Primeira Guerra Mundial, logo se espalhou por todo o Brasil, uma vez que explicitava uma efetiva unicidade entre as nações. A abreviação do nome, ABC, também chamou a atenção, do comerciante José Potiguar Pinheiro, sócio da Associação Comercial do Rio Grande do Norte, ACRN, entidade fundada em 1892, cujos integrantes costumavam se reunir para discutir assuntos de interesse da classe e as notícias publicadas nos jornais locais.

Em um desses encontros, justamente em 29 de junho de 1915, pouco mais de um mês da assinatura do tratado, na residência do coronel Avelino Alves Freire, presidente da ACRN, alguns jovens da cidade de Natal aproveitaram a reunião para decidir sobre a criação da primeira equipe de futebol do estado.

Para tal, a primeira providência foi a escolha do nome. Coube a Pinheiro, após passar os olhos na manchete de um jornal local que segurava em suas mãos, e que destacava a celebração do tratado, sugerir, não apenas como uma forma de homenagem, mas também por sua sonoridade, ABC. A sugestão foi aceita de imediato e contribuiu para que o próprio Pinheiro se tornasse o primeiro vicepresidente da história do clube.

Também não foi por mero acaso que pouco mais de 15 dias após a fundação do ABC, em 14 de julho daquele ano, outro grupo de jovens se reunisse também em prol da criação de uma nova equipe de futebol, e adotasse um nome, segundo eles, mais abrangente, que representasse todo o continente americano, em vez de apenas três países.

Assim surgiu o América. Como se tivessem nascidos um para o outro, coube aos já rivais se enfrentarem na primeira partida de futebol disputada em solo potiguar, em 26 de setembro de 1915, em um campo improvisado, que atraiu muito interesse dos habitantes da cidade de Natal. Naquele dia o ABC levou a melhor, com uma indiscutível vitória por 4 a 1.

Ainda que haja indícios de uma partida anterior que teria acontecido em 20 de setembro entre ABC e Natal Esporte Clube, com vitória abecedista por 13 a 1, foi a peleja entre ABC e América que evidenciou a estreita relação que os habitantes locais passaram a ter com o futebol. Naquele tempo, Natal era uma pequena cidade com pouco mais de 27 mil habitantes, cujas principais alternativas de distração eram as festas religiosas e os filmes em exibição no Cinema Politheama.

O crescimento da popularidade do futebol potiguar foi quase imediata e o amor demonstrado pelos torcedores aos seus clubes logo chegou às beiras do “fanatismo”, que alcançou todas as classes sociais e intelectuais. Para ter uma ideia, certa vez, o antropólogo Luís da Câmara Cascudo, um dos maiores pensadores do Brasil, chegou a afirmar que “na cidade de Natal, havia um povo chamado ABC”.

Esse amor incondicional cresceu ao passar dos anos, sobretudo pelo sucesso da equipe em suas partidas, o que fez com que alcançasse a incrível marca de 52 títulos do campeonato estadual. Esse feito lhe valeu a referência de ser o clube de futebol com o maior número de conquistas de competições estaduais no Brasil.

Também cabe ao ABC a primazia de conquistar o maior número de títulos estaduais, de forma consecutiva, dez, entre os anos de 1932 e 1941, façanha que divide com outro América, o de Minas Gerais, que conquistou o campeonato do seu estado entre os anos de 1916 e 1925. Por mais paradoxal que possa ser, o sucesso da agremiação ABC se distanciou e muito da relevância prática do tratado assinado entre Argentina, Brasil e Chile, que tinha, justamente, lhe “emprestado” o nome.

A verdade é que, ainda em 1915, tão logo assinado, o Tratado do ABC quase caiu no completo esquecimento, por causa do total desinteresse dos três países signatários. O Brasil, por exemplo, seguiu em frente na sua intenção de retomar uma política de colaboração mais próxima dos Estados Unidos, com quem ansiava ter maior relacionamento comercial, sobretudo no negócio do café, maior produto nacional naquela época. Quanto a Argentina e Chile, o acordo nem sequer chegou a ser aprovado em seus parlamentos.


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