Mulher descobre que é filha de um guerrilheiro desaparecido há 36 anos na selva do Pará. A suspeita é que existam muitos outros como ela
1974 Um dia qualquer. Dois homens batem à porta do semi-internato Lar de Maria, em Belém. Trazem nos braços uma menina com poucos meses de vida, a pele muito branca coberta por círculos vermelhos - picadas de insetos. Ordenam ao casal que administra o estabelecimento: "A criança vai ficar aqui". Um dos homens identifica-se como delegado de polícia. O outro veste farda militar, é soldado. Dizem não saber a origem daquele bebê.
O casal já tinha quatro filhos: três rapazes e a caçula Rosália, de 16 anos. Foi ela quem mais se afeiçoou à misteriosa criança. Insistiu com os pais, que acabaram por assumir a menina como filha. Deram-lhe um nome e o sobrenome da família: Lia Cecília da Silva Martins. E inventaram para ela uma data de nascimento: 1º de julho de 1974. O tempo passou, e o estranho "nascimento" de Lia se desvaneceu na memória daquelas pessoas. Até que, por um grande acaso, no ano passado descobriu-se que ela é filha de Antônio Teodoro de Castro, o Raul, que na primeira metade dos anos 1970 participou na selva amazônica do histórico episódio conhecido como a Guerrilha do Araguaia.
Ex-estudante do curso de farmácia na Universidade Federal do Ceará e militante do então clandestino PCdoB (Partido Comunista do Brasil), Raul morava no Rio de Janeiro quando se engajou no movimento guerrilheiro. O Relatório Arroyo, escrito pelo dirigente comunista e sobrevivente do Araguaia Ângelo Arroyo, diz que Raul estava vivo em 25 de dezembro de 1973, quando ocorreu o episódio conhecido como "chafurdo de Natal" - na ocasião, militares cercaram um grupo de 15 guerrilheiros numa colina e abriram fogo. Alguns morreram na hora. Raul, aparentemente, escapou. Mas desapareceu no ano seguinte, sem deixar rastro. Consta que foi fuzilado pelo major Curió (o major reformado Sebastião Rodrigues de Moura, o mais atuante militar a combater a guerrilha). Raul tinha 29 anos.
Onde está Raul?
A procura pelo corpo do guerrilheiro mobiliza a família Castro desde o fim da década de 1970. Ele tinha cinco irmãs e três irmãos. A mais nova é a advogada Mercês Castro, 50 anos. Em 1980, com menos de 20, ela percorreu pela primeira vez a região do Araguaia, formada por áreas no sudeste do Pará, sul do Maranhão e norte de Tocantins (Goiás, na época). Conheceu pessoas que se lembravam daquele moço, lavradores que fizeram amizade com os guerrilheiros e que, provavelmente por isso, foram também perseguidos pelos militares.
Mercês ouviu falar que Raul tivera uma filha com uma camponesa chamada Regina. A criança, nascida pouco antes do desaparecimento do pai, foi levada pelos militares, disseram. Regina também nunca mais foi vista. Encontrar a sobrinha e os restos mortais do irmão tornou-se a razão de viver da advogada. Ela perdeu a conta das vezes em que esteve no Araguaia - recentemente, encontrou numa cova clandestina ossos humanos que aguardam os exames de DNA. Seriam os de Raul?
Em 2009, o jornal Diário do Pará publicou uma entrevista em que Mercês contava a história da menininha levada pelos soldados do Exército. A partir daí, o emblemático passado de Lia começava a acordar do sono de mais de três décadas. A reportagem foi lida por um amigo de Lia que conhecia a história de sua aparição no Lar de Maria: "Será que não é você?"
Teste de DNA
Lia ficou assustada, dividida, mas decidiu investigar. No fundo, sempre quis saber mais sobre sua origem. Por e-mail, conseguiu contatar Mercês. Falou sobre a suspeita de que talvez fosse a filha de Raul. Acertou sua ida a Fortaleza, onde moram cinco dos irmãos e irmãs do guerrilheiro. E foi. Ao chegar, espanto geral: Lia era parecidíssima com as mulheres da família, especialmente com Sandra, uma das irmãs do guerrilheiro desaparecido. Mesmo assim, fizeram o exame de DNA. Seis "tios" de Lia cederam material genético para comparação.
