Nazismo: Eles estão entre nós
No dia 20 de abril de 1940, Adolf Hitler completava seus 51 anos. Para comemorar o aniversário do Führer, que nos dois meses seguintes dominaria Holanda, Bélgica e Dinamarca e, em junho, descansaria à sombra da torre Eiffel, em Paris, o ministro da propaganda nazista Joseph Goebbels preparou uma festa. Desde a manhã milhões de pessoas foram às ruas e curtiram o feriado ouvindo discursos inflamados ou seguindo desfiles nas principais cidades alemãs. Longe de sua terra natal, 456 alemães preferiram uma festa reservada, mas também animada. No salão social do Clube de Atiradores de Blumenau, em Santa Catarina, eles se reuniram para um almoço típico, brindaram e deram vivas a Hitler. Na véspera, os 815 alunos entre 7 e 15 anos da Escola Alemã da Vila Mariana, em São Paulo, chegaram às 7 da manhã, como todos os dias. Como todos os dias, saudaram a chegada dos professores em coro: “Heil, Hitler”. Na mesma época, no Rio de Janeiro, uma enorme bandeira vermelha com a suástica preta podia ser vista hasteada, tremulando no alto do morro de Santa Tereza.
A existência de simpatizantes nazistas no Brasil, nos anos 30 e 40, não é novidade. Porém, a partir de 1997, quando se tornaram públicos os arquivos da Delegacia de Ordem Política e Social (Deops) do governo Getúlio Vargas, os pesquisadores não passam um dia sem descobrir algo novo e surpreendente sobre o nazismo no país. É o caso da historiadora Ana Maria Dietrich, professora da Universidade de São Paulo, que há anos pesquisa os milhares de documentos entre inquéritos, fotos, panfletos, depoimentos e relatórios do Deops, atualmente sob a guarda do Arquivo do Estado de São Paulo. Segundo Ana Maria, os documentos revelam um nível surpreendente de influência do nazismo na sociedade brasileira, detalhando não apenas atividades partidárias e de propaganda, mas de espionagem e fraudes, além da conivência, e até da simpatia, com que essa ideologia contou entre as autoridades brasileiras.
Amigos, amigos
Para entender o fenômeno do nazismo entre nós, é preciso lembrar como era o Brasil nos anos 30. Vivíamos sob a ditadura do Estado Novo, de Getúlio Vargas. Partidos haviam sido proibidos, políticos foram cassados, jornais e revistas que não fossem simpáticos ao governo eram perseguidos. A Constituição imposta pelo getulismo era praticamente uma cópia da carta do ditador fascista italiano Benito Mussolini, de quem Getúlio não escondia ser admirador. Uma sofisticada máquina publicitária que incluía centenas de emissoras de rádio propagava a imagem do presidente e fomentava o sentimento ultranacionalista. Dito assim, não parece um ambiente tão impróprio para o surgimento de ideais totalitários. E não era. No Brasil ainda circulavam idéias de dominância racial formuladas no século 19 e defendidas por intelectuais como Sílvio Romero. Jovens que se tornariam figurões da nossa cultura, como o poeta Vinicius de Moraes e o folclorista Câmara Cascudo, declaravam-se integralistas – a corrente de ultradireita que queria um Brasil totalitário e cujos membros se metiam em espancamentos de negros, estrangeiros e judeus (veja quadro na pág. 29).
“A política e a sociedade brasileiras refletiam as influências internacionais”, afirma Priscila Ferreira Perazzo, historiadora da USP e autora de O Perigo Alemão e a Repressão Policial no Estado Novo. De fato, mundo afora os ideais fascistas vicejavam. “Entre 1918 e 1920, dois Estados europeus fecharam seus parlamentos e implementaram governos absolutistas. Nos anos 20 foram seis, e na década seguinte mais nove países sucumbiram a governos ditatoriais”, afirma o historiador britânico Eric Hobsbawm, em Era dos Extremos. “Na América, a lista de países não-autoritários incluía apenas Canadá, Colômbia, Estados Unidos, Costa Rica e Uruguai.”
