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Confira a importância do espartilho para a sociedade

Em busca da cintura de vespa, as mulheres se mantiveram sob rígidos espartilhos por quase 500 anos. As silhuetas estranguladas eram sua sina, da primeira menstruação à morte

Érica Georgino Publicado em 01/11/2010, às 18h07 - Atualizado em 23/10/2017, às 16h36

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Espartilho - Arquivo Aventuras
Espartilho - Arquivo Aventuras
<p><em>&quot;Fernando sentiu na face um sopro gelado. Olhou: Aur&eacute;lia estava desmaiada em seus bra&ccedil;os. (...) No meio do alvoro&ccedil;o causado pelo incidente, enquanto acudiam os m&eacute;dicos, vinham os sais, e corriam as amigas, umas inquietas, e outras curiosas, choviam os comentos.<br /><br />- Que imprud&ecirc;ncia!<br /><br />- Aquele desespero!... Eu logo vi!<br /><br />- E ela que n&atilde;o tem o costume de valsar.<br /><br />- Quis fazer-se de forte!<br /><br />- N&atilde;o &eacute;, senhora; aquilo foi o vestido. N&atilde;o v&ecirc; como acocha a cintura.<br /><br />(...) Com efeito, antes que a inundassem de &eacute;ter ou &aacute;lcali, e que lhe desatassem a cintura, Aur&eacute;lia abriu os olhos e arredou com um gesto as pessoas que se apinhavam junto ao sof&aacute;.<br /><br />- N&atilde;o &eacute; nada: uma tonteira, j&aacute; passou.<br /><br />O m&eacute;dico que tomava-lhe o pulso confirmou, limitando-se a recomendar al&eacute;m do repouso, o desafogo do vestido para respirar melhor.&quot;</em><br /><br />J&aacute; v&atilde;o distantes os tempos em que o simples farfalhar da seda dos vestidos despertavam o fetiche masculino. Em Senhora (1875), Jos&eacute; de Alencar constr&oacute;i uma das personagens mais sedutoras da literatura brasileira: Aur&eacute;lia &eacute; delicada e emana seu encanto dos &quot;opulentos cabelos&quot;, da &quot;cintura mimosa&quot; e do &quot;formoso busto&quot;. Como n&atilde;o poderia deixar de ser na burguesia do s&eacute;culo 19 - que forjava as silhuetas mais atraentes &agrave; custa de amarras apertadas. Do Renascimento ao in&iacute;cio do s&eacute;culo 20, os espartilhos (e suas variantes menos r&iacute;gidas e sufocantes, como os corseletes) funcionaram n&atilde;o apenas como uma pe&ccedil;a de vestu&aacute;rio, base de sustenta&ccedil;&atilde;o para seios, ventres e colunas eretas, mas tamb&eacute;m como um c&oacute;digo social.<br /><br />&quot;Durante quase 500 anos, os espartilhos fizeram parte da vida das mulheres: garantiam-lhe seguran&ccedil;a para enfrentar a sociedade&quot;, diz Patricia Sant&rsquo;Anna, historiadora da arte e antrop&oacute;loga, pesquisadora do Grupo de Estudos em Arte, Design e Moda, da Unicamp. &quot;A cada per&iacute;odo da Hist&oacute;ria, esperou-se um formato diferente do corpo feminino e a tend&ecirc;ncia sempre foi de que as mulheres atendessem &agrave;s expectativas.&quot;</p><p><a href="http://guiadoestudante.abril.com.br/imagem/espartilho1.JPG"><img width="600" height="169" src="http://guiadoestudante.abril.com.br/imagem/espartilho1.JPG" alt="" /></a></p><p><a href="http://guiadoestudante.abril.com.br/imagem/espartilho2.JPG"><img width="600" height="205" src="http://guiadoestudante.abril.com.br/imagem/espartilho2.JPG" alt="" /></a><br /><em><strong><br /></strong>Clique na imagem para ampliar (ilustra&ccedil;&otilde;es: RWR2)</em></p><p><strong>Entreatos</strong><br /><br />A preocupa&ccedil;&atilde;o com os contornos femininos intensifica-se durante a Idade