Apesar de ter surgido na elite aristocrática, o gênero ajudou a popularizar a cultura europeia. Nos séculos 17 e 19, teve um papel semelhante ao do cinema e da televisão, nos dias de hoje
Em setembro de 2007, quando o tenor Luciano Pavarotti morreu em Módena, na Itália, vítima de câncer, os italianos caíram em prantos, junto a fãs de todo o mundo. Não apenas porque "ele tinha um timbre de voz inconfundível ou uma extensão vocal completa", segundo o amigo espanhol Plácido Domingo, que fez com Pavarotti e José Carreras a série de concertos "Os Três Tenores". Mas porque, no fundo, o que Pavarotti conseguiu, em pleno século 20, foi dar ao público a sensação de "voltar" dois ou três séculos na História. Um tempo em que as plateias eram levadas às lágrimas e saíam aos tabefes, como torcedores de futebol inflamados de um clássico em que jogavam Giuseppe Verdi (1813-1901), de um lado, e Richard Wagner (1813-1883), do outro.
Entre os séculos 17 e 19, o teatro musical era o espetáculo popular por excelência. "É no teatro musical que a cidade se encontra: o governo, a aristocracia, a burguesia, a classe média e os pobres", escrevem os historiadores Fernando Fraga e Blas Matamoro, no livro A Ópera. A fama de requintada e elitista se deve às origens do gênero, que nasceu como um entretenimento nobre das cortes europeias.
Durante muito tempo, a ópera foi suntuosa e restrita a efemérides da aristocracia. Era encenada em celebrações de bodas, coroações, carnavais, batizados de príncipes ou comemorações de batalhas. "Era um luxo exacerbado que fazia sentido, pois a vida barroca em si era muito teatral", afirma Robson Leitão, professor do Centro de Artes da Universidade Federal Fluminense. "Servia como o oposto à miséria dos camponeses e súditos, assolados por guerras e doenças."
Mas quando nasceu a ópera? A tragédia grega já tinha musicalidade. Na Idade Média, artistas de jograis e comédias cantavam pelas ruas. A própria Igreja se valeu de cantos gregorianos. A rigor, contudo, a ópera surgiu como resultado de um grupo de estudos sobre a Antiguidade, formado por artistas e professores (a chamada camerata), na década de 1570, em Florença, na Itália. "Os nobres faziam questão de patrocinar reuniões com nomes importantes das artes e das ciências", diz Robson. Vicenzo Galilei, pai do astrônomo Galileu, por exemplo, reunia-se em torno dos condes Giovanni Bardi e Jacopo Corsi.
Em 1597, o músico Jacopo Peri, também vinculado a Corsi, compõe Dafne, uma mistura de teatro e canto que foi apresentada na corte florentina. Mas, como boa parte de Dafne se perdeu, alguns estudiosos consideram Eurídice, do mesmo autor, a primeira ópera da História. Ela foi encomendada três anos depois, para o casamento dos franceses Henrique IV e Maria de Médici. Do ponto de vista dramático, no entanto, a pioneira é Orfeu, de Claudio Monteverdi (1567-1643), estreada em 1607, em Veneza. Na obra, apareceram as árias e os coros, no lugar dos recitativos, e algo que se pode chamar de orquestra, pela primeira vez com trombones, flautas, violinos e harpa. "Monteverdi realiza o sonho da camerata. A música não é simplesmente um adorno, nem a palavra é apenas a recitação de um poema com a ajuda de algumas notas musicais", observam os pesquisadores Fernando Fraga e Blas Matamoro.
Mistura de classes
Orfeu foi sucesso de crítica, mas teve pouco público. A monarquia, então, decidiu abrir as óperas a todas as classes sociais. O que só aconteceu, na prática, durante o carnaval de 1637, no Teatro de San Cassiano, de Veneza, com Andrômeda, de Francesco Manelli (1595-1667). A partir daí, o ingresso passou a ser pago, a ópera virou um empreendimento comercial e os artistas ganharam prestígio e fama. Como as mulheres eram proibidas de cantar nas igrejas (até alguns instrumentos, como o violoncelo, eram considerados impudicos devido a suas curvas sensuais), foi a ópera quem promoveu o canto feminino. Até então, as sopranos eram substituídas por homens com voz de mulher (os varões). Isso se conseguia por meio da castração de meninos com aptidão vocal, uma técnica admitida pela Igreja Católica por quase 400 anos, de 1539 a 1922.
Para atrair o público aos teatros, apareceram artifícios como a "fanfarra". Com instrumentos de sopro, executava-se no início das apresentações a melodia característica da família nobre que dominava a cidade. É a origem da abertura ou prelúdio. Já em A Coroação de Popeia, de 1642, surge um momento orquestral no meio da ação, para troca de cenários e figurino. Trata-se do interlúdio, que, com o tempo, ganharia autonomia na figura das óperas-bufas. Outra inovação dessa peça é que ela já não se baseia em lendas, mas em um fato histórico: os amores reais entre Popeia e o imperador romano Nero.
No século 18, surgiram os empresários e as sociedades filarmônicas, que promoviam concertos em mansões ou cafés. Nessa época, os teatros são ampliados, como o San Carlo, de Nápoles, o Bolshoi, de São Petersburgo, e Tulherias, em Paris. "E, agora, os arquitetos se preocupam mais com a acústica", diz Paulo Mugayar Kuhl, professor de História da Arte da Universidade Estadual de Campinas. A formação musical passou a integrar o ensino particular e deu origem à tradição, nas famílias, de ter sempre um piano em casa. Parte dessa grande atividade que agitava o gênero, em 1751, surgiu graças à figura do libretista, autor dos libretti (livrinhos, em italiano), as adaptações impressas com os diálogos, as letras e as movimentações cênicas. De certa forma, esses livrinhos contribuíram para fazer do italiano a língua internacional da gênero.
A ópera passou por duas grandes reformas: no século 18, com Christoph Gluck (1714-1787), e no século 19, com Richard Wagner. Ambos defendiam o retorno às formas clássicas da tragédia grega (mesma discussão que originou a ópera, em Florença), tentando restaurar características do passado e quebrar paradigmas.
Pop ma non troppo
Foi em meio às criações de Wolfgang Amadeus Mozart que Gluck iria propor a primeira reforma radical, contra a "ópera séria" barroca. Recitativos a secco e efeitos vocais miraculosos já não eram bem-vindos, e as aberturas ficaram mais curtas. Após a Revolução Francesa, no Romantismo, a ópera sofreu sua segunda transformação, capitaneada por Richard Wagner (1813-1883). Sob influências românticas, vai tomar ares nacionalistas. Ou seja, tanto vai cantar o triunfo da raça germânica quanto apoiar o patriotismo húngaro, tcheco e polaco.
Nessa altura, a Europa já tinha mais de 400 teatros, onde aconteciam de alianças políticas a casamentos. Com o gás e a eletricidade, os cenários se sofisticaram e as sinfonias começaram a ser tocadas nos cafés. É claro que as classes não se misturavam. Nos assentos mais baratos dos teatros, as pessoas ficavam de pé ou levavam seus banquinhos, enquanto a elite ocupava os camarotes. As temporadas viajaram à América, onde foram inaugurados o Metropolitan (1883), em Nova York, o Cólon (1908), em Buenos Aires, e o Municipal (1909), do Rio de Janeiro.
Avó do cinema
Formalmente, o romantismo acaba quando aparece a escola verista, na Itália, em 1890, inspirada no realismo. Seu maior expoente é Giacomo Puccini (1858-1924), autor, entre outras, da ária Nessun Dorma. Dessa escola, a opereta francesa ("pequena ópera") do século 19, cômica e mais ligeira, foi muito popular na América. Para algumas fontes, influenciou até o cinema. Os primeiros longas-metragens, no início do século 20, eram uma espécie de óperas sem som. Por exemplo, Intolerância (David Griffith, 1915, EUA). Por isso, muito natural que, com a invenção do cinema sonoro, trilhas clássicas de Hollywood fossem compostas por músicos imigrados da Europa.
Após a Segunda Guerra Mundial, a ópera perde público para o rádio e o cinema. Mas resistiu, com seus mais de quatro séculos. Entre os anos 40 e 50, torcidas organizadas combatiam ferozmente (indo até os teatros vaiar), divididos entre as sopranos Renata Tebaldi e Maria Callas. Se a primeira era a técnica perfeita, Callas criou uma interpretação emocional, intensa como nunca se havia visto. Graças a ela, as montagens modernas buscam, além de bons cantores, artistas adequados fisicamente ao papel e dotados de qualidades dramáticas. E, ainda hoje, o gênero atrai multidões. Em 1993, Pavarotti cantou para meio milhão de pessoas no Central Park, em Nova York, ao lado de José Carreras e Plácido Domingo, na série dos "Três Tenores". E seu nome está no livro dos recordes Guiness pelos aplausos de uma hora e sete minutos que recebeu na Ópera de Berlim, em 1988.
Vanguarda lírica
As óperas que promoveram rupturas na História do gênero
1642 - A Coroação de Popeia, de Claudio Monteverdi
Inaugura elementos modernos, como o interlúdio e a temática factual, baseada em episódios históricos.
1762 - Orfeu e Eurídice, de Christoph Gluck
Exemplo do classicismo lírico, que abandona parte da formalidade barroca. Surgem árias, coros e uma versão inicial de orquestra.
1787 -Don Giovanni,de W. Amadeus Mozart
Primeiros personagens de psicologia realista e primeiro anti-herói: o sedutor que, de fato, vai se revelar um perdedor.
1816 - O Barbeiro de Sevilha, de Giacomo Rossini
Marco da ópera cômica, foi a obra mais popular do compositor e uma das mais executadas no mundo, até hoje.
1875 - Carmen, de Georges Bizet
Um choque para os costumes da época. Pela primeira vez, em cena, uma mulher livre enfrenta o homem.
1876 - O Anel dos Nibelungos, de Richard Wagner
Série baseada na mitologia nórdica, com quatro óperas e duração de 15 horas. Um desafio para os artistas e para o público.
1887 - Otelo, de Giuseppe Verdi
Nunca antes uma obra de William Shakespeare recebera versão lírica tão bela e primorosa.
1905 - Salomé, de Richard Strauss
Depois de Carmen, é a ópera que mais trabalha a sensualidade, reunindo os opostos gregos eros (amor, sensibilidade) e tanatos (morte).
Saiba mais
LIVROS
A Ópera, Fernando Fraga e Blas Matamoro, Angra, 2001
Compêndio sobre a história da ópera, com ênfase na obra wagneriana. Sugere peças disponíveis em CD.
A História da Ópera, Lauro Machado Coelho, Perspectiva
Coleção com 11 volumes, organizada por país e por período, cobrindo os grandes momentos do gênero.