Além de compartilhar ideais autoritários, o Brasil de Vargas mantinha relações para lá de amistosas com a Alemanha nazista. Na década de 30, os alemães viraram o segundo maior mercado consumidor de produtos brasileiros, saltando de 10% para 22% de nossas exportações. Em 1936, policiais e militares brasileiros visitaram a Alemanha, onde treinaram com a Gestapo, a polícia política de Hitler. Em retribuição, o governo brasileiro entregou aos nazistas comunistas e judeus alemães residentes no Brasil, como Olga Benário, Erna Krüger, Elise e Arthur Ewert. Dito assim, parece que Getúlio estava muito mais próximo de apoiar o Eixo que os Aliados, na guerra que se aproximava.
Nazismo legal
Datam de 1924 os primeiros registros sobre um grupo chamado genericamente de Landesgruppe Brasilien (ou “o grupo do país Brasil”), que pode ser identificado como um partido nazista no Brasil. Segundo Ana Maria Dietrich, desde o início a organização não era uma célula isolada e integrava uma rede mundial com outras filiais do partido presentes em 83 países, com 29 mil integrantes. Quando foi oficializado, em 1928, seu líder, Hans Henning von Cossel, estava apenas a dois degraus hierárquicos do próprio Hitler. “O partido chegou a ter 2 900 integrantes e era, de longe, o maior entre os partidos nazistas que operavam fora da Alemanha”, diz Ana Maria. O segundo maior era o da Holanda, com 1 600 membros.
Em dez anos de atuação, o partido teve estatuto, uma sede nacional em São Paulo, escritórios regionais em Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro, então capital federal, e sedes municipais. Dos quase 3 mil membros, 785 estavam em São Paulo, 528 em Santa Catarina, 447 no Rio de Janeiro. Havia “agentes de divulgação” em Pernambuco e Bahia. Alguns de seus líderes, como o chefão Von Cossel e o tesoureiro Otto Braun, receberam treinamento especial em Munique, na Alemanha, para se tornarem “agentes políticos”. Os membros também se organizavam em associações, como a Juventude Hitlerista, a Associação de Professores e a Associação de Mulheres Nazistas.
Ao contrário do que se pensa, o tipão mais comum de um nazista no Brasil tinha pouco a ver com os colonos alemães que chegaram no século 19. Geralmente, eram técnicos e empresários urbanos que viam o Brasil como uma gastland – “terra de hospedagem”, um abrigo temporário. “A principal missão dos membros era difundir o nazismo entre os alemães longe da Alemanha”, diz Ana Maria. “Professores foram enviados de Berlim para lecionar em escolas alemãs e pregar o nazismo para os alunos.”
Foi o que ocorreu na Escola Alemã da Vila Mariana, hoje Escola Benjamin Constant, em São Paulo. Ali, as crianças estudavam em alemão, davam vivas a Hitler e entoavam canções nazistas como a patriótica “Alemanha Acima de Tudo”, que começava assim: “Levanta a bandeira da luta e da liberdade,/ as fileiras bem unidas,/ e marcha com os passos calmos e firmes”. No Colégio Visconde de Porto Seguro, também em São Paulo, o diretor Gustaf Hoch foi denunciado pelo pai de um aluno em carta ao próprio Goebbels por não defender o nazismo.
