Muitos estão se percebendo mais felizes em relações abertas, embora enfrentem desafios e frustrações
Na escola aprendemos com o poeta Luís Vaz de Camões a suspirar alto pelo amor romântico e a compreendê-lo como um “querer estar preso por vontade”. Ainda é assim para muita gente satisfeita em ser par. Porém, velho Camões, nesse inventivo século 21, cada vez mais pessoas se queixam da exclusividade. Laço por demais atado. Elas alegam que o amor pode ser elástico e poroso, sem deixar de ser amor.
É tudo muito novo, poeta. Nem mesmo os amantes sabem ao certo até onde podem ir. Tateiam essas vielas com mãos curiosas. Separam as agulhadas suportáveis das intoleráveis; identificam as práticas que fornecem oxigênio para os quereres de cada um, as que se ancoram na honestidade e as que, para máxima surpresa, reacendem a chama dopada pela previsibilidade da vida conjugal.
Basta dar um rápido passeio pelas redes sociais para sentir a temperatura do debate monogamia versus não monogamia. “Questionar essas novas modalidades de relações amorosas é questionar a própria noção de amor”, observa a psicanalista e escritora Ana Suy, autora de A Gente Mira no Amor e Acerta na Solidão (Paidós), entre outros títulos.
Por muito tempo, casar-se por amor significou nos agarrar à parte que supostamente nos falta até o fim dos nossos dias. Vai que, sem o contrato monogâmico, o amor escape pela primeira fresta na janela. Acontece que papel passado, promessa de fidelidade e aliança não garantem a sobrevida do desejo de permanecer juntos. Ainda mais blindados às brisas que sopram lá fora. Adultos sabem disso. Como também que, ao longo dos anos, mudamos, passamos a querer outras coisas, a ter outras necessidades, a pensar outros pensamentos.
“O medo da fluidez dos desejos e sentimentos atravessa toda a monocultura dos afetos e da sexualidade. Há uma expectativa de que só é bom e verdadeiro aquilo que é estático e ‘para sempre’”, identifica Geni Nuñez, ativista indígena guaraní e mestre em Psicologia Social. Há cerca de dez anos, ela se reconhece não monogâmica e, desbravando essa trilha com o suporte de estudos, experimentações e trocas, notou o quanto ciúme, controle e posse ainda assombram relações que se querem livres.
Por mais pronto que alguém se sinta para se desgarrar das fôrmas, a desconstrução de um sistema entranhado em nós não acontece num impulso nem está imune a confrontos com nossos preconceitos e resistências. E lá está mais para uma maturação que, entre avanços, trancos e recuos, vai mostrando que outros jeitos de viver o afeto são legítimos e confiáveis. “É possível amar e ser amado na concomitância, na coletividade, no transbordamento”, defende Geni.
De toda maneira, precipitado seria sair por aí dizendo que um modelo é mais evoluído que o outro; que em um há menos brigas do que no outro. Viver uma história de amor, tenha ela o formato que tiver, requer empenho para se construir algo que valha a pena e maleabilidade para ultrapassar os trechos pedregosos. “Estar numa relação aberta pode trazer tantos conflitos quanto uma relação monogâmica”, frisa Claudia Petry, pedagoga com especialização em Sexologia Clínica e membro da Sociedade Brasileira de Sexualidade Humana (SBRASH).
Vamos imaginar um casal monogâmico que resolve arejar a relação. A partir dali, será permitido ficar com várias pessoas ou só com uma? Quanto tempo será dedicado aos outros encontros? O que será compartilhado dessas experiências e o que será mantido em privacidade? Pode se apaixonar ou melhor se afastar caso o vínculo se adense? Justamente por esse tipo de arranjo não vir com uma moldura pré-fabricada, a conversa franca se faz ainda mais necessária. Tem quem opte por estabelecer de saída o que será aceito ou não, ao passo que outros preferem “legislar” à medida que as situações e seus impactos se apresentem.
“Regras e limites devem ser descritos, discutidos e definidos somente pelo casal envolvido. Diálogo aberto e o mais livre possível de crenças e preconceitos leva a decisões mais assertivas. Mas preparem-se para revê-los sempre, pois relações não monogâmicas não são imutáveis”, recomenda Claudia. O que causa desconforto em um pode ser ínfimo para o outro, e isso, muitas vezes, será uma descoberta, uma revelação da própria ousadia de provar do novo. “Um relacionamento amoroso pressupõe que você se experimentar naquilo que você não sabe de si na relação com o outro”, reitera Ana Suy.
