Van Gogh e Gauguin eram amigos. No entanto, dois meses morando juntos bastaram para um ir parar no hospício, mutilado, e outro se exilar de tudo e todos
Morar com alguém nem sempre dá certo. É preciso conhecer o parceiro, se acostumar com seus hábitos, compreender suas manias. Disso, todo mundo sabe. E todo mundo sabe, também, que o dia a dia sob o mesmo teto pode ser fatal para namoros, casamentos e amizades mais resistentes.
Dois dos maiores gênios da pintura, o holandês Vincent van Gogh e o francês Paul Gauguin, descobriram isso durante os dois meses que moraram juntos, em 1888, em Arles, na França.
Ali, pretendiam criar um novo polo de artes plásticas, mais livre, mais independente das grandes galerias e das ferozes regras do mercado parisiense. Rica, intensa e pródiga no campo artístico, a convivência entre os dois teve um final trágico. Na mesma noite que Gauguin deixou a casa que dividiam, Van Gogh decepou a própria orelha. Mas nossa história começa pelo menos dois meses antes.
Na ensolarada cidadezinha no sul do país, em uma simpática casinha amarela de quatro cômodos, morava Vincent van Gogh. O pintor de 35 anos de idade se mudara para lá em fevereiro de 1888, em busca de tranquilidade, depois de passar dois anos em Paris.
Van Gogh não tinha o temperamento necessário para morar na metrópole. “Parece-me impossível que se possa trabalhar em Paris”, escreveu ao irmão Théo, em sua primeira carta do novo endereço. De Paris, ele só guardou boas lembranças de umas telas supercoloridas que tinha visto numa exposição dos impressionistas.
Van Gogh ainda se adaptava aos girassóis e às cores de Arles quando recebeu uma carta de Gauguin. Eles haviam se conhecido um ano antes, quando Gauguin bateu à porta da Casa Goupil, uma das mais importantes galerias da Europa.
Recém-chegado da Martinica, sem dinheiro e acometido de malária, o francês estava desesperado para vender seus quadros. Por isso, separou alguns dos que mais gostava: eram pinturas coloridas que revelavam sua nova sensibilidade para os tons fortes desenvolvida sob o sol dos trópicos.
O negociante artístico da Goupil era justamente Théo van Gogh e, por acaso, Vincent o estava visitando. Ambos adoraram os quadros de Gauguin e Théo comprou três deles. Desde então, ficaram amigos: para Vincent, Gauguin era um exemplo inspirador. Para Gauguin, era o dinheiro do irmão de Vincent que mais interessava. Mas o francês também adorou ser admirado, depois de tanto tempo fora.
Naquela tarde em Arles, quando abriu o envelope, Van Gogh não esperava pelo seu conteúdo. Era quase um pedido de socorro. Gauguin dizia estar muito doente, sem um tostão e cheio de dívidas.
A situação do francês despertou em Van Gogh uma sincera vontade de ajudar”, disse o historiador Wounter van der Veen, da Holanda.
Segundo ele, ideias assim eram comuns em uma mente como a sua. “Antes de se dedicar à pintura, Van Gogh queria ser pastor, como o pai. Chegou a doar todos os seus bens e dormir na rua para viver como os mais humildes.”
Mas não era só filantropia. Van Gogh imaginava criar em Arles o que chamou de Comunidade dos Artistas do Sul. Lá poderiam pintar à vontade, sem as pressões de Paris. A presença de Gauguin seria perfeita para esses planos e Van Gogh pediu a Théo que convidasse Gauguin para ir a Arles.
Gauguin, no entanto, recebeu o convite sem muito entusiasmo: não tinha o menor interesse em se isolar no sul da França. Muito menos em compartilhar o ateliê com um pintor cujo talento ele julgava muito inferior ao seu.
Em 1888, Gauguin, aos 40 anos, já tinha participado de três exposições ao lado de grandes nomes do impressionismo — movimento que reunia os queridinhos da época. “Seu nome estava associado a artistas como Monet e Degas”, afirmou a historiadora de arte Caroline Boyle-Turner, da França.
Para ela, Gauguin precisava do dinheiro e fez um acordo com Théo pelo qual ele faria uma exposição em Paris, no ano seguinte, e receberia uma mesada de 300 francos, em troca do compromisso de entregar um único quadro mensal.
A confirmação da ida de Gauguin deixou Vincent eufórico. Enquanto o esperava, ele passou a pintar com uma inédita energia: quase uma tela por dia. É dessa época a maior parte do seu legado.
“As ideias para trabalhar me vêm em abundância, e isso faz com que, mesmo estando isolado, eu não tenha tempo para pensar ou sentir; estou feito uma locomotiva de pintar”, relatou o artista em carta ao irmão. O frenesi criativo incluía pintar telas para decorar a casa-ateliê. “O quarto de Gauguin terá nas paredes brancas uma decoração com grandes girassóis amarelos.”
Cinco semanas atrasado, Gauguin chegou a Arles no dia 21 de outubro de 1888. Sua bagagem, apenas duas malas e uma pequena valise de mão, mostrava que ele estava disposto a permanecer o mínimo possível na cidade.
“Ele viajou ao sul da França imbuído da certeza de que seria, mais que diretor da nascente Comunidade do Sul, o instrutor de pintura do irmão de Théo”, disse Caroline.
