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Matérias / Casa-Grande & Senzala

Casa-Grande e Senzala: Publicado há 90 anos, livro continua atual

A importância da revolucionária — e, ao mesmo tempo, controversa — obra de Gilberto Freyre é destacada em entrevista de Mary Del Priore e Luiz Carlos Bresser-Pereira

Ingredi Brunato e Marcus Lopes Publicado em 02/03/2024, às 09h00 - Atualizado às 11h45

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Pintura antiga de 'família brasileira no Rio de janeiro' - Domínio Público
Pintura antiga de 'família brasileira no Rio de janeiro' - Domínio Público

"Casa-Grande & Senzala", do renomado sociólogo Gilberto Freyre, é uma obra clássica na história dos estudos sobre o Brasil. Lançado pelo escritor em 1933, após anos de pesquisa, o livro ajudou a explicar a formação da sociedade brasileira, trazendo reflexões que foram revolucionárias para a época. 

Pouco mais de 90 anos mais tarde, o livro permanece tendo um valor inestimável para qualquer um que queira saber mais sobre o Brasil, seu povo e a própria trajetória dos estudos sociológicos por aqui. 

Para entender melhor as contribuições de "Casa-Grande & Senzala" para os estudos da sociedade brasileira e qual o lugar que o clássico ocupa hoje, o jornalista Marcus Lopes entrevistou dois pensadores ilustres.

São eles Mary Del Priore, historiadora e autora de mais de 20 livros a respeito do assunto; e Luiz Carlos Bresser-Pereira, cientista político, economista, advogado e estudioso de Gilberto Freyre.

Montagem mostrando Del Priore e Bresser-Pereira / Crédito: Divulgação/ Instagram e Divulgação/ Wikimedia Commons

Relevância 

Ambos os entrevistados concordaram que a obra de Freyre prossegue atual, dado que investiga as raízes da cultura de nosso país, expondo algo que teria persistido mesmo com o passar do tempo.

É uma obra histórico-sociológica que busca os fundamentos da sociedade brasileira – uma sociedade que, como todas as grandes sociedades, muda, mas se conserva a mesma (...) As suas bases econômicas, políticas e raciais continuam as mesmas", refletiu Bresser-Pereira.

Além disso, o impacto do livro após seu lançamento, por si só, justifica sua importância vitalícia e seu status como um "clássico", conforme avaliado por Priore

Clássicos são livros reconhecidos por sua credibilidade, por sua qualidade literária e artística, pelo impacto que tiveram quando de seu lançamento, além de considerados exemplares e dignos de interesse anos depois de seu aparecimento. Por tudo isso,
sim, Casa-Grande & Senzala é um clássico", disse ela. 

A abordagem do sociólogoà história do Brasil ainda impressiona por usar uma perspectiva que apenas se popularizaria depois: aquela em que o foco se volta a indivíduos anônimos, como eu e você, e não figuras históricas famosas. 

"Muito antes dos historiadores estrangeiros falarem em atores anônimos da História, Gilberto Freyre o fez. Nos seus livros, não há heróis. Há gente, povo. Debruçou-se com voracidade sobre fontes documentais inéditas que inspiraram toda uma geração de grandes historiadores", acrescentou a autora. 

Além disso, muitas das temáticas abordadas por "Casa-Grande & Senzala" possuem um teor abrangente, como colonização, relações familiares, e a dinâmica desigual de poder entre homens e mulheres, entre outros. Neste terceiro ponto, aliás, pode-se dar crédito a Freyre por expor elementos do patriarcado muito antes do tema ser debatido como hoje.

Fotografia de Freyre / Crédito: Divulgação/ Domínio Público 

'Mestiçagem'

Um dos assuntos mais elementares investigados pelo sociólogo brasileiro foi a mestiçagem. Em seu livro, ele explica que nossa sociedade é um resultado da mistura entre europeus, indígenas e negros.

Nos originamos de uma sociedade agrária, escravocrata e híbrida cujo contato constante, quer na vida privada ou na vida pública, gerou uma experiência histórica e social única baseada na mestiçagem", explicou Mary Del Priore

Ao expor esse fato, Freyre chamou atenção para a importância das heranças culturais de origens indígenas e africanas para a formação do cidadão brasileiro — o que, antes dele, era ignorado. 

Freyre, ao afirmar categórica e quase triunfalmente que o Brasil é um país mestiço, estava afirmando uma verdade sempre negada, e estava rejeitando a tese racista do branqueamento da sociedade brasileira", apontou ainda Bresser-Pereira

Mais do que a simples mistura sanguínea e de traços físicos, o sociólogo estava interessado na mistura cultural que vinha da miscigenação, naquilo que descrevia como as "confraternizações e combinações" entre costumes de povos diversos — que se fundiam para formar a identidade brasileira. 

Controvérsia

O legado de Freyre, no entanto, não é livre de controvérsia: o escritor ainda era, afinal, um produto de seu tempo. Assim, é possível criticar algumas de suas ideias. Essa dualidade da obra "Casa-Grande & Senzala" foi abordada por Bresser-Pereira.

Ao sugerir que o resultado [da mestiçagem brasileira] era uma espécie de democracia racial, ele estava profundamente equivocado. A sociedade brasileira é uma sociedade racista, como são racistas praticamente todas as sociedades dominadas por uma raça – pela raça branca no caso do Brasil", afirmou. 

O cientista político ainda acrescenta que o sociólogo teria amenizado "de modo inaceitável" o sistema escravocrata em algumas de suas descrições. Além disso, o legado de Freyre foi prejudicado pelo conservadorismo nutrido por ele em sua vida pessoal. Outro fato relevante da vida do pensador, por exemplo, é que ele apoiou o regime militar de 1964. 

Del Priore, por outro lado, acredita que existem falhas no livro, mas, na verdade, a maioria das críticas ao autor de "Casa-Grande & Senzala" vem de pessoas que não leram realmente seus trabalhos.   

 O calcanhar de Aquiles do livro é a relação entre senhores e escravizados descrita por ele com indulgência (...) Mas o grosso das críticas resulta do desconhecimento da obra, das pesquisas e das inúmeras entrevistas dadas por Gilberto Freyre ao longo da vida. Ele nunca escondeu o sofrimento dos escravizados ou o racismo, que tratou com profundidade em Ordem & Progresso", observou a historiadora.

Ela acrescenta ainda que o estudioso nunca usou a expressão "democracia racial" — quem a utilizou, na verdade, foram acadêmicos norte-americanos que visitaram o Brasil. 

"É preciso ser muito obtuso para julgar só o homem e deixar de fora um dos maiores sociólogos e historiadores brasileiros, dos pouquíssimos reconhecidos internacionalmente", completou.