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Ouro de tolo

O vinho mais caro do mundo, vendido por milhares de dólares, teria pertencido a Thomas Jefferson. Mas um jornalista mostra em livro como ele foi falsificado

Renata Chiara Publicado em 02/06/2009, às 06h20 - Atualizado em 23/10/2017, às 16h36

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Aventuras na História - Arquivo Aventuras
Aventuras na História - Arquivo Aventuras

A garrafa de vinho de preço mais alto que já existiu foi provavelmente falsificada. O Vinho Mais Caro da História, do jornalista americano Benjamin Wallace, reconta como um Château Lafitte 1787 (hoje chamado Château Lafite Rothschild, com apenas um t) foi leiloado por 156 mil dólares pela respeitada casa de leilões Christie’s de Londres, em 5 de dezembro de 1985. O valor astronômico não se justificava apenas pela grife do vinho, um dos favoritos de especialistas, mas pelo fato de que a garrafa teria pertencido ao ex-presidente americano Thomas Jefferson. A prova seriam as iniciais “Th.J.” gravadas na garrafa de vidro. A quantia recorde foi desembolsada por Malcolm Forbes, herdeiro da revista Forbes, e virou notícia na época.

O livro, lançado no Brasil este mês, conta que, segundo o catálogo da Christie’s, o item integrava um lote de raridades atribuídas a Jefferson e descobertas em Paris por Hardy Rodenstock, um colecionador alemão que debutou no mundo dos negócios como empresário de uma banda de música pop. Ele, no entanto, nunca revelou a origem precisa e o número de garrafas encontradas em Paris.

O leilão foi um divisor de águas no mundo da apreciação de vinhos raros. No fim dos anos 80, a disputa entre colecionadores milionários se acirrou. A preferência se estabeleceu por safras anteriores à filoxera, uma praga que devastou vinícolas da Europa no século 19. Casas de leilão como a Christie’s e a Sotheby’s expandiram seus departamentos de vinhos. Nesse boom, as vendas de Hardy Rodenstock se multiplicaram. O alemão passou a ser conhecido como o “Indiana Jones dos vinhos”, por ter descoberto adegas valiosas em lugares inusitados como a Venezuela e a Rússia.

CHEIRO DE FRAUDE

Paralelamente à euforia por vinhos antigos, cresceram as suspeitas sobre sua autenticidade. A falsificação é um fantasma que sempre assombrou esse mercado. Mas, quando garrafas raras passaram a ser vendidas por muitos milhares de dólares, a suspeita de falsificação virou um caso sério.

O leilão do Château Lafitte 1787 elevou o patamar de preços e lançou uma série de dúvidas no ar. A tal garrafa era mesmo original do século 18? O seu conteúdo teria se mantido intacto nesses 200 anos? Ela teria realmente pertencido a Thomas Jefferson? As perguntas colocavam em cheque não só a reputação de Rodenstock, mas também a credibilidade de Michael Broadbent, então diretor do departamento de vinhos da Christie’s. O especialista inglês sempre foi considerado uma autoridade no universo da bebida. Seu aval bastava como selo de qualidade. Foi ele quem convenceu Rodenstock a leiloar uma das garrafas do famoso lote. Nenhum dos dois esperava o recorde atingido. Broadbent se manteve ao lado do alemão quando as primeiras suspeitas de falsificação apareceram e nunca questionou a proveniência das garrafas.

Uma semana após o leilão, a pesquisadora Cinder Goodwin, que passou 15 anos fuçando nos arquivos de Jefferson, publicou um relatório que questionava se os vinhos de fato pertenceram ao ex-presidente. Segundo ela, documentos mantidos pela Thomas Jefferson Foundation contêm registros detalhados de todos os vinhos comprados por ele. Jefferson anotava meticulosamente todas as suas despesas em quatro cadernos diferentes. Não havia margem para dúvida. Entre os documentos, há uma carta de 1788 na qual Jefferson encomenda vinhos da safra Lafitte de 1784, mas não há menção à safra de 1787, a leiloada. Goodwin disse ainda que o lote de Rodenstock continha vinhos de quatro vinícolas diferentes, mas todas as garrafas teriam sido gravadas com iniciais idênticas, o que não faria sentido visto que Jefferson evitava comprar de intermediários.