M&eacute;dia. Imersos nos preceitos da Igreja crist&atilde;, os europeus recobrem-se de pudores e, aos poucos, o corpo das mulheres assemelha-se &agrave;s colunas g&oacute;ticas da &eacute;poca. Acentua-se a diferencia&ccedil;&atilde;o entre os g&ecirc;neros: enquanto a largura das costas &eacute; associada &agrave; masculinidade, as mulheres comprimem-se sob troncos estreitos. Seios pequenos e firmes combinam-se a ventres arredondados ou volumosos, sinal de fecundidade. Foi para conquistar silhuetas alongadas que as mulheres lan&ccedil;aram m&atilde;o do que seriam os &quot;av&oacute;s&quot; dos espartilhos: t&uacute;nicas com cord&otilde;es, corpetes e coletes amarrados, sempre bem ajustados pelos alfaiates.<br /><br />Aos poucos, a pe&ccedil;a tornou-se obrigat&oacute;ria nos guarda-roupas das mulheres mais ricas, desde a primeira menstrua&ccedil;&atilde;o at&eacute; a morte. Embora com alguma dose de pol&ecirc;mica. Em 7 de setembro de 1675, o Parlamento franc&ecirc;s - movido por ataques moralistas de aristocratas preocupados com os alfaiates que tomavam as medidas das mo&ccedil;as da sociedade - autorizou as costureiras a fabricar os espartilhos. Sorte das donzelas, que encontrariam nas corseti&egrave;res interlocutoras mais sens&iacute;veis e, sob seus cuidados, veriam surgir op&ccedil;&otilde;es mais leves e menos inc&ocirc;modas. Nessa &eacute;poca, as pe&ccedil;as tamb&eacute;m incorporam definitivamente a sedu&ccedil;&atilde;o. Especialmente no reinado de Lu&iacute;s XIV, na Fran&ccedil;a, ganham requinte com cores e detalhes diversos, como la&ccedil;os.<br /><br />As cortes europeias esmeraram-se em aperfei&ccedil;o&aacute;-las. Os modelos feitos com barbatanas de baleias, por exemplo, aparecem em substitui&ccedil;&atilde;o &agrave;s hastes met&aacute;licas e aos tecidos r&iacute;gidos. Sustentavam o tronco feminino com maior flexibilidade e um m&iacute;nimo de conforto. Cet&aacute;ceos ca&ccedil;ados tamb&eacute;m no Brasil abasteceram o mercado de barbatanas na Europa, mas os espartilhos s&oacute; foram incorporados pela mulher brasileira ap&oacute;s a chegada da fam&iacute;lia real portuguesa, em 1808. Foi quando a col&ocirc;nia passou a cultivar os grandes eventos sociais. Bailes, casamentos, cortejos e &oacute;peras trouxeram lampejos cosmopolitas ao Rio de Janeiro, enquanto a libera&ccedil;&atilde;o das importa&ccedil;&otilde;es permitiu maior acesso a artigos de beleza e &agrave;s revistas estrangeiras de moda. Sem perder tempo, a nova sede do Imp&eacute;rio engomou-se &agrave; moda europeia. A sensualidade era representada pelo corpo em forma de ampulheta. &quot;&Eacute; uma fase em que a defini&ccedil;&atilde;o de beleza da mulher passa por uma s&eacute;rie que recursos que giram em torno da silhueta. Os cabelos volumosos, unidos aos espartilhos, s&atilde;o s&iacute;mbolo da feminilidade. A &ecirc;nfase no colo de pomba e as ancas proeminentes s&atilde;o meios pelos quais as mulheres se diferenciam dos homens&quot;, afirma a historiadora Mary Del Priore.<br /><br />As pe&ccedil;as, que estrangulavam cinturas (40 cm era a largura ideal) e costelas, representavam a &quot;vit&oacute;ria da raz&atilde;o sobre a natureza&quot;, diz Priore no livro Corpo a Corpo com a Mulher. &quot;O espartilho - junto com a luva, as plumas do chap&eacute;u e o salto alto no sapato - remetia aos signos nobres da improdutividade&quot;.