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Corte do Rei Arthur e a família Kennedy têm muito em comum

Corte do Rei Arthur e a família Kennedy têm muito em comum

Leandro Karnal* Publicado em 26/08/2009, às 01h57 - Atualizado em 23/10/2017, às 16h36

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Aventuras na História - Arquivo Aventuras
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O 35º presidente dos EUA popularizou-se como JFK. Sorriso aberto, fala cativante, formação primorosa, esposa bonita e filhos dignos de cartão de Natal: nada parecia errado naquela família. O pequeno incômodo causado pelo catolicismo do presidente, caso único na história dos EUA, foi logo superado. No debate presidencial com o pálido e evasivo Nixon, o sorriso de JFK chegava a ser uma covardia. Quasímodo (o corcunda de Nôtre-Dame) e Adônis (o homem mais belo da mitologia grega) inauguraram a era da política televisiva e indicaram para todas as décadas futuras que a imagem seria o eixo dominante da política de massas.

A Crise dos Mísseis de 1962 tinha também destacado um líder firme, capaz de enfrentar e negociar ao mesmo tempo, pelo menos para o grande público americano. O eleitorado dos Estados Unidos apenas conheceu o aspecto externo da crise: a União Soviética tinha tentado agredir a área de interesse de Washington e o presidente jovem e bonito, o primeiro a nascer no século 20, tinha feito um bloqueio e cortado as garras do urso soviético. Assim parecia ao público ocidental. Assim a imprensa americana registrou.

A tragédia de 1963 canonizou Kennedy. A cena de Dallas causou um impacto só repetido, em parte, pelo ataque às Torres Gêmeas, em 2001. Nos dois episódios, todos os norte-americanos sabiam onde estavam quando receberam a notícia da tragédia. Três presidentes tinham sido assassinados antes de Kennedy, mas nenhum de forma tão impactante. Nenhum ao vivo. Mesmo o mítico Abraham Lincoln tinha sido baleado num camarote de teatro e agonizou numa casa obscura longe do público. A morte de James Garfield e William McKinley não é lembrada por ninguém. Resta Kennedy e o tailleur rosa da primeira-dama, manchado, como pano de relíquia, com o sangue presidencial. Fica o vídeo e a nação chocada. Resta o culto e a chama eterna no cemitério de Arlington.

Passados alguns anos, o mundo encantado de Camelot (a lendária e perfeita corte do rei Arthur) começou a mostrar fissuras. A obra de Seymour M. Hersh (The Dark Side of Camelot) trouxe à tona várias questões sobre a intensidade sexual do chefe da família perfeita. De rei-presidente da Távola Redonda, Kennedy passa a fauno insaciável. As obscuras relações com Marilyn Monroe e tantas outras personagens lançaram lama na auréola presidencial. Porém, como acontece com heróis em geral, o ataque apenas reforça o caráter épico. Para muitos a crítica revela apenas a inveja, o ressentimento e a perfídia de quem não se igualou ao ser olímpico.

O debate sobre o caráter de Kennedy mostra o fascínio por essa família real americana. Como os Wind- sor na Inglaterra ou os Gandhi na Índia, os Kennedys encarnam a vitória de uma linhagem de destaque, um modelo cuja glória e tragédias substituem a monótona narrativa das nossas realidades mesquinhas. Mais: os Kennedys são também a vitória do sonho americano, pois são migrantes irlandeses e trazem para este lado do Atlântico o caldo utópico que formou o Novo Mundo. O projeto norte-americano de igualdade na independência de 1776 nunca tinha encoberto a crença na diferenciação por mérito - estético, financeiro ou intelectual. A sociedade daquele país crente no seu próprio excepcionalismo, sempre ressaltou que a igualdade é legal, porém a diferenciação é pessoal, base da democracia-meritocracia que constitui o maior binômio do sonho dos EUA. Como disse o fictício Nixon encarnado por Anthony Hopkins (np filme de Oliver Stone) ao contemplar um busto de JFK na Casa Branca: "Os americanos amaram em você o que gostariam de ser e odiaram em mim o que são". Nada mais denso para pensar na aura mítica de John Fitzgerald Kennedy. Seria o presidente assassinado um ser amado por encarnar os mais altos sonhos dos americanos ou por ser o menos americano dos presidentes dos EUA? Quarenta e seis anos depois, a resposta segue no ar.

*por Leandro Karnal: coordenador de pós-graduação em História e professor de História da América na Unicamp