Em 11 de maio do ano passado, o laudo do laboratório ficou pronto. O DNA confirmou o parentesco. "É tão estranho você conhecer uma história e de repente passar a fazer parte dela... Mexe com o emocional da gente", disse Lia, hoje com 36 anos. Desde a comprovação genética, ela passou a conviver intensamente com as tias. Esteve com Mercês em Curitiba, com Sandra em Cumbuco (Ceará) e em Brasília, com Eliana e Socorro. Agora, recém-casada, voltou ao Pará. Grávida, planeja retomar os estudos na faculdade de gestão de recursos humanos, cuja matrícula trancou há um ano para se dedicar à busca de suas raízes. Disse que, apesar de se sentir muito ligada à família que a criou, pretende acrescentar o Castro a seu sobrenome. "Conversando com minha ‘irmãe’ (junção de "irmã" e "mãe") Rosália, falei sobre mudar meu nome. Ela me disse que não tinha problema, que o documento com o novo nome será só um pedaço de papel - e o que sentimos uma pela outra não cabe em um pedaço de papel. Estou muito feliz. Agora tenho duas famílias."
Outros órfãos
Pesquisadora do conflito desde 2001 e membro do Grupo de Trabalho Tocantins (GTT), a jornalista Myrian Alves diz que há relatos de que duas combatentes foram capturadas grávidas pelos militares e que um dos líderes da guerrilha, Osvaldo Orlando da Costa, o Osvaldão, teve pelo menos dois filhos com mulheres da região. O envolvimento amoroso de combatentes com mulheres locais era natural, inevitável. Eles viviam semi-isolados na floresta, e os namoros entre os guerrilheiros eram reprovados pelos comandantes da ação. Involuntariamente, essa norma incentivava a busca por parceiros "de fora" - o que também era condenado pelos chefes revolucionários, porém sua prática era mais difícil de fiscalizar e reprimir. "O próprio Curió admitiu, em depoimento à Justiça Federal em 2010, que Osvaldão teve filhos no Araguaia. Um era filho dele com dona Maria, cozinheira que já morreu. Zezinho Barqueiro, que também era filho dela, conviveu muito com o menino, que se chamava Geovane. Falam ainda em outro filho dele, mas as informações são poucas a respeito", afirma Myrian.
Também conheceu o menino Geovane o lavrador José Rodrigues da Silva, o Baiano. Baiano e Osvaldão trabalharam nos anos 1960 como garimpeiros e como mariscadores (caçadores de animais para a retirada e venda das peles). Separaram-se por alguns anos. Ao reencontrá-lo, Osvaldão estava com um garoto pequeno, que apresentou ao amigo como filho. Osvaldão é outro desaparecido do Araguaia. Foi morto em 1974, segundo relatos de testemunhas e de militares. Seu corpo nunca apareceu. Há indícios de que outro menino foi levado por militares ao término do confronto para Tabatinga (Amazonas), na fronteira com a Colômbia. "Tabatinga é uma região de fronteira, onde o Exército atua há décadas. Considero uma indecência terem levado essas crianças para tão longe só porque eram filhos de comunistas", diz a pesquisadora.
Amigo ou inimigo?
A busca dos órfãos da guerrilha do Araguaia é uma ação paralela do GTT. Desde 2009, os integrantes do grupo percorrem a região à caça de pistas que levem à localização das ossadas. Com base em depoimentos de mateiros, guias e camponeses, confrontados com informações documentais em livros, artigos e reportagens, foram escavados pelo menos 100 pontos nos municípios paraenses de Marabá, São Geraldo do Araguaia, São João do Araguaia, Palestina do Pará, Brejo Grande e São Domingos do Araguaia, além de Xambioá, em Tocantins. Nada foi achado.
O que antes era floresta hoje é pasto, brejo, estradas, lavouras e vilarejos. Passados 40 anos, fica cada vez mais difícil descobrir onde os guerrilheiros tombaram ou onde foram enterrados clandestinamente. Especialistas sustentam que, exterminada a guerrilha, os militares recolheram os corpos e os levaram para longe dali.