“Tudo indica que o nazismo no Brasil se difundiu, pelo menos no início, para os alemães e entre os alemães. Eles não queriam saber da política interna, de tomar o poder do Brasil ou convencer mestiços e não-arianos a adotarem as idéias de Hitler”, diz Priscila Perazzo. O partido trabalhava de olho nos problemas da Alemanha e dos alemães que viviam no exterior. Sequer estavam registrados no Tribunal Superior Eleitoral, e descendentes nascidos no Brasil eram proibidos de entrar. “Não acredito e não há indício confiável de que os nazistas pretendessem influenciar drasticamente a política brasileira”, afirma Priscila. No entanto, um estudo do historiador Francisco Teixeira, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, baseado em documentos do Arquivo Federal da Alemanha, mostra que diante da iminência da guerra, entre 1936 e 1939, o partido recebeu do III Reich a missão de paquerar a opinião pública brasileira. Para isso, os nazistas controlavam pelo menos 15 emissoras de rádios espalhadas pelo país que transmitiam noticiários em português feitos em Berlim. Notícias da rádio Tupy, de São Paulo, em outubro de 1936, diziam que a Alemanha estava uma maravilha sob o comando do Führer. A produção industrial crescia, os alimentos abundavam, o perigo semita estava sendo afastado e, em breve, a raça alemã estaria toda reunida. Os ideais nazistas chegavam ao grande público brasileiro ainda em panfletos, livros e pelo jornal Deutscher Morgen (ou “Aurora Alemã”), que custava 200 réis e publicava na capa trechos de discursos de Hitler como esse, de junho de 1934: “Devemos assegurar a permanência da nossa raça e de nosso povo, o alimento de nossos filhos, preservar a pureza do sangue, a liberdade e independência da pátria”. Editado no bairro da Mooca, em São Paulo, o jornal convidava os leitores a participar de reuniões sobre o nazismo e para tomar um chope Antarctica na Gruta Alemã, bar na avenida São João que estampava uma suástica atrás do balcão.
Em abril de 1938, no auge da onda nacionalista, o governo Vargas restringiu a participação política partidária aos brasileiros natos e o Partido Nazista – tanto quanto o Comunista – foi extinto. Mas não acabou. Documentos encontrados no arquivo do Itamaraty pela historiadora Ana Maria Dietrich mostram que, antes de o decreto começar a valer, o presidente recebeu o embaixador alemão no Brasil, Karl Ritter, para uma conversa. “Getúlio disse ao diplomata que a medida não era punitiva aos alemães, à Alemanha ou ao Partido Nazista”, afirma Ana Maria. Como compensação pela proibição, o embaixador aceitou a doação de sacas de café, para ajudar no Programa de Auxílio Alemão de Inverno. O que não se sabe se ficou combinado entre Getúlio e o embaixador foi a garantia de que os nazistas não seriam perseguidos. Mas o fato é que, pelo menos nos primeiros anos após a proibição, o governo nada fez para reprimir as atividades dos nazistas. “Até a entrada do Brasil na guerra, em agosto de 1942, mesmo ilegal o partido seguiu funcionando numa boa”, diz a historiadora. Na embaixada alemã no Rio, uma bandeira nazista permaneceu hasteada até outubro de 1941. Em abril de 1942, uma passeata reuniu cerca de 2 mil nazistas uniformizados à luz do dia, no centro de Florianópolis.
Agora é guerra
Em janeiro de 1942, após o ataque dos japoneses a Pearl Harbor, o Brasil rompeu relações diplomáticas com o Eixo. E em 31 de agosto, depois de seis navios brasileiros serem afundados por submarinos alemães em quatro dias, Getúlio declarou guerra. “Não há como negar que a Alemanha e a Itália praticaram atos de guerra, criando uma situação de beligerância que seremos forçados a reconhecer, em defesa de nossa soberania, da nossa segurança e da América, e a repelir, na medida de nossas forças”, discursou o presidente. A declaração pôs fim à pendular atuação de Vargas, que ora adulava os alemães – num discurso em 1940, no dia em que os nazistas tomaram Paris, ele elogiou as “nações fortes que se impõem pela organização baseada no sentimento da pátria e sustentando-se na convicção da própria superioridade” –, ora sorria para os aliados, de olho nos investimentos que os americanos prometiam fazer por aqui.