Além da proveniência, a idade dos vinhos encontrados em Paris também foi questionada. Rodenstock vendeu outras duas garrafas do mesmo lote ao colecionador Hans-Peter Frericks, por 9100 dólares. Em 1989, Frericks decidiu vender parte de sua imensa adega e contactou a Sotheby’s. Após uma avaliação, a casa de leilões concluiu que grande parte da coleção era falsa e rejeitou leiloá-las. A maioria das garrafas havia sido adquirida com a ajuda de Rodenstock. Frericks procurou então a Christie’s, que chegou a anunciar o leilão das antiguidades. Mas, antes que o leilão ocorresse, Rodenstock exigiu que Frericks retirasse as garrafas fornecidas por ele do catálogo, alegando que foram vendidas para serem consumidas e não poderiam ser revendidas. A atitude do alemão levantou a suspeita de Frericks. O que havia de errado com as garrafas?

Para desvendar o mistério, Frericks enviou uma delas para um laboratório em Munique, na Alemanha, que avaliaria a concentração de trítrio, uma substância que se propagou na atmosfera após 1945, com a explosão da primeira bomba atômica. O resultado mostrou uma concentração de trítrio típica de 1962 ou 1965. Ou seja, o conteúdo era bem mais jovem do que se imaginava e a garrafa havia sido mesmo falsificada.

CASO PARA DETETIVE

Os negócios de Rodenstock, no entanto, só seriam questionados judicialmente em 2006 pelo milionário americano William Koch. Tudo começou em 1988, quando Koch gastou 500 mil dólares em quatro garrafas de Jefferson compradas por meio de vendedores intermediários. Todas seriam supostamente originárias de 1784 e 1787. Em 2005, Koch precisou do aval da Thomas Jefferson Foundation, uma exigência do Museum of Fine Arts de Boston que iria expor a coleção de arte do empresário. A fundação se recusou a reconhecer as garrafas como propriedade do ex-presidente. Furioso, o colecionador então decidiu contratar investigadores particulares.

O time composto por detetives e especialistas descobriu que Hardy Rodenstock não pertencia a uma família rica, como alegava, mas era filho de um funcionário da companhia ferroviária alemã e se chamava Meinhard Goerke. Os investigadores ainda levantaram a história de que Rodenstock alugava um porão na Alemanha, onde foram encontradas garrafas vazias e rótulos de safras antigas. Outra bomba: as iniciais gravadas nas tais garrafas raras eram todas idênticas e não poderiam ter sido feitas com instrumentos do século 18. A inscrição era muito mais recente, do século 20. Koch processou Rodenstock. A ação iniciada em 2006 ainda não foi concluída e até hoje ninguém sabe quantas garrafas – legítimas ou falsas – Rodenstock negociou.

O jornalista Benjamin Wallace entrevistou dezenas de envolvidos nessa intricada história. O autor viajou para lugares como Londres, Bordeaux, Munique e Flórida para montar o quebra-cabeça que deu origem ao livro. Segundo ele, o mais difícil foi o acesso aos colecionadores mais ricos, que se recusam a acreditar que compraram vinhos falsos. E a reação mais estranha veio de Hardy Rodenstock, que só aceitou ser entrevistado por fax.

A maior ironia da história é sem dúvida o fato de que o vinho pivô da história tenha virado vinagre. Após semanas exposta em uma galeria em Nova York sob uma lâmpada, a rolha do Château Lafitte 1787 derreteu e se desprendeu da boca da garrafa. O vinho mais caro já leiloado passou a ser um líquido marrom sem valor.

SAIBA MAIS

A obra

O Vinho Mais Caro da História, Benjamin Wallace, Jorge Zahar, 2008*

* A capa da edição em português e seu preço não estavam definidos até o fechamento desta edição