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Roman Matz: o ano que mudou sua vida

Depois de participar da Guerra do Vietnã, não conseguiu se readaptar à vida nos Estados Unidos. Veio parar no Brasil, onde vive há mais de 30 anos

Danila Moura Publicado em 01/07/2007, às 00h00 - Atualizado em 23/10/2017, às 16h36

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Aventuras na História - Arquivo Aventuras
Aventuras na História - Arquivo Aventuras

Igual às brigas entre gangues de rua de Nova York. Era assim que Roman Stefan Matz imaginava a Guerra do Vietnã, conforme escreveu para um jornal local em 1968, poucos meses antes de ser enviado para a Indochina. Na época, o jovem ucraniano de 19 anos, recém-convocado pelo Exército americano, não tinha noção da violência que iria encontrar no Vietnã. Integrante do 25º Batalhão de Infantaria, recebeu a tarefa de escrever para o jornal das forças americanas depois de mostrar a um superior sua habilidade em redigir textos. Na função de repórter do Exército, viajou livremente pelo território vietnamita, registrando mais de 300 imagens, em especial o poderio de fogo americano. Esteve diversas vezes na linha de frente, já que, apesar de seu ofício especial, não foi poupado de usar armas. As fotos, que guarda até hoje, flagraram também o cotidiano da população vietnamita, principalmente crianças (já que somente elas e os idosos continuaram nos vilarejos), e momentos de descontração no lado ianque. Suas lentes estavam proibidas de captar imagens de americanos mortos ou feridos.

Nesta entrevista, Matz conta em detalhes o ano que passou no Vietã, justamente no período mais violento da guerra, durante a célebre Ofensiva do Tet – uma série de ataques dos vietcongues a 36 cidades do sul do Vietnã entre 30 de janeiro de 1968, início do novo ano lunar chinês (o Tet), e junho de 1969. A experiência foi fundamental em sua vida na volta aos Estados Unidos e, depois, na decisão de viver no Brasil, onde está desde 1973. Morador de São Paulo, Matz teve um restaurante caseiro de comida vietnamita. Atualmente, trabalha com venda de artigos de arte adquiridos em viagens pelo mundo. Casado três vezes, teve dois filhos no Brasil – o mais velho, Dylan, serviu o Exército americano e lutou ano passado no Iraque.

Como foi sua chegada ao Vietnã?

No dia 8 de abril de 1968, saí da Califórnia para a base aérea em São Francisco, onde peguei um avião com destino ao Vietnã. Cerca de 24 horas depois, estávamos lá. Lembro-me bem do cheiro ruim, insuportável em Saigon. Minha recepção foi feita pela incineração a céu aberto de toneladas de fezes de soldados. Ninguém chegava com algum preparo ou treinamento específico para a guerra. Davam quatro ou cinco dias de um curso de “como lutar numa guerrilha”, e pronto (risos). Fomos levados a uma área repleta de minas e ensinaram-nos como visualizá-las. Depois, fui encaminhado para a 25ª Divisão, para atuar como mecânico de tanques. Eu detestava mecânica. Depois de mostrar meus textos a um sargento, virei repórter.

Como foi ser repórter do exército?

Basicamente, eu cobria a construção de hospitais, casas e escolas para o povo vietnamita, atividades militares e notícias de ataques aos inimigos. Era proibido tirar fotos de soldados mortos ou feridos, de tanques ou bases nossas destruídas. Descartavam o negativo na hora. Por trabalhar junto aos oficiais, tive acesso a fotos sigilosas de soldados americanos usando no pescoço colares com orelhas ou dedos de vietnamitas. Era terrível. O lado bom é que me envolvi com a população local, aprendi um pouco o idioma e me identifiquei muito com eles. Até namorei algumas vietnamitas. Eram lindas!

Surpreendeu-se com as táticas de guerrilha usadas pelos vietcongues?

Eles eram geniais, aproveitavam até nosso lixo para fazer armadilhas. Sabendo que muitos soldados americanos costumavam chutar latinhas vazias de refrigerante que encontravam pelo chão, eles colocavam explosivos nelas. Mas a pior cena que presenciei foi em Dau Tiang. Fui destinado para lá depois de discutir com um sargento que transferia para regiões mais perigosas os desafetos e soldados não-treinados que haviam tido problemas com autoridades. Ele me disse que, se eu não estava gostando daquilo, que colocasse meu nome na lista. Foi o que fiz (risos). Em Dau Tiang, nosso batalhão acabou cercado por vietcongues e ninguém conseguia entrar ou sair. Quando atravessávamos o campo para pegar comida, atiravam foguetes. Ficamos um mês nessa situação. Os alimentos estavam chegando ao fim, então um grupo resolveu ir até os comboios de suprimentos, a uns 20 quilômetros. Caíram numa armadilha. Munidos de metralhadoras 51 mm, os vietcongues mataram cerca de 200 homens em três horas. Pelo rádio ouvimos seus gritos de socorro. Foi arrasador. Demoramos três dias para retirar todos os corpos.

Qual foi sua missão mais perigosa? Chegou a ser ferido?

Participei da missão mais perigosa quando fui para o grupo de reconhecimento, que averiguava o terreno e depois acionava reforços – estes geralmente demoravam mais de cinco horas para chegar. Cumpríamos o papel de iscas. Fui transferido para lá depois de brigar com um tenente. Eu já tinha passado por duas cortes marciais por tentativa de fuga. Na primeira vez, foi porque não agüentava mais ver cenas de americanos estuprando crianças e mulheres. Era revoltante. Reclamei e ouvi do juiz o seguinte: “Filho, a guerra é o inferno”. Na segunda vez, quis fugir de uma missão suicida. Enfim, a maioria dos integrantes do grupo de reconhecimento teve problemas com os superiores. Certo dia, avistamos barricadas dos inimigos. Entramos devagar, um colega ia lançar uma granada, quando foi atingido por um tiro. Ficou ajoelhado, e todos ao redor em silêncio, as armas paradas. A bala abriu sua cabeça, o cérebro ficou exposto. Ele ainda estava vivo, com os olhos em choque. De repente, houve um flash. Fomos atingidos por um foguete, e fui arremessado a mais de três metros do chão. Decidimos bater em retirada. Eu e outro soldado carregamos os demais nas costas. Foi quando percebi que meu braço direito estava imobilizado. Estilhaços haviam entrado no ombro. Não deu para sentir na hora. O choque é tamanho que é complicado identificar a origem da dor.

Os soldados usavam drogas?

Droga era uma necessidade. Fumar maconha era um jeito de baixar a adrenalina, a tensão e conseguir descansar. Só nos permitiam quatro horas de sono. Muitos soldados usavam morfina, graças aos paramédicos. Heroína, maconha e cocaína eram trazidas da Tailândia e do Laos. Os soldados lutavam sob o efeito de várias substâncias. Claro, não todos, mas um grupo significativo.

Em algum momento imaginou que os Estados Unidos perderiam a guerra?

Eu não via meio de os Estados Unidos ganharem. O inimigo passava o tempo todo escondido no chão. Enquanto você atirava num bunker a dez metros de distância, podia ser surpreendido pelo inimigo surgindo bem nas suas costas.

Muitos voltam da guerra traumatizados. Você teve seqüelas emocionais?

Todos que estiveram na linha de frente ficaram traumatizados. Você pisava numa mina e via algum amigo voando pelos ares. Várias vezes tivemos de recolher pernas e braços espalhados pelo chão e devolver ao ferido. Cachorros comiam pedaços de carne humana. Era um horror.

E a volta ao lar? Como foi recebido?

Por ter passado pelas cortes marciais, não recebia mais soldo. Voltei para os Estados Unidos sem um centavo no bolso, além da sensação de ter perdido minha juventude. Não tinha mais razão para ficar lá, apesar de finalmente ter ganhado nacionalidade americana [Matz nasceu na Ucrânia e foi criado em solo americano, mas era apátrida, pois seus pais haviam entrado nos Estados Unidos ilegalmente]. Tentei cursar Literatura, mas não conseguia me concentrar na faculdade em função do estresse pós-traumático. Ocultava minha passagem no Vietnã, pois tínhamos a fama de psicóticos, assassinos de crianças. Dois anos depois, decidi largar tudo e viajar pelo mundo.

Como veio parar no Brasil?

Foi em setembro de 1973. Estava no Paraguai e meu destino era o Chile. Tinha amigos lá e simpatizava com os ideais esquerdistas de Salvador Allende. Mas, pelo rádio, soubemos da morte dele e da instauração do regime autoritário. O único lugar que restava para ir era o Brasil. Parei em São Paulo e daqui nunca mais saí. Tive dois filhos com uma brasileira. O mais velho, Dylan, alistou-se no Exército americano e atuou agora no Iraque.

E como foi a participação dele?

Ele ficou por volta de seis meses no Iraque, em 2006. Trabalhava numa base de pára-quedistas. Sua motivação foi mais financeira: foi para custear seus estudos numa universidade americana.

Quase 40 anos depois, qual é a lembrança marcante que tem da guerra?

É a do meu último dia no Vietnã. Cheguei à base onde embarcaria no vôo de volta e recebi a notícia de que um de meus melhores amigos tinha morrido. Não acreditei, pois três horas antes eu tinha me despedido dele. Ele pisou numa mina. Estava sem o nariz, o corpo esfacelado, os intestinos à mostra. Chorei muito e prometi que tentaria falar com os pais dele nos Estados Unidos. Infelizmente, não os encontrei.