A participação de militares no GTT, criado por determinação da Justiça para que se procurem e se entreguem aos familiares os restos mortais dos desaparecidos, é alvo de críticas de parentes e de entidades de defesa dos direitos humanos. Eles argumentam que as Forças Armadas não têm interesse em localizar os restos mortais, como determina a sentença da juíza Solange Salgado, da 1ª Vara Federal em Brasília. Sua presença no grupo é justificada pela necessidade de proporcionar a especialistas engajados no trabalho de busca e identificação - legistas, geólogos, historiadores e geógrafos de universidades de São Paulo, Rio de Janeiro, Distrito Federal, Pará e Ceará - a logística de acomodação, transportes, alimentação e equipamentos. No segundo semestre deste ano, o Grupo de Trabalho fará novas escavações na região.
Militares exterminaram a guerrilha em três anos
O objetivo dos guerrilheiros do Araguaia era derrubar o regime militar e implantar o socialismo no Brasil baseada em uma mobilização rural que, aos poucos, chegasse aos centros urbanos. Para tanto, a partir de 1967 o PCdoB convocou seus militantes urbanos para a floresta. Escolheram o Araguaia por ser uma área inóspita, mas habitada por pessoas desassistidas pelos governos estaduais e federal. Nada deu certo. Os jovens, quase todos estudantes universitários (entre eles o ex-deputado federal José Genoino), nunca conseguiram se ambientar à selva. Viviam mal alimentados, mal armados, desinformados sobre o que acontecia em volta. E não conquistaram o crucial apoio dos camponeses. Mas o pior, para eles, estava por vir. Tropas do Exército, da Marinha e da Aeronáutica dizimaram os insurgentes em três investidas, em 1972 e 1973, nas quais foram empregados cerca de 5 mil homens. O governo militar considerou a guerrilha extinta em 1975. Dos 80 guerrilheiros, pelo menos 60 são dados como desaparecidos pelo próprio governo federal. Até hoje, só dois foram identificados pelo DNA: Maria Lúcia Petit da Silva, em 1992, e Bérgson Gurjão Farias, em 2009. Ambos estavam enterrados em covas anônimas no cemitério de Xambioá (TO).
Romantismo desastrado
A truculência dos militares somou-se à desorganização dos rebeldes e levou a guerrilha a seu fim sangrento. "A ação dos guerrilheiros foi muito malsucedida. Eles não conseguiram o apoio popular indispensável para atingir seus objetivos (derrubar o então presidente, Emílio Garrastazu Médici, general do Exército, e instalar um governo socialista no país). E tudo acabou na tragédia que conhecemos", diz o historiador Carlos Fico, professor do Departamento de História da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). "Foi uma iniciativa muito ingênua, diria até que desastrada. Talvez a Revolução Cubana explique um pouco aquele romantismo. Havia a utopia, a ética revolucionária, sobretudo aquela inspirada em Cuba. A juventude da época tinha a crença de que poderia mudar o mundo", diz o historiador.
O médico João Carlos Wisnesky, 67 anos, é um dos poucos sobreviventes do Araguaia - onde usava o codinome Paulo Paquetá. Ele escapou do destacamento em setembro de 1973. Indispusera-se com o comando da guerrilha por, segundo ele, contestar ordens que considerava absurdas, como a de não poder usar barba e a de ser proibido de tomar a iniciativa em questões simples. "Não podíamos falar com a população por questões de segurança. Só os comandantes. Como fazer um exército popular se ele não podia se comunicar? Eu falei isso. Não houve resposta, só silêncio", conta Wisnesky. Em represália a suas atitudes rebeldes, um dia foi abandonado na floresta pelos cerca de 20 colegas de destacamento. Decidiu voltar para casa. Dois meses depois, os guerrilheiros foram capturados e mortos. O médico voltou ao Araguaia em 2010 para ajudar na busca das ossadas. Mal reconheceu os lugares onde viveu por quase dois anos. A mata não existia mais.
Saiba mais
LIVROS
• Operação Araguaia - Os Arquivos Secretos da Guerrilha, Taís Morais e Eumano Silva (Geração Editorial, 2005).
Os autores revelam documentos inéditos sobre a guerrilha, após sete anos de pesquisas.
• A Lei da Selva, Hugo Studart (Geração Editorial, 2006).
