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Guerras e defesa: A história das forças armadas e poder de fogo no Brasil

Embora o Brasil pouco se envolva em guerras, nossas forças armadas já foram muito respeitadas pela história, e ainda seguem; entenda!

Ricardo Lobato* Publicado em 05/10/2024, às 18h00

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Militares brasileiros - Licença Creative Commons via Wikimedia Commons
Militares brasileiros - Licença Creative Commons via Wikimedia Commons

Como analista-chefe de uma empresa especializada em análise de risco político, sempre que possível, busco trazer para esta coluna o tema do "jogo de poder" entre as nações — afinal, o que é a guerra senão a forma mais "dura" da geopolítica?

Tenho visto, pelo retorno de vocês, queridos leitores, que mostrar a geopolítica por trás das guerras e dos assuntos militares tem encontrado eco. Entre as últimas mensagens que recebi, uma delas destaca o "papel geopolítico do Brasil para além da nossa diplomacia". Resolvi, então, dedicar esta coluna ao tema sugerido, tão complexo quanto interessante — partindo, claro, da História!

O Brasil, que começou o século 19 como colônia, passando a Reino em 1815, se emancipando e virando Império em 1822, havia, em 1889, mudado de regime mais uma vez: agora, o país experimentava "ser uma República". Ainda que, de forma autocrática e com uma democracia que não era para todos (bem longe disso, aliás), o novo sistema tinha mais liberdade do que os anteriores. Contudo, o início da experiência republicana brasileira coincidia com um momento "delicado" (para dizer o mínimo) da geopolítica internacional.

A virada para o século 20 foi o auge da "Era dos Impérios" (1875-1914), como bem chamou o historiador Eric Hobsbawm. Um momento em que as grandes potências de então, movidas pela sede por riquezas para alimentar as máquinas da revolução industrial, colonizavam África e Ásia. Essa sede expansionista iria levar justamente à Grande Guerra (1914-1918), mas, como geralmente acontece antes de um conflito, seus anos imediatamente anteriores são marcados por tensões latentes, e é aqui que entra a América do Sul, por conseguinte, o Brasil.

O continente, que se emancipara das potências coloniais no século anterior, mesmo que não estivesse na mira da colonização, estava longe de ser pacífico. Além de as grandes potências ainda possuírem muitos interesses por aqui (velados ou não), os próprios países do Cone Sul brigavam entre si pela supremacia da região. Para além de algumas feridas ainda abertas da Guerra do Paraguai (1864-1870), ainda havia outras disputas na região.

Militares paraguaios durante a Guerra do Paraguai / Crédito: Getty Images

Os países competiam para ver quem possuía o melhor e mais avançado armamento e, consequentemente, maior poder de fogo. Com Argentina e Chile batalhando pela supremacia naval sul-americana, e com orçamentos militares cada vez maiores, os brasileiros decidiram que precisavam fazer algo. Maior nação sul-americana, e em momento que ainda terminava de definir as fronteiras, o Brasil foi às compras — uma vez que viu seu status de potência regional (e internacional) ameaçado.

+ Muito além de um quartel: A real origem do Exército Brasileiro, o R2

Novos projetos

A despeito de a República ter nascido em meio a uma crise financeira, a do Encilhamento (1889-1894), os líderes do país decidiram "não poupar gastos". De modo a garantir o poder de fogo das Forças Armadas, Marinha e Exército (a Força Aérea seria criada apenas em 1941) foram contemplados com dois grandes projetos.

A Marinha, com plano de reorganização naval, encomendou em 1904 os "mais modernos vasos de guerra" que a Inglaterra — sua velha aliada e fornecedora — tinha a oferecer. Como se não bastasse, levando em conta a rapidez com que a tecnologia militar avançava no pré-Primeira Guerra, em 1906, o plano foi incrementado.

O Brasil iria adquirir agora três Dreadnoughts, navios com canhões revolucionários. Algo que causou apreensão não apenas dos vizinhos (a Argentina se apressou em encomendar dois), mas também dos próprios ingleses, que temiam que o Brasil fosse um intermediário da compra para uma potência antagônica, a Alemanha.

Por falar em Alemanha, o Império Alemão foi o selecionado para equipar o Exército Brasileiro com os canhões Krupp, as "mais maravilhosas armas que a humanidade já viu" — apesar de estranho, era assim o anúncio da empresa.

Com isso, para defender o Rio de Janeiro, então capital do país, decidiu-se que deveriam ser instalados obuseiros na Praia de Copacabana, protegendo a entrada da Baía de Guanabara. Por sugestão dos técnicos da própria Krupp, o marechal Hermes da Fonseca, presidente da época, optou por "canhões de grosso calibre, tiro rápido e longo alcance", que possuíam maior poder de fogo em relação aos obuseiros inicialmente pensados.

Mas qual o resultado desta história? E de que forma esse aumento de poder de fogo do Brasil se relaciona com os atuais projetos estratégicos das Forças Armadas?

O que aconteceu?

Tanto os dreadnoughts (o tipo predominante de navio de guerra no início do século 20) quanto os canhões do Forte de Copacabana possuem sua importância histórica — ainda que nem tudo tenha saído conforme o planejado. O marechal Rommel costumava dizer que "Nenhum plano sobrevive ao primeiro contato com o inimigo". Mesmo que não seja o caso, o aforismo cabe em nossa história, pois Argentina e Chile, os "inimigos em potencial" — o grande motivador para as compras das Forças Armadas de então —, acabaram sendo ofuscados por uma guerra maior.

Canhões no Forte de Copacabana / Crédito: Licença Creative Commons via Wikimedia Commons

Não por qualquer guerra, mas pela Primeira Grande Guerra — o conflito que, em tese, viria para acabar com todos os demais. O fato de as intrigas sul-americanas terem sido afetadas pela Grande Guerra é uma prova de como, mesmo afastado do centro do problema, a geopolítica reverbera por aqui.

