Na época, mais de mil pessoas que tentaram se refugiar aqui foram presas, e dezenas, queimadas vivas
"Arrependo-me e peço perdão porque pequei". Pela primeira vez em dois anos de martírio, Guiomar Nunes disse o que os inquisidores queriam ouvir. A multidão reunida na praça do Comércio, em Lisboa, na tarde de 17 de junho de 1731, gritava contra os hereges, enfileirados diante de um palanque, onde se encontravam autoridades políticas e religiosas.
Diante de 3 mil pessoas eufóricas, um a um, os sete réus foram chamados à contrição uma última vez. Acusada de judaísmo, a pernambucana entre eles resistiu muito antes de confessar. Enfrentara interrogatórios duríssimos na prisão. Suas palavras derradeiras, porém, não bastaram para o Tribunal do Santo Ofício.
O inquisidor se ajoelhou no tablado montado para a ocasião e, enquanto os auxiliares retiravam-lhe a capa e o barrete, os condenados eram aspergidos com água benta. Em seguida, receberam suas sentenças.
Aos 47 anos, Guiomar foi garroteada - estrangulada com uma espécie de torniquete -, e seu corpo, consumido no meio da praça por chamas de até 6 m de altura. Ao pedir perdão, conseguiu evitar que fosse queimada viva. Do outro lado do Atlântico, no Engenho de Santo André (na atual Paraíba), o vendedor de latas Luís Nunes de Fonseca acabara de se tornar viúvo, com oito filhos do casal para criar.
Guiomar morreu em Portugal porque o Brasil não torturou ou fez arder seus hereges em fogueiras. Mas ela foi delatada e presa em um processo iniciado por aqui. E não foi a única.
Por mais de 200 anos, a Inquisição católica atuou nas terras da América portuguesa. Estimulou delações e criou um clima de terror nas principais cidades por meio dos temidos visitadores e de auxiliares locais, integrantes do clero.
Prendeu e enviou para a Europa pessoas que dificilmente voltavam à terra natal. Quem não foi condenado ao degredo e perdeu todos os bens acabou, como se dizia na época, purificado pelo fogo. A exemplo de Guiomar e dos outros condenados queimados com ela, que nem sequer puderam ser enterrados, suas cinzas foram espalhadas ao vento.
Cristãos-novos
À frente da União Ibérica, o rei Filipe IV bem que tentou instalar um tribunal do Santo Ofício no Brasil, em 1623, mas não teve autorização da Igreja e desistiu diante das invasões holandesas no Nordeste. Entre os séculos 15 e 16, com a ocupação de colônias na Ásia e nas Américas, Portugal e Espanha empenharam-se em retomar as perseguições que marcaram a Idade Média.
O objetivo era garantir que as novas terras se tornassem obedientes à fé europeia e controlar com rédea curta a crescente população de cristãos-novos (descendentes de judeus convertidos).
A chamada Inquisição medieval teve características distintas. Começou no século 13 (com precedentes no século anterior), agiu principalmente na França e na Itália e perseguiu quem discordava dos dogmas do catolicismo ou desrespeitava suas estritas normas de conduta.
No século 15, porém, no auge do Renascimento, a atuação dos inquisidores era decadente. Após pressionar muito o papa, a Espanha conseguiu recriar o tribunal, em 1478, e Portugal, em 1536. Estava inaugurada a Inquisição moderna.
Os espanhóis instalaram tribunais em cidades centrais de suas colônias: Cartagena, Lima e Cidade do México. Os portugueses conseguiram fazer isso apenas na mais distante: Goa (na atual Índia).
"Os judeus, em princípio, não podiam ser perseguidos pela Inquisição, que investigava apenas as pessoas batizadas. Mas, depois de forçados à conversão, seus descendentes eram investigados até mesmo dez gerações depois. Era racismo mesmo", diz o historiador Bruno Feitler, autor de Nas Malhas da Consciência - Igreja e Inquisição no Brasil.
Os cristão-novos eram estigmatizados e perseguidos havia pelo menos três séculos. Com o surgimento de colônias afastadas dos centros de poder, muitos deles preferiram se mudar (ou foram expulsos), o que causou preocupação nas autoridades locais, que temiam a retomada de práticas judaicas. Considerada a primeira professora do Brasil, Branca Dias foi vítima desse cenário.
Denunciada pela mãe e pela irmã (possivelmente sob tortura) ainda em Portugal, ela respondeu às acusações de judaísmo, cumpriu pena de dois anos de prisão e depois imigrou com o marido para Pernambuco, onde foi investigada mais uma vez - mesmo vários anos depois de morta, em 1558. Acabou condenada, assim como suas filhas e netas (elas, sim, estavam bem vivas...).
Com a atuação nas metrópoles e no além-mar, esse segundo momento da Inquisição foi marcado por um controle muito maior do Estado, que sustentava os tribunais e se responsabilizava por organizar os autos de fé, as grandes simulações do Juízo Final.