Baseado em fontes do Exército, o autor revela a existência do Dossiê Araguaia, elaborado por militares que estiveram na linha de enfrentamento com a guerrilha.
• Além do Golpe: Versões e Controvérsias sobre 1964 e a Ditadura Militar, Carlos Fico (Record, 2004).
Discute as mais importantes correntes da historiografia sobre o Golpe de 1964.
Post-Scriptum - Educar Para Crescer
Guerra fantasma
Documentos podem trazer à luz um dos mais obscuros episódios do país
É difícil fechar esse capítulo da História do Brasil diante das dificuldades de encontrar documentos comprobatórios das operações realizadas pelo Exército e do efetivo militar empregado no combate aos guerrilheiros. Nos últimos anos, e aos poucos, documentações importantes que registraram o cotidiano das operações militares foram aparecendo. Mas ainda há a recusa em abrir os arquivos oficiais, o que certamente ajudaria a desvendar muitos dos segredos que envolveram o conflito.
Os fracassos militares deixaram claro o erro das estratégias e táticas iniciais e colocou em xeque a capacidade de o regime militar, naquele momento, debelar o foco guerrilheiro. Operações desastradas levadas a cabo com efetivo despreparado, repressão violenta contra a população, torturas, assassinatos... Tudo isso somado dá a síntese do que pode ser compreendido como um dos maiores equívocos de nossas Forças Armadas - e ajudou a transformar a Guerrilha do Araguaia em um fato histórico fantasma.
Por muito tempo, omitiu-se ter havido uma guerrilha no sul do Pará. Nenhum documento oficial trazia informações a respeito, e a população da região onde se desenrolou o conflito era vigiada e intimidada para não revelar o que sofreu e testemunhou nos anos de 1972 a 1975.
Mas tais documentos, que se acreditavam destruídos, existiam. E boa parte deles estava em mãos de militares, inclusive oficiais, envolvidos na repressão ao movimento. Mapas, memorandos, ofícios, alguns sem timbres oficiais, mas devidamente carimbados por uma das forças militares (Exército, Marinha ou Aeronáutica) ou das polícias Militar e Federal, foram sendo trazidos à luz, embora vários tivessem sua legitimidade questionada.
Também surgiram relatos dos comandantes da guerrilha, como o "diário do velho Mário". Mário era o nome de guerra de Maurício Grabois, o mais importante e experiente militante comunista presente no Araguaia. O diário, no entanto, era apenas uma cópia reescrita por suboficiais a mando de um dos chefes do Exército - o manuscrito original teria sido incinerado. Embora seja um documento importante, carece de análise aprofundada e de cruzamento de informações para que se ateste sua veracidade. Como documento histórico, só terá validade se o manuscrito original aparecer.
De qualquer forma, esses documentos ajudam a montar o violento mosaico que significou a ação militar até o processo final de limpeza da área, em 1975, quando os corpos dos guerrilheiros foram retirados dos lugares onde haviam sido mortos ou enterrados - outra tentativa, assim como o silêncio imposto à população local, de apagar qualquer vestígio da existência do conflito.
Informações importantes também têm sido obtidas por meio de moradores da região, desde que a juíza Solange Salgado determinou a busca dos corpos dos guerrilheiros e desde que o Ministério da Defesa organizou o Grupo de Trabalho Tocantins, em 2009.
Mas hoje, quase quatro décadas depois, quais seriam as consequências desses depoimentos e do aparecimento dos documentos?
Além de facilitar as pesquisas sobre o assunto baseando-se em documentos, mesmo com eventuais erros e desinformações, essas pistas nos ajudam a entender a estratégia dos militares e sua visão do desafio que tinham pela frente. Assim, podemos comparar essa visão com a opinião expressa pela organização de esquerda que organizou a guerrilha, mais difundida. A abertura de arquivos e a publicidade de toda a documentação corresponde ainda a um direito que nós, historiadores, temos de registrar fatos importantes das lutas do povo brasileiro. Corresponde, mais que isso, ao direito que as famílias daqueles que morreram têm de saber o que aconteceu com seus parentes, qual seu paradeiro ou o de seus restos mortais.
Romualdo Pessoa é professor do Instituto de Estudos Socioambientais da Universidade Federal de Goiás e autor de Guerrilha do Araguaia - A Esquerda em Armas (UFG, 1997).