De um dia para o outro, alemães, italianos e japoneses viraram inimigos da pátria. Os alemães residentes ou de passagem pelo Brasil foram convidados a deixar o país e intimados a comparecer à delegacia mais próxima. Alguns foram presos acusados de “falar alemão em público”. Como mostra o filme Cinema, Aspirinas e Urubus, do cineasta Marcelo Gomes, que estreou no fim de 2005, empresas alemãs como a Bayer, que difundia pelo país as pílulas para dores de cabeça, sofreram intervenção federal. Mas, se por um lado a perseguição policial causou vítimas inocentes, também revelou uma bem organizada rede de espionagem.
Uma das primeiras pessoas detidas pelo Deops, em setembro de 1942, se tornaria um dos mais famosos espiões nazistas no Brasil. Era o alemão Otto Braun, tesoureiro e membro da direção nacional do Partido Nazista Brasileiro. Nos sete meses em que ficou preso, Braun não pôde falar com a família nem com amigos, permanecendo, como diz seu prontuário, “em regime de rigorosa incomunicabilidade”. Em seus mais de 200 depoimentos aos agentes do Deops, ele nomeou, um a um, todos os integrantes do partido, inclusive os que ocupavam cargos de direção. “Morando no Brasil desde 1924, Braun conhecia tudo e revelou detalhes de ações de espionagem e fraudes cambiais”, conta Ana Maria. Funcionário do Banco Alemão Transatlântico, Braun coordenava uma série de transações proibidas de câmbio. O dinheiro de alemães residentes no Brasil era enviado para cofres na Suíça e de lá chegava à Alemanha e às mãos do III Reich. Pelo menos 12 funcionários do banco eram membros do partido ou ligados a ele. Acabaram presos.
Otto Braun declarou também que o partido era “uma instituição conhecida pelas autoridades brasileiras, que muitas vezes compareceram às reuniões e festejos da mesma”. Era verdade. O governo brasileiro monitorava os nazistas havia dez anos. Os policiais estavam infiltrados em igrejas luteranas e clubes como o Germânia, no Rio de Janeiro, e enviavam relatórios às vezes semanais, descrevendo de animadas perseguições de suspeitos, no melhor estilo James Bond, a tediosas tocaias, que só servem para quem quer conhecer o cotidiano de pessoas supostamente nazistas e falam de fins de semana na praia, partidas de biriba e aniversários de família.
“Esses relatos mostram que grande parte das fontes de informação do serviço de espionagem nazista era composta por amadores. Gente comum que falava o que sabia ou ouvia dizer aos informantes do III Reich”, diz a historiadora Priscila Perazzo. Entre esses faladores havia operários, comerciantes e industriais, gente que, às vezes, ocupava cargos importantes e até estratégicos em empresas brasileiras. Frederico Weissflog, dono da Companhia Melhoramentos de São Paulo, ouviu de alguns amigos americanos que os Estados Unidos preparavam um golpe para derrubar Getúlio. Tudo bobagem, é claro, mas, em vez de informar o governo brasileiro, Weissflog contou o boato para Niels Christian Christensen.
Christensen (que, aliás, não acreditou na lorota) era um espião de carteirinha, um dos mais profícuos informantes nazistas que atuaram no país. As transcrições de suas mensagens interceptadas pelo Deops somam quase oito pastas. “Ele era a face profissional da rede de informações nazista no Brasil”, diz Priscila. Treinado pelo serviço de informação alemão, ele liderou uma das seis células que operavam no país. Sua base era a cidade de Santos, no litoral paulista, onde se apresentava como dinamarquês e comerciante. Christensen na verdade era alemão e chamava-se Josef Starziczny. Havia chegado ao Brasil em abril de 1941 e montado uma estação de rádio que funcionou secretamente por mais de um ano, passando informações sobre o porto e sobre a presença de navios aliados na costa brasileira.
Em 1940, em São Paulo, o alemão Hans Christian von Kotze abriu um escritório comercial no centro da cidade. Os vizinhos pensavam que ele administrava investimentos para empresários graúdos. Balela. Kotze era um espião nazista e o que ele conseguia saber com os endinheirados era passado para a Alemanha por uma rádio clandestina no bairro do Jabaquara.