Invariavelmente, as fogueiras eram acesas, os hereges, queimados (vivos, mortos ou na forma de bonecos, as efígies), e o povo festejava madrugada adentro. No Brasil, os representantes do Tribunal do Santo Ofício eram as autoridades eclesiásticas locais, que tinham autonomia para identificar casos de desobediência à fé, realizar investigações preliminares e prender os suspeitos, remetidos para Lisboa, onde o processo era concluído.
Essa estrutura funcionou entre os séculos 16 e 18. A sede podia estar distante, mas a Inquisição mostrou sua força bem de perto, especialmente quando enviou funcionários para visitas pessoais a algumas áreas cruciais da Colônia.
Visitações
Era um grande acontecimento. O desembarque do emissário mobilizava a população e fazia multiplicar as procissões. Acompanhado de um séquito de dezenas de pessoas, o visitador era instalado em algum casarão central, onde o governador-geral, funcionários de alto escalão, juízes, bispos, vigários e missionários passavam para o beija-mão.
Em 1591, a recepção ao primeiro dos quatro enviados parou Salvador: "Heitor Furtado (de Mendonça) veio debaixo de um pálio de tela de ouro e, adentrando a Sé, ouviu renovados votos de louvor à sua pessoa e ao Santo Ofício. Dirigiu-se então à capela-mor, após a leitura da constituição de Pio V em favor da Inquisição, onde estava posto um altar ricamente adornado com uma cruz de prata arvorada, e quatro castiçais grandes, também de prata, com velas acesas, além de dois missais abertos em cima de almofadas de damasco, nos quais jaziam duas cruzes de prata. Em meio a todo esse luxo, o visitador rumou para o topo do altar, sentou-se numa cadeira de veludo trazida pelo capelão e recebeu o juramento do governador, juízes, vereadores e mais funcionários, todos ajoelhados perante o Santo Ofício", descreve o historiador Ronaldo Vainfas.
Sabe-se que Mendonça chegou preocupado - tinha lido um texto em que o padre Antônio Vieira dizia que, no Brasil, "não se guarda um só mandamento de Deus e muito menos os da Igreja".
O início das visitas marcava o Tempo da Graça, período de até 60 dias em que todas as pessoas eram "convidadas" a se manifestar. Nas ruas eram afixadas cópias do monitório, documento que listava os "crimes" sujeitos a investigação, incluindo blasfêmias, sacrilégios e, claro, transgressões sexuais e judaísmo. "Quanto mais rápido a pessoa se apresentava, menos suspeitas levantava contra si", diz Fernando Vieira, professor da Universidade Católica de Brasília.
A essa altura, a festa dava lugar à tensão. Como as denúncias eram anônimas, aquele era o momento ideal para vinganças. Uma mulher trocada pelo marido, por exemplo, poderia denunciá-lo por bigamia (também há casos de denúncias de homens abandonados pela mulher). Um comerciante passado para trás nos negócios era capaz de sugerir que o concorrente praticava o judaísmo.
Escravos denunciavam os seus senhores por sodomia. Na medida em que as acusações se acumulavam, os suspeitos eram levados para diante do visitador. Nem sempre sabiam qual o suposto crime. "No século 17, um homem acusado de homossexualidade confessou judaísmo porque achou que esse era o motivo da denúncia. Acabou julgado pelos dois", afirma Feitler.
Muitas vezes, amigos entregavam uns aos outros e familiares eram forçados a voltar-se contra um parente. Foi o que ocorreu com Ana Rodrigues, a primeira moradora do Brasil condenada à fogueira. "A chegada do visitador causava um descontrole nas relações sociais", diz o historiador Angelo Assis, professor da Universidade de Viçosa. O barbeiro Salvador Rodrigues foi acusado de sodomia pelos próprios irmãos na Belém de 1661. O inquérito levantou uma vasta rede de contatos homossexuais e acabou punindo outras pessoas na cidade.
Tradicionalmente, são citadas três visitações ao Brasil. A primeira, entre 1591 e 1595, passou por Bahia, Pernambuco, Itamaracá e Paraíba, num momento em que a União Ibérica enviava vários inquisidores às suas colônias. A segunda, de 1618 a 1621, a cargo de dom Marcos Teixeira, voltou à Bahia, dessa vez com maior foco na busca por cristãos-novos. A terceira, de 1763 a 1769, visitou a província do Grão-Pará e Maranhão e ficou sediada em Belém.
As motivações dessa última não estão muito claras, mas a explicação mais comum é a de que ela funcionou para prover suporte ao novo governo local e para mudar a direção da Igreja na região - o visitador, Giraldo José de Abranches, chegou com o novo governador-geral, Fernando da Costa de Ataíde Teive, e acumulou o posto de novo bispo da província. De toda forma, em nenhum outro lugar foram investigados tantos curandeiros e feiticeiros quanto naquelas paragens.