Quando os dois primeiros dreadnoughts ficaram prontos, em 1910 — recebendo a designação de Classe Minas Geraes (com "e" mesmo) — os problemas econômicos haviam se intensificado, sobretudo pelo declínio do ciclo da borracha. O terceiro foi vendido ainda em 1911 para o Império-Otomano, um dos protagonistas da guerra que começaria três anos depois.

Já os canhões do Forte chegaram em 1914. Por uma questão de meses, não ficaram retidos na Alemanha, outro grande protagonista do conflito. Esse é um dos riscos de se comprar materiais de países em beligerância, dependendo de como as coisas andam por lá, tudo é direcionado para o esforço de guerra.

+ Mundo de inovações: A história da pólvora em 10 momentos marcantes

Projetos estratégicos

Uma Guerra Mundial e uma Guerra Fria depois, chegamos ao século 21. Como você já pode ter lido aqui nesta coluna, o 'Fim da História', obra de Francis Fukuyama e a sonhada "era de paz e estabilidade" pós-Guerra Fria duraram pouco mais de uma década, com os sonhos de esperança de um futuro pacífico sendo destruídos pelo ataque às Torres Gêmeas em 2001.

Assim sendo, principalmente depois da crise de 2008 e do início do fim do unipolarismo norte-americano, diversos países — entre eles o Brasil — começaram a perceber que não podiam mais contar apenas com a arquitetura de paz e segurança vigente, pois essa se tornara deveras frágil. É então, nesse momento, que surgem (no caso brasileiro) os "projetos estratégicos das Forças Armadas".

Na definição do próprio Ministério da Defesa, os projetos estratégicos nada mais são que "a aquisição e modernização de material de emprego militar, o desenvolvimento de novos sistemas de armas e o fortalecimento da base industrial de defesa". Ou seja, os formuladores de política perceberam que, assim como no passado, se o mundo estava "esquentando", então era (e ainda é) melhor se preparar para o que vem por aí.

À semelhança do que ocorrera no início do século 20, quando as Forças Armadas foram contempladas com meios de garantir seu poder de fogo, um século depois, a história se repete. Cada Força foi consultada sobre quais eram suas prioridades e, apesar de possuírem vários eixos, todas definiram um principal.

A Marinha fez uma opção pela frota de submarinos, desenvolvendo, em parceria com a França, quatro submarinos de propulsão convencional e a tecnologia para um de propulsão nuclear. O Exército optou por mudar sua doutrina, passando de unidades motorizadas (caminhões) para unidades mecanizadas (veículos blindados), além de investir maciçamente no programa de lançador de foguetes ASTROS.

Por sua vez, a Força Aérea traçou dois eixos em torno de suas duas principais áreas: aviação de caça e de transporte. Usando a Embraer, empresa brasileira (sinônimo de excelência em aviação), a FAB fez uma parceria com a Suécia para a produção dos aviões de caça Gripen; concomitante, desenvolveu praticamente sozinha os aviões de transporte C-390.

Avião do modelo C-390 / Crédito: Licença Creative Commons via Wikimedia Commons
Sistema de foguetes ASTROS / Crédito: Foto por Ministério da Defesa via Wikimedia Commons

Imprevistos

É claro que, assim como no passado, nem tudo sai conforme o planejado. Com as sucessivas mudanças de governo nos últimos dez anos — muitas motivadas, também, por crises econômicas —, alguns projetos sofreram atrasos, enquanto outros foram descontinuados, sendo retomados ou postos em prática novamente apenas em 2023.

Quase 20 anos depois da idealização, muitos cenários, entre os mais assustadores previstos pelos planejadores em 2008 (pandemia, novas crises financeiras, guerras totais), se concretizaram. Contudo, desta vez com um elemento a mais: a ascensão dos totalitarismos. Tal qual o mundo do pós-Primeira Guerra, o de hoje vive o ressurgimento da extrema-direita.

Também as tecnologias, que eram vanguardistas no final dos anos 2000, hoje já são corriqueiras, o que demanda ajuste nos planos. Ademais, com sociedades inteiras se rearmando, há uma corrida pelos mesmos fornecedores. O medo de que, assim como quase aconteceu no caso dos canhões Krupp, uma guerra lá fora interfira na entrega de material aqui, é algo real.

Um exemplo é o que aconteceu recentemente com uma compra do Exército de canhões autopropulsados. Afora as disputas políticas na cena externa, a empresa escolhida, israelense, "ganhou, mas não levou". O medo de que o conflito em Gaza possa afetar o fornecimento de materiais e peças fez com que o processo de compra fosse suspenso.

Seja com os projetos estratégicos ou com iniciativas adicionais, o investimento em defesa não é uma prerrogativa exclusiva do Brasil. Indo além do Velho Mundo, aqui ao lado, a Argentina também foi às compras — algo que alarmou os militares brasileiros. Soa familiar?

O ensaísta norte-americano Mark Twain dizia que "a História não se repete, mas, por vezes, rima". Em um mundo em reconcerto, onde há mais conflitos e muros do que em 1991, no fim da Guerra Fria, o poder de fogo está mais em voga do que nunca.

Finalizo este artigo agradecendo aos militares da Chefia de Material do Comando Logístico do Exército e do Ministério da Defesa, que contribuíram no conteúdo deste primeiro artigo, e também a você, leitor que sempre me acompanha.


*Ricardo Lobato é sociólogo e mestre em economia, oficial da reserva do Exército Brasileiro e consultor-chefe de política e estratégia da Equilibrium — consultoria, assessoria e pesquisa @equilibrium_cap.