Você deve estar se perguntando: o que tanto queriam os espiões nazistas no Brasil? A resposta pode ser simples: como todos os alemães – ou pelo menos a esmagadora maioria deles –, eles queriam que a Alemanha ganhasse a guerra. Por isso, passavam informações que pudessem ajudar a máquina de guerra alemã contra os aliados.
Mas há quem ache que Hitler tivesse outros planos para o Brasil. Primeiro, como fonte de recursos para uma guerra prolongada. Depois para, vencido o inimigo, contar com um aliado de porte para se recuperar dos esforços de guerra. “Entre as autoridades havia o medo, mesmo que remoto, de Hitler invadir o Brasil depois de conquistar a Europa”, diz a historiadora Ana Maria Dietrich. E o próprio Führer dava corda para essa desconfiança. “Precisamos de dois movimentos no exterior: um leal e um revolucionário. Não vamos desembarcar tropas e conquistar o Brasil com armas na mão. As armas que temos não se vêem”, afirmou Hitler em 1933.
Se isso fosse verdade, gente como Gustav Engels, um pacato pai de família que chegara ao Rio de Janeiro nos anos 20 para trabalhar na Siemens, estaria pronto a ajudar. Em 1939, Engels passou um tempo na Alemanha. Voltou com um codinome – Alfredo – e a missão de proliferar espiões, estações clandestinas e códigos telegráficos pela América do Sul. Durante três anos, ele coordenou uma extensa rede que contava com informantes em companhias aéreas, funcionários do governo, jornalistas, executivos de empresas de energia, num total de mais de 50 pessoas, entre elas o engenheiro Ludwig Weber e o mecânico Alberto Hofstetter, ambos funcionários da Vasp. No fim de 1942, a polícia interceptou uma série de mensagens enviadas por Engels via rádio que surpreenderam as autoridades pela precisão e diversidade. Há dados sobre o trânsito de aviões norte-americanos nas bases aéreas do Nordeste, informações sobre a capacidade dos depósitos de gasolina nos portos e o comprimento das pistas dos aeroportos brasileiros. Além de transmitir o que sabia para a Alemanha, Engels compartilhava tudo com colegas no Chile, Argentina e Equador. Para saber se uma mensagem havia chegado à Alemanha, ele pedia sinais pelo noticiário da rádio alemã: “Como confirmação mandar tocar algumas passagens da marcha ‘Fridericus’ ao terminar o programa em ondas curtas às 22 horas hora do Rio”, telegrafou “Alfredo” em janeiro de 1942. Preso em novembro, foi condenado a 14 anos e cumpriu cinco.
Outro suposto chefão da espionagem nazista foi revelado em 1983 (bem antes, portanto, de os arquivos do Deops serem abertos), quando o historiador americano Stanley Hilton lançou A Guerra Secreta de Hitler no Brasil. Nele, Hilton apontava o alemão Hans Curt Werner Meyer-Clason como líder da rede que funcionava no Rio Grande do Sul. Foi um espanto. Não tanto para os historiadores, mas para os literatos brasileiros. É que Meyer-Clason é o maior tradutor de literatura brasileira para a língua alemã. Ele, que passou cinco anos preso em Ilha Grande, nega até hoje a acusação (leia entrevista na pág. 33).
Caça aos nazistas
Quando foi declarada guerra entre Brasil e Alemanha, houve em São Paulo e no Rio uma debandada de empresários alemães rumo ao país natal. Já os imigrantes alemães do Sul não tiveram a mesma chance. Em 1942, espionagem era – e ainda é – crime no Brasil. Segundo o Código Penal Militar (pela convenção de Genebra, de 1929, espiões são criminosos de guerra), o acusado pode ser condenado de quatro a 20 anos de prisão. Mas a aplicação da lei no Brasil, já naquele tempo, teve excessos de um lado e “jeitinhos” do outro.