Dúvidas
Os arquivos dessas investigações estão localizados na Torre do Tombo, em Portugal, eles citam 40 mil nomes de pessoas perseguidas, mas sem classificação por local de nascimento. Tampouco está claro se essas foram as únicas visitações.
Entre 1627 e 1628, descobriu-se outra, que passou por Rio de Janeiro (onde o visitador Luís Pires da Veiga foi ameaçado de apedrejamento pela população), São Paulo e São Vicente. "Com certeza, há visitações das quais ainda não se encontraram os livros, fora aqueles que se perderam em naufrágios", afirma Assis.
O certo mesmo é que a Inquisição teve grande impacto na vida da Colônia. "A ação inquisitorial se fez sentir em todo o Brasil desde o início da colonização até o século 18, mesmo em capitanias que nunca receberam visitações, como Minas Gerais e Ceará", afirma a historiadora Marcia Eliane Souza e Mello.
Tanto isso é verdade que há registros de processos antes da primeira visitação. Já em 1546, o donatário da capitania de Porto Seguro, Pero do Campo Tourinho, foi denunciado por ter afirmado que, em suas terras, ele era o "papa" e que trabalhador nenhum tiraria folga nos domingos e dias santos. Ao longo da década de 1550, em Salvador, o bispo dom Pedro Fernandes Sardinha, o primeiro do Brasil, exerceu funções inquisitoriais.
Bispos, padres, missionários, todos os membros da Igreja eram orientados a observar os costumes de seus fiéis e encaminhar os casos suspeitos para instâncias superiores. Mas a rede do Tribunal do Santo Ofício era mais vasta: havia representantes locais escolhidos no clero, os "comissários", que tinham a obrigação de circular pela região com os olhos (e ouvidos) bem abertos.
E contavam com a ajuda de informantes, os "familiares", homens influentes que conseguiam da Igreja um certificado de que tinham boa conduta e "sangue puro", intocado por antepassados judeus (o poeta Cláudio Manoel da Costa, por exemplo, foi recusado por "suspeita de sangue").
Os "familiares" acompanhavam as prisões e o confisco de bens determinado pelos comissários, às vezes antes mesmo da conclusão dos processos. A Quaresma era estratégica: todos os habitantes tinham o dever de confessar os pecados - e de entregar os alheios, sob pena de responder como cúmplices.
As grandes cidades foram as mais visadas. Minas Gerais, no auge da mineração, foi alvo preferencial. Assim como o Rio de Janeiro, na medida em que crescia em importância. No fim das contas (ao menos das disponíveis), veio de lá a maior parte dos acusados. "Rio e Minas, principalmente no século 17, tinham um importante número de representantes inquisitoriais.
Mas há vítimas espalhadas por boa parte do país, como no Espírito Santo, no Piauí e em Goiás", diz a historiadora Anita Novinsky, da USP. Só na Paraíba, no século 18, 50 pessoas do mesmo círculo familiar foram presas, acusadas de manter as esnogas (sinagogas secretas). No Mato Grosso, foram cinco viagens de comissários em busca de casos de feitiçaria. O "mandingueiro" Manoel Francisco Davida não escapou.
Técnicas
Sobretudo nos inquéritos por judaísmo, era comum os acusados se comprometerem por manter tradições como enterrar os mortos em terra virgem e certos hábitos à mesa. O capelão do inquisidor geral em Portugal, Andrés Bernardez, recomendava: "Existe uma forma judaica de cozinhar e comer, a que todos devemos estar atentos. Eles preparam seus pratos, principalmente a carne, com muito alho e cebola, fritando-os ao invés de assá-los ou utilizar a banha de porco". Na Bahia de 1560, a mucama de Joana Fenade a denunciou por "fritar cebolas em óleo e jogá-las numa panela com carne para todos comerem".
É verdade que a Inquisição foi muito mais mortal em outras praças, mas isso não diminui o rastro de medo deixado no Brasil. De toda forma, ela legou aos historiadores relatos preciosos sobre o cotidiano da Colônia até cerca de 1768, quando o Tribunal do Santo Ofício português foi transformado em tribunal régio (no contexto das reformas do marques de Pombal), o que esvaziou sua atuação.
A extinção formal ocorreu em 1821. Os processos reproduzem hábitos religiosos, alimentares, sexuais... As toneladas de papel arquivadas no Tombo apresentam da genealogia detalhada das famílias envolvidas às traições nos casamentos. "É um acervo riquíssimo", diz Novinsky.
Saiba mais
Inquisição: Prisioneiros do Brasil, Anita Novinsky, 2002.
Inquisição em Xeque: Temas, Controvérsias, Estudos de Caso, Ronaldo Vainfas, Bruno Feitler e Lana Lage da Gama (orgs.), 2006.
O Diabo e a Terra de Santa Cruz, Laura de Mello e Souza, Companhia das Letras, 1986.