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Como a cerveja fez a humanidade caminhar

Devemos a ela grandes avanços da ciência e tenologia

Rodrigo Casarin Publicado em 17/03/2017, às 14h00 - Atualizado em 19/10/2018, às 13h22

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Há mais coisas entre a borda e a bolachinha do que sonha nossa vã filosofia - Shutterstock
Há mais coisas entre a borda e a bolachinha do que sonha nossa vã filosofia - Shutterstock

Você pode até não gostar de cerveja, mas saiba que ela é valiosa para a humanidade. Reclame dos bêbados, dos motoristas inconsequentes, dos malas que choram abraçados e fazem juras de amor eterno após algumas garrafas... Queixe-se das pessoas, mas não maldiga a bebida – que teve importância ímpar na história do Homo sapiens.

Gelada ciência

Para começo de conversa, a medicina moderna, ancorada na microbiologia, teve início graças à cerveja. Em 1864, o francês Louis Pasteur desenvolvia pesquisas para o mercado cervejeiro quando detectou que seres microscópicos habitavam a bebida e eram os principais responsáveis pela sua deterioração. A partir da constatação, desenvolveu um método para eliminar esses desagradáveis intrusos: a pasteurização, que mais tarde seria utilizada em diversas outras indústrias, como a do leite. A repercussão da descoberta foi imediata. “O cirurgião britânico Joseph Lister aplicou os conhecimentos de Pasteur para eliminar os microorganismos vivos em feridas e incisões cirúrgicas. Em 1871, o próprio Pasteur obrigou os médicos dos hospitais militares da França a ferver todo o instrumental e as bandagens antes de serem utilizados nos pacientes”, escreve Maurício Beltramelli no livro Cervejas, Brejas e Birras. A descoberta também serviu de base para que o cientista desenvolvesse a hipótese de que seres humanos adoecem por causa de germes.

A relação entre cerveja e saúde, aliás, vem de muito antes do século 19. Pesquisas recentes apontam que ossadas com mais de 3 mil anos apresentam doses consideráveis de tetraciclina, antibiótico descoberto oficialmente apenas em 1948. Para que a substância ainda permaneça nesses ossos, ela precisaria ter sido consumida em grandes quantidades e durante um longo período. Cientistas deduziram, então, que deveria fazer parte de algum produto pertencente à dieta cotidiana. A partir de pesquisas baseadas em alimentos da época, concluíram que o único lugar de onde a tetraciclina poderia vir seria da cerveja. Era a bebida já servindo como remédio – não só da alma, mas do corpo –, tanto que o grego Dioscórides, que viveu de 40 a 90 e é considerado o pai da farmacologia, costumava receitá-la para seus pacientes.

Foi na Idade Média que a cerveja teve um papel mais decisivo para o ser humano. Em uma época em que as fontes de água de diversos locais da Europa eram um risco eminente para a saúde, principalmente pela ausência de saneamento básico e pela proliferação da cólera, consumir a bebida fermentada representava segurança. Mesmo quando feita com água poluída, seu processo de produção – com fervura, fermentação e, consequentemente, a presença de álcool – é suficiente para matar a maior parte dos germes malignos.

Modernidade ébria

Até algumas inovações tecnológicas ocorreram graças à cerveja. Talvez a que esteja mais associada a ela seja a refrigeração artificial. Sim, a geladeira existe justamente por causa da bebida. O sistema foi desenvolvido em 1894 pelo alemão Carl von Linde a pedidos da cervejaria Guinness, que queria fabricar suas cervejas ao longo de todo o ano, independentemente das condições climáticas. Antes disso, a produção na Europa costumava acontecer apenas durante os meses mais frios.

Um dos primeiros destinos da máquina a vapor, criada em 1765 por James Watt e um dos pilares da Revolução Industrial, também foi industrializar processos da fabricação de cerveja. Ainda na indústria, coube às fabricantes de bebidas o desenvolvimento de máquinas engarrafadoras, inovação que trouxe uma consequência indireta extremamente relevante: a diminuição drástica do trabalho infantil nos Estados Unidos, onde crianças eram responsáveis pelo envase dos produtos.

A tecnologia mais importante associada à cerveja vem da Antiguidade e está tão incorporada ao dia a dia que parece sempre ter existido: a escrita. Segundo Stephen Tinney, especialista em textos antigos, os primeiros registros escritos pelo homem estão diretamente ligados à manutenção de receitas e à logística de distribuição da cerveja, que, na escrita cuneiforme, é designada por mais de 160 pictogramas.

Indo ainda mais na direção dos primórdios da civilização, a bebida fermentada ajudou a forjar o homem moderno. Se o nomadismo acabou por causa da agricultura, é impossível ignorar que o cultivo dos grãos visava principalmente produzir de maneira regular pão e cerveja – que estavam na base da alimentação humana. “Fazer cerveja era uma maneira de conservar os grãos. O cereal apodrece, mofa, mas, quando fermentado, em função do álcool e do pH baixo, não desenvolve nada que possa matar o ser humano. Então, a bebida pode ser guardada por mais tempo do que o grão. Tanto o pão quanto a cerveja eram formas de conservar o alimento, por isso são considerados os catalisadores da civilização”, diz Kathia Zannata, mestre cervejeira e professora do Instituto da Cerveja.

A cerveja desempenhou papel de protagonista nas refeições ao longo de milênios. Para levantar as pirâmides egípcias, os faraós recompensavam seus pedreiros diariamente com 4 litros da bebida. Mais do que criar um estado de leve torpor, o objetivo era que todos pudessem se nutrir – na Alemanha, ainda hoje, a cerveja é conhecida como “pão líquido”. “Elas alimentavam porque, mesmo após fermentadas, continham muitos açúcares provenientes dos cereais”, diz Kathia. Com isso, estima-se que, para construir a pirâmide de Gizé, foram necessários quase 876 milhões de litros da bebida. Muitos anos depois, a cerveja continuaria sendo encarada de maneira semelhante: muitos monges, durante períodos de jejum, tinham autorização para se alimentar por meio da ingestão da bebida.


Saiba Mais
Cervejas, Brejas e Birras, Maurício Beltramelli, Leya, 320 págs
Larousse da Cerveja, Ronaldo Morado, Larousse, 360 págs