<br /><br /><strong>Desapertos</strong><br /><br />A pe&ccedil;a reafirmava &agrave; elite seu car&aacute;ter aristocr&aacute;tico, mas cresciam as cr&iacute;ticas de m&eacute;dicos e cronistas da &eacute;poca. Em 1859, um jornal parisiense registrou que &quot;uma jovem mulher, da qual todas as rivais admiravam a cintura fina, morreu dois dias ap&oacute;s o baile&quot;. Seu f&iacute;gado teria sido perfurado por tr&ecirc;s costelas devido ao uso de espartilhos.<br /><br />Movimentos pela liberta&ccedil;&atilde;o das cinturas se disseminaram com a moderniza&ccedil;&atilde;o da sociedade. Por volta de 1850, grupos de mulheres americanas organizaram-se para reivindicar o voto e &quot;direitos&quot;, como poder usar cal&ccedil;as e abandonar os espartilhos.<br /><br />Os cord&otilde;es e el&aacute;sticos afrouxaram definitivamente durante a Primeira Guerra, quando milh&otilde;es de homens partiram para campos de batalha e as mulheres assumiram seus empregos. O conforto fez-se necess&aacute;rio para aquelas que enfrentavam longas jornadas di&aacute;rias de trabalho bra&ccedil;al, inclusive em f&aacute;bricas de armamentos, ou mesmo &agrave;s mais abastadas, que se alistaram em organiza&ccedil;&otilde;es como a Cruz Vermelha. As que n&atilde;o se engajaram tiveram suas criadas recrutadas pelo esfor&ccedil;o de guerra - assim, faltava-lhes quem as ajudasse na miss&atilde;o de vestir as pe&ccedil;as. E o espartilho caiu em desuso.</p><p>Ap&oacute;s a emancipa&ccedil;&atilde;o feminina, por&eacute;m, nas vers&otilde;es mais flex&iacute;veis, claro, a pe&ccedil;a recuperou espa&ccedil;o e virou um item de luxo. R&eacute;plicas de modelos hist&oacute;ricos s&atilde;o vendidas a 300 d&oacute;lares pela internet. Ah, o pre&ccedil;o da sedu&ccedil;&atilde;o...</p><p><strong>Beleza &agrave; for&ccedil;a</strong><br /><br /><em>O esfor&ccedil;o feminino para se adequar a padr&otilde;es</em><br /><br />&Agrave; semelhan&ccedil;a dos espartilhos, ao longo da Hist&oacute;ria diversas sociedades sacrificaram suas mulheres em nome de padr&otilde;es de beleza (para n&atilde;o falar do corta e estica das cirurgias pl&aacute;sticas atuais). Na China, por volta do s&eacute;culo 10, o &quot;p&eacute; de l&oacute;tus&quot; tornou-se comum entre as mo&ccedil;as de fam&iacute;lias nobres. Quando completavam 3 anos, as meninas tinham os p&eacute;s atados em bandagens que quebravam os ossos e impedia-os de crescer, formando membros de 10 cm. O h&aacute;bito persistiu at&eacute; o s&eacute;culo 20 em algumas regi&otilde;es chinesas. J&aacute; entre os padaungs, tribo de Mianmar, mulheres usam argolas de bronze enroladas no pesco&ccedil;o. Os an&eacute;is s&atilde;o inseridos na inf&acirc;ncia e aumentam de quantidade ao longo da vida; seu peso empurra o ombro e as costelas para baixo, dando a impress&atilde;o de que o pesco&ccedil;o &eacute; esticado. Al&eacute;m da beleza, as padaungs creditam uma prote&ccedil;&atilde;o espiritual &agrave; tradi&ccedil;&atilde;o.</p><p><strong>Saiba mais</strong><br /><br />LIVROS<br /><br /><em>&bull; Suti&atilde;s e Espartilhos - Uma Hist&oacute;ria de Sedu&ccedil;&atilde;o,</em> Beatrice Fontanel, Salamandra, 1998. Ilustra&ccedil;&otilde;es, fotografias e propagandas de &eacute;poca tornam o livro ainda mais interessante.<br /><em>&bull; Corpo a Corpo com a Mulher - Pequena Hist&oacute;ria das Transforma&ccedil;&otilde;es do Corpo Feminino no Brasil</em>, Mary Del Priore, Senac S&atilde;o Paulo, 2000. Uma das maiores estudiosas do tema no pa&iacute;s, sua obra &eacute; refer&ecirc;ncia para quem quer entend&ecirc;-lo.<br /><br /><strong><br /></strong></p>