Numa tarde, no verão de 1942, o estudante Max Will, então com 12 anos, voltava da escola em Agrolândia, em Santa Catarina. “Em casa, encontrei todo mundo chorando. Os policiais tinham invadido nossa casa e levado meu pai”, lembra. O pai de Max, o agricultor Leopoldo Will, viera da Alemanha quando criança e jamais aprendera o português. Na praça da cidade, os policiais obrigaram-no a beber óleo de rícino com diesel e defecar em público. “Enfiaram-lhe o fuzil na boca e passaram o diesel por ali”, conta Max, hoje com 75 anos.
Com medo de atos assim, um grupo de 12 marinheiros alemães fez uma tentativa desesperada durante o Carnaval de 1942. Em São Vicente, litoral de São Paulo, eles tentaram fugir, atravessando o Atlântico num barco de 10 metros de comprimento. “No segundo dia no mar, depois de uma tempestade, vimos que era preciso voltar à terra para consertar o barco. Acabamos naufragando pouco antes de atingir o litoral de Praia Grande”, conta Heinz Lange, hoje com 85 anos, o único tripulante da aventura ainda vivo. “A polícia nos pegou e fomos direto para a cadeia.”
Heinz e os amigos faziam parte da tripulação do Windhuk, um navio de turismo que zarpou da Alemanha em julho de 1939 rumo à África com cerca de 650 pessoas a bordo. Quando a guerra estourou, a maioria resolveu ficar na África, mas cerca de 250 resolveram permanecer a bordo e tentar voltar à Alemanha. No caminho, para fugir de navios de guerra britânicos, o Windhuk teve que mudar de rumo e virar à esquerda. “Eles chegaram ao Porto de Santos em dezembro de 1939 e ficaram morando no barco até 1942”, conta Peter Böhme, filho de um tripulante do Windhuk, que prepara um livro baseado no diário que seu pai escreveu na época. Os tripulantes do Windhuk chegaram a trabalhar em Santos como carpinteiros, mecânicos e cozinheiros, mas depois da entrada do Brasil na guerra acabaram em campos de prisioneiros acusados de “nazismo leve”. De 1942 a 1945, cerca de 3 mil alemães, japoneses e italianos foram presos pelo governo em 13 campos de concentração em oito estados. Em Santa Catarina foram 200 presos num hospício desativado de Joinville. Em Curitiba e Porto Alegre foram colocados em presídios comuns. Em Recife, o campo de Chã de Estevam abrigou os funcionários da Companhia Paulista de Tecidos (que depois viraria Casas Pernambucanas), cujos donos, os Lundgren, eram alemães. “Quase ninguém ali tinha nada a ver com nazismo”, diz a historiadora Susan Lewis, da Universidade Federal de Pernambuco.
Os maiores campos foram montados em Pindamonhangaba e Guaratinguetá, em São Paulo, para abrigar a turma do Windhuk. No primeiro, os prisioneiros criaram um grupo de teatro e a orquestra do navio seguiu tocando todas as noites. Heinz Böhme escreveu em seu diário: “Domingo fizemos jogo de futebol entre os com-camisa e sem-camisa. Consegui ler um jornal contando que uma bomba caiu em Berlim”.
Em 1945, com a rendição alemã, a coisa esfriou e, quando a guerra acabou, muitos processos foram abandonados e a maioria dos detidos foi simplesmente libertada. Do campo de Pindamonhangaba todos os presos saíram andando, pela porta da frente. A maioria ficou pelos arredores, outros partiram atrás de parentes, alguns não deixaram pistas. O cozinheiro do Windhuk, Kurt Brenneck, foi trabalhar num hotel em Campos do Jordão. Três de seus colegas se casaram com moças da região e seus filhos e netos ainda estão por lá. Os espiões graúdos, presos em Ilha Grande, também foram libertados. Niels Christensen, condenado a 30 anos, saiu em 1947. O carpinteiro Heinz Lange só voltou a sua terra no fim da década de 50. Encontrou um país transformado, bem diferente daquele que tinha deixado em 1939 a bordo do Windhuk. “Não gostei nem um pouco. Eu já estava acostumado com o Brasil”, diz. Sem pensar duas vezes, ele preferiu voltar e se aposentar como um tranqüilo mestre-de-obras em Praia Grande, no litoral de São Paulo.
Entre os brasileiros, as idéias de Hitler e Mussolini tinham um correspondente fiel: o integralismo. Assim como nazistas alemães e fascistas italianos, os integralistas pregavam disciplina militar, superioridade dos brancos, nacionalismo radical, anti-semitismo, governo autoritário e luta contra o comunismo. Eram liderados por intelectuais como o jornalista Plínio Salgado e os advogados Gustavo Barroso e Miguel Reale. O partido contava com uma milícia cujos membros, para se cumprimentar, levantavam o braço direito e diziam “anauê”, que, em tupi, significa “você é meu irmão”. Os “irmãos”, é claro, não incluíam negros, judeus e estrangeiros. O racismo por vezes acabava em violência, como em 1936, quando, durante um desfile, milicianos espancaram negros no centro do Rio. A Ação Integralista Brasileira, que chegou a dividir o mesmo escritório com sedes do Partido Nazista em cidades como Rio do Sul, em Santa Catarina, elegeu oito prefeitos nesse estado em 1936, quando chegou a ter entre 600 mil e 1 milhão de membros. Tamanha popularidade daria a Salgado grandes chances na eleição presidencial de 1938. No entanto, em setembro de 1937, Vargas deu um golpe de Estado e se tornou ditador. A desculpa para o surto autoritário foi a descoberta do Plano Cohen, que revelaria um projeto comunista contra o governo, mas que na verdade era uma papelada falsa de autoria do capitão do Exército Olympio de Mourão Filho, notório simpatizante das teses integralistas. Apesar de apoiar o golpe de Getúlio, foram alijados do poder e o partido foi proibido. Em maio de 1938, integralistas atacaram o Palácio Guanabara, sede do governo federal, foram reprimidos e alguns morreram fuzilados. Plínio Salgado acabou exilado. Depois da derrota dos nazistas na guerra, o integralismo perdeu o encanto. Mas seus líderes continuaram integrados à política. O capitão Mourão Filho se tornou o general que, em 1964, deflagrou o golpe contra o presidente João Goulart, apoiado por políticos como Miguel Reale, secretário de Estado de São Paulo. Outro integralista, Raymundo Padilha, virou deputado em 1952 e, em 1971, foi nomeado pela ditadura governador do Rio. Plínio Salgado se elegeu deputado várias vezes. A última pela Arena, em 1977.
Seis décadas depois de ter sido preso no Brasil por crime de espionagem, o tradutor Hans Curt Werner Meyer-Clason, por meio de quem os alemães conheceram João Cabral de Melo Neto, Carlos Drummond de Andrade e Guimarães Rosa, vive em Munique, na Alemanha, de onde falou por telefone com História. Aos 95 anos, mantém um português impecável e é capaz de lembrar detalhes dos cinco anos que passou em Ilha Grande, época que, insiste em dizer, considera a melhor de sua vida. Membro correspondente da Academia Brasileira de Letras, ele sempre evitou falar sobre o tempo em que, segundo a polícia, foi espião em Porto Alegre, mas diz que as acusações não passam de um engano: “Não tenho nada a encobrir ou silenciar”. Para Priscila Perazzo, uma das maiores especialistas no estudo dos documentos do Deops sobre o período, no entanto, ele pode não ter sido um espião clássico, o tipo que se conhece no cinema, mas certamente cometeu atos de espionagem. “Vários alemães foram presos por engano, mas com condenados a 20 anos, como Meyer-Clason, há poucas dúvidas. Compreensivelmente, ele vai negar o vínculo ao nazismo até a morte”, acredita a historiadora.
História – O senhor é considerado chefe de uma rede de espionagem nazista no Brasil. É verdade?
Meyer-Clason – Não, as acusações não são verdadeiras. Eu era comerciante, não era espião. Fui para o Brasil justamente porque queria sair da Alemanha hitlerista. Meu contato em Porto Alegre foi única e exclusivamente comercial. No porto de Bremen, consegui um cargo no Brasil, como representante de uma empresa de Boston, Massachusetts, que controlava estoques de algodão. A polícia achou que eu era espião porque era um jovem alemão que dizia trabalhar para americanos, falava muitas línguas e viajava pela costa falando com empresas alemãs na Bahia, no Recife.
Mas, na época, o senhor confessou ter sido espião, não?
A polícia foi muito violenta com a gente. Os policiais nos mandavam abrir os braços e brincar de “Cristo Redentor”. Ficávamos encostados em uma parede com os braços levantados e eles batiam no peito e do lado sem que pudéssemos abaixar o braço. Depois, fizeram uma confissão de espionagem falsa e fui condenado a 20 anos de prisão. Embora maltratado pela polícia, o melhor da minha vida devo ao Brasil. Eu temia ser maltratado enquanto fiquei preso, mas na prisão, em Ilha Grande, acabei mudando radicalmente. Devo ao Brasil minha mudança filosófica, existencial. Depois de Ilha Grande, passei da vida européia, do “penso, logo existo”, para o jeito brasileiro, “sinto, logo existo”.
O senhor conheceu a literatura brasileira na prisão?
Em Ilha Grande tive acesso à literatura mundial. Foi ali que conheci meu grande professor de vida, o poeta e barão alemão Gerd von Rhein. Ele tinha sido preso pela Gestapo e depois deixou a Alemanha com seu parceiro – era homossexual. Por intermédio dele, conheci toda a literatura de Homero a Sartre. Eu fui educado como filho de oficial alemão, de uma família burguesa, sem educação literária. Não fosse a prisão, eu seria um empresário, não um escritor e tradutor.
Como o senhor conseguiu sair de lá?
Depois da guerra, consegui um advogado que me defendeu gratuitamente e a condenação foi arquivada. Fui inocentado, saí livre para a rua. Depois, passei mais uns anos trabalhando numa firma de importação de gêneros alimentícios no Rio, para ganhar dinheiro. Em 1954, voltei para a Alemanha para começar uma vida nova, de escritor, crítico literário e tradutor. De tanta saudade do Brasil, comecei a ir às festas do Consulado Geral do Brasil. Um dia, perguntei ao cônsul-geral qual era a novidade literária do Brasil. Ele me falou de um colega, também diplomata, um tal de Guimarães Rosa.
O senhor e Guimarães Rosa ficaram amigos?
Sim, ficamos amigos até a sua morte. Depois que o cônsul me falou de Grande Sertão: Veredas, eu escrevi para o Guimarães. Ele me respondeu e mandou o romance. Assim começou uma amizade de muitos anos. Depois, tive a sorte de lançar no mercado alemão os grandes gênios latino-americanos. Até hoje, recebo livros e cartas de poetas e romancistas brasileiros.Livros
Inventário Deops: Alemanha, Ana Maria Dietrich, Eliane Alves e Priscila Perazzo, Imprensa Oficial, 1997
Traz prontuários de todos os acusados de nazismo em São Paulo, fichas policiais e textos explicativos
A Guerra Secreta de Hitler no Brasil, Stanley Hilton, Nova Fronteira, 1983
Primeiro grande trabalho sobre os espiões alemães e a contra-espionagem brasileira, é uma referência
O Perigo Alemão e a Repressão Policial no Estado Novo, Priscila Perazzo, Imprensa Oficial, 1999
Cruza novos documentos com as afirmações publicadas por Hilton