Já Vincent saudou com entusiasmo a chegada daquele que via como parceiro ideal em sua busca da “nova escola colorista”. Na primeira carta que enviou a Théo, mostrou-se estimulado por Gauguin: “Ele é um homem muito interessante, e estou confiante de que com ele faremos uma porção de coisas”. E eles fizeram.
Gauguin se instalou num quarto do andar superior, onde havia uma janela, a cama e um velho armário de madeira. Os dias eram longos e as tardes luminosas custavam a se apagar na paisagem, no morno outono de Arles. Os dois artistas passavam o dia pintando e chegaram a se exercitar sobre o mesmo tema.
Outras vezes, divertiam-se retratando um ao outro. Passaram a ser figurinhas fáceis nos cafés de Arles e eram vistos sempre juntos, bebendo, jogando sinuca e frequentando os bordéis da cidade. Mas, apesar disso, eles mantinham seus estilos próprios. Van Gogh gostava de pintar ao ar livre. Gauguin preferia o conforto do ateliê. Van Gogh pintava com extrema rapidez. Gauguin desprezava-o por isso. Enquanto Van Gogh se inspirava em elementos da realidade, Gauguin defendia o uso da imaginação.
Os dois, sempre sem dinheiro, tinham de dividir as tarefas domésticas. Vincent saía e comprava comida, a Gauguin cabia cozinhar. “Uma vez, Vincent quis preparar uma sopa, mas, não sei como, fez suas misturas. Sem dúvida como as cores de seus quadros. Acontece que não pudemos comê-la”, relatou Gauguin em seu livro Antes e Depois, escrito dez anos mais tarde.
Sob a aparente tranquilidade, porém, as diferenças de temperamento começavam a ser motivo de brigas. Gauguin era metódico e organizado. Cuidava muito bem do que comprava e odiava gastar dinheiro. Van Gogh era um bagunceiro e esbanjador. Mas até então pareciam apreciar a companhia um do outro. Juntos iam a exposições e depois travavam acalorados debates sobre o que viam.
“Gauguin e eu fomos a Montpellier ver o museu. Conversamos muito sobre Delacroix, Rembrandt e etc. A discussão é de uma eletricidade excessiva. Às vezes saímos dela com a cabeça tão cansada quanto uma bateria elétrica depois da descarga”, escreveu certa vez Vincent ao irmão Théo. Tudo isso era um estímulo para Van Gogh, mas começava a cansar Gauguin.
Para Wounter van der Veer, o francês pode ter se sentido ameaçado por Van Gogh. “Gauguin esperava encontrar em Arles um pupilo sedento por sugar seu conhecimento. Àquela altura, porém, embora o mundo e o próprio Vincent ainda não soubessem, o irmão de Théo já se transformara no genial Van Gogh, em pleno exercício de uma luminosa linguagem pictórica jamais vista, e ainda hoje inigualável”, disse.
Os embates entre os dois ficaram cada vez mais tensos e, em dezembro, quando se aproximava o inverno, os vizinhos passaram a reclamar de gritos e brigas. “Ambos eram rebeldes, apaixonados, ambos eram excêntricos. Talvez por isso se atracaram”, falou a historiadora inglesa Nancy Mowll Matheus.
Mas suas paixões não eram puramente artísticas. Naqueles dias, Van Gogh e Gauguin brigaram em público pela mesma mulher: uma prostituta que trabalhava no bordel que ambos frequentavam.
No dia 22 de dezembro, Vincent escreveu para o irmão: “Acho que Gauguin se desanimou um pouco com a boa cidade de Arles, com a casinha amarela e sobretudo comigo. De fato, tanto para ele quanto para mim, aqui ainda existiriam sérias dificuldades a vencer. Mas essas dificuldades estão mais dentro de nós mesmos que em qualquer outra parte. Acredito que ou ele vai decididamente partir, ou ele decididamente ficará aqui”.
Na noite do dia 23, Gauguin deu as últimas e calculadas pinceladas na tela que chamou Vincent van Gogh Pinta Girassóis e foi buscar Vincent para vê-la. Talvez fosse dá-la a ele como um presente, afinal, era a antevéspera de Natal.
Van Gogh olhou para o quadro e disse: “Sou eu mesmo, mas eu enlouquecido”. Em seguida, os dois saíram juntos e foram ao café da cidade. Comeram algo leve e passaram a tomar absinto. Depois tomaram mais. Discutiram e saíram separados. Van Gogh tomou o caminho de casa. Gauguin foi para um hotel.
Sozinho em casa, Van Gogh aproximou uma navalha do próprio rosto e, com um único golpe, arrancou a orelha esquerda. O sangue demoraria a estancar. Mesmo assim, ele enrolou a orelha num lençol e a levou para a prostituta pela qual haviam brigado, dias antes, e identificada apenas como Gaby.
Depois, com uma toalha para conter o sangue do lado esquerdo da cabeça, voltou para casa e adormeceu. Na manhã seguinte, Gauguin foi à casa e a encontrou repleta de sangue, as paredes tinham manchas, uma navalha estava caída no chão e, no quarto, um corpo ainda sangrava. Vincent foi levado ao hospital e Paul partiu, naquela mesma tarde, para Paris. Nunca mais se viram.
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