Não gostei. Fiquei abalado. Ultrapassei meus limites. Quero recuar. Ou, então, estou mais leve. Sinto que agora posso ser eu mesmo. Nossa relação se aprofundou. Viviane Noda, especialista em negócios regenerativos, topou esse desbravar após anos de exclusividade, por sugestão de seu parceiro da época. Muito antes de o assunto ser ventilado na internet.
“Como nós acumulávamos mágoas e decepções, a meu ver essa era a última possibilidade de dar certo. E também fiquei curiosa para conhecer outras pessoas, já que esse desejo sempre existiu”, ela conta, admitindo que se arremessou sem ter noção de quais eram seus limites e até onde chegaria. “Percebi que eu ficava desconfortável em contar, mas ele, não. Então, fomos entendendo quais eram os acordos para construirmos um lugar de confiança e conforto”, diz.
“Em qualquer tipo de relacionamento amoroso, quando a gente coloca todas as fichas num único jeito de dar certo, é a forma mais perigosa de se relacionar com alguém”, alerta Ana. Não raro, ela conta, pessoas aderem a esses novos pactos achando que vão resolver seus problemas conjugais, uma vez que gozarão de maior liberdade para se nutrirem de experiências estrangeiras àquele elo. Só que, muitas vezes, acabam se enganando. Por outro lado, aponta Claudia, estar numa relação monogâmica saudável e optar por abri-la pode ser enriquecedor para o casal que assim escolhe. Mais interessante do que se manter fechado e infeliz no molde convencional.
Pois Viviane viveu oito anos de não monogamia. Nesse período, ela chegou a se relacionar com outra pessoa de maneira fixa, questionou-se sobre qual era o sentido daquela escolha, desgastou-se, sentiu-se desamparada e, por fim, percebeu que o amor livre soava ilusório porque tudo tem limites: nós, o nosso emocional, o nosso tempo, a nossa energia, a nossa grana. “Acho que uma relação não monogâmica pode dar certo, mas a maioria das pessoas ainda não descobriu qual é o limite para não abrir espaço para o desrespeito e para o individualismo excessivo que nos impede de olhar para o outro”, conclui.
Furar combinados fere. Em 2018, Sofia estava numa relação aberta e seu parceiro Fernando (ambos nomes fictícios para preservar a identidade do casal) não tinha entendido que não poderia ter o mesmo grau de envolvimento com outra mulher. Aconteceu. Ela não gostou. O laço acabou se dissolvendo adiante. Mesmo assim, não se vê numa relação selada, porque compreende que nós não controlamos o desejo do outro por diversificar suas experiências afetivas.
Além disso, não abdicaria do bem-estar que encontrou ao se livrar da culpa. Mas e se um tiver condições de sair mais que o outro? Não seria injusto? “Acho importante as pessoas não disputarem com seus parceiros. Hoje eu escolho fazer o que acho melhor neste momento e fico bem comigo mesma. Foi um grande passo”, esclarece Sofia.
Há um ano ela propôs a Fernando que eles ficassem juntos com liberdade para se envolverem com outras pessoas, se quisessem. Aquilo era novíssimo para ele. “Precisei de meses para desconstruir a questão do ciúme, lendo, refletindo, analisando”, diz Fernando. “Ainda estou nesse processo, mas entendi que o mais importante é como a gente está cultivando a nossa relação, independentemente de ficarmos com outras pessoas ou não.” Maravilhado, confessa ainda que esse laço é, de longe, o mais pulsante que ele viveu até hoje.
Porém, mesmo depositando no amor livre nossas mais nobres intenções, a felicidade não pode ser garantida. Cada passo embute o risco de sermos surpreendidos pelo imponderável. Viver é saltar com a coragem dos trapezistas em busca de mais vida. São tantas as nuances desse debate que, a certa altura, parece que estamos tateando mesmo um labirinto. No entender da psicanalista Ana Suy, a dificuldade maior de se sustentar a relação amorosa reside no fato de que o amor, de um jeito ou de outro, fracassa.
“O que sustenta a existência do amor enquanto fantasia de que alguém irá me completar em algum momento é a constatação de que isso escapa, por mais que eu encontre alguém que me atravesse e me modifique. É necessário ser assim para eu desejar que isso aconteça de novo”, ela expõe. Afinal, lembra Ana, somos seres desamparados e precisamos de um outro. Por isso inventamos mil maneiras de o amor continuar existindo.
Por Raphaela de Campos Mello – revista Vida Simples
É jornalista e se fascina com a engenhosidade de Eros para promover o amor.