"O Tempo dos Inconciliáveis" apresenta uma desconstrução de visões binárias e simplificadas sobre religião, política e relações do Islã com o Ocidente
Muitas vezes indecifrável para leigos, a relação entre o Islã e a cultura ocidental relatada pela mídia deixa uma impressão que ressalta o terrorismo e a intolerância, principalmente em ações de povos e governos do mundo árabe.
Uma das grandes vozes contra a simplificação deste discurso foi o intelectual, ensaísta, tradutor e professor Abdelwahab Meddeb, nascido na Tunísia e radicado em Paris desde o final dos anos 60 até a data de seu falecimento, em 2014.
Trazido ao Brasil pelas Edições Sesc SP, "O Tempo dos Inconciliáveis” reúne uma coleção de crônicas radiofônicas transmitidas pela rádio Méditerranée Internationale – Médi 1, entre 2012 e 2014, assim como algumas colunas publicadas na imprensa. A obra conta com a organização de sua filha, Hind Meddeb, e sua mulher, Amina Meddeb.
Os textos, assim como grande parte da obra do autor, contrapõem o Islã político ao Islã enquanto religião e ideologia: o primeiro se satisfaz com o crime e a destruição valendo-se de uma leitura rasa da ética e da estética formatadas no Alcorão.
Para uma melhor compreensão do tema, a edição brasileira conta com texto de orelha por Arlene Clemesha, historiadora, professora de História Árabe e atual diretora do Centro de Estudos Árabes da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), oferecendo ao público uma abertura para imersão aos pensamentos de Meddeb, bem como a contextualização de sua militância.
A partir daí tem-se o que os familiares do autor chamam, no prefácio, de um “precioso manual de combate a todas as formas de fundamentalismo”. O livro é dividido em seis capítulos, de forma a clarificar os diversos aspectos da questão islâmica, trazendo à tona desde a trama islamista de aplicação do Islã pelo terror, chegando às similaridades de sua atuação com projetos políticos instituídos em terras ocidentais e passando pela pouco mencionada resistência popular às ditaduras baseadas em um modelo fetichizado por islamistas niilistas.
Os textos de Meddeb acompanhavam os noticiários da época, mas não perdem em atualidade, pois geram uma linha do tempo de um período que ainda reverbera de forma explícita. Da mesma forma, seus relatos também dissecam os pilares da atitude dos islamistas contra governos do Ocidente a partir de fatos históricos, entre eles uma “política de dois pesos, duas medidas”.
Exemplos disso estão em ações como as dos EUA, que nunca exigiram de Israel a adoção das resoluções da ONU relacionadas ao conflito árabe-israelense, ou mesmo na exclusão do Islã enquanto cultura que ajudou a firmar os valores da Europa moderna.
"Devemos manter os olhos abertos, mesmo enquanto dormimos, e não nos deixar enganar pelas sereias islamistas. Devemos sempre lembrar que, em nossa própria tradição, temos riqueza suficiente para construir uma sociedade aberta ao outro, ao amor à vida, à hospitalidade, uma sociedade que adapta nossos próprios valores ao tempo presente. Isso é possível, nós sabemos”, disse Abdelwahab